quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Atrani e a conjetura do cantoneiro

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Nunca tinha ouvido falar de Atrani, uma pequena povoação a menos de um quilómetro de Amalfi, a sul de Nápoles.

No dia 9 de Setembro de 2010 sofreu uma enxurrada que matou uma pessoa e arrastou os automóveis . Ver http://www.youtube.com/watch?v=Z7Kb7sq12mo

Tratou-se de um fenómeno do mesmo tipo do que se passou na Madeira. Excesso de pluviosidade e consequente encharcamento, “liquefação” e deslizamento dos solos, formação de barragens devido à acumulação de vegetação, pedras ou detritos nas partes altas das linhas de água, seguindo-se o efeito de rebentamento da barragem. Ocupação das linhas de água e seu soterramento com vias de comunicação e edifícios. Subdimensionamento dos canais de escoamento para os valores da pluviosidade.

Este tipo de fenómenos tem tendência a repetir-se e admira como não aconteceu nas povoações vizinhas. Atrani está espartilhada entre cumeadas que acabam no mar e toda a ocupação dos solos parece ter sido feita com pouca intervenção da engenharia preventiva, desde o tapamento e redução das secções de escoamento das linhas de água aos obstáculos ao longo das encostas (estradas, vegetação não contida, casas). Ver a imagem do Google Earth .

Também no sul de Itália, na Calábria, em Maierato, tinha ocorrido um deslizamento de terras em Fevereiro de 2010. Ver:
http://rockglacier.blogspot.com/2010/02/landslide-in-calabria.html

Em Abril de 2010, no norte de Itália, na linha de caminho de ferro que serve Bolzano, num vale no sopé dos Alpes do Alto Adige, um deslizamento de terras com origem na rotura de uma rede de irrigação e consequente encharcamento dos solos, provocou o descarrilamento d e um comboio com vítimas mortais. Ver:
http://news.bbc.co.uk/2/hi/europe/8615002.stm

No Japão há registos de deslizamentos de terras já há vários anos. Neste país estudou-se profundamente a geologia da liquefação dos solos, de grande aplicação na construção de túneis em solos aluvionares ou argilosos (um solo com areia resiste melhor à liquefação) e na construção anti-sísmica. No caso do acidente neste vídeo, verifica-se que o coberto vegetal, de árvores, não é suficiente para evitar o deslizamento. Ver:
http://www.youtube.com/watch?v=23NZTzpw6cY

Em Portugal tivemos, em Janeiro de 2010, o deslizamento de terras sobre a CREL, em Carenque e, em Maio, na encosta da Graça, junto do miradouro da Senhora da Graça.

Verificou-se ainda, recentemente, na Tailândia, um deslizamento de terras com destruição de uma estrada. Neste país a UNESCO desenvolveu desde há vários anos estudos no campo para prevenção dos deslizamentos de terras, com definição do nível de alarme sempre que a pluviosidade diária ultrapassa 100 mm. Ver:
http://www.unescobkk.org/index.php?id=6147

Vou juntar a esta série de catástrofes mais ou menos naturais, mais ou menos consequência de alterações climáticas com aumento de ocorrências de pluviosidade muito elevada concentrada num período de tempo curto, mais ou menos potenciada pela ocupação descuidada dos solos, o acidente com a explosão de uma conduta de gás que provocou a morte de várias pessoas nos arredores de S.Francisco, junto do aeroporto.

O meu objetivo, para além de chamar a atenção para a importância do estudo dos solos e do seu relacionamento com a pluviosidade ou com outra presença de água na construção de vias férreas, rodovias, túneis ou viadutos é o de colocar uma conjetura.

Não disponho de nenhum estudo que a possa fundamentar, mas é uma conjetura que poderá também contribuir para o que parece um agravamento da ocorrência deste tipo de fenómenos.

Para formular a conjetura recordo uma figura que desapareceu há muito das estradas portuguesas: o cantoneiro. A espaços via-se, ao lado da estrada, a casa do cantoneiro, com a indicação, em azulejos azuis, da quilometragem e de que era propriedade da junta autónoma das estradas.

Não recordo desses tempos, passados há mais de 50 anos, nenhuma vegetação a obstruir uma placa de sinalização ou de indicação à beira da estrada. Não me recordo de ver marcos ou guardas de proteção nas curvas aguardando reparação.

De repente ou talvez não, desapareceram os cantoneiros.

Agora existem os contratos de manutenção, defendidos por senhores finos que os assinam.

Não é a falta dos cantoneiros nas estradas de Portugal que provoca fenómenos de deslizamento de terras, não é essa a conjetura.

Mas será a cultura que se instalou que o indicador de que os dirigentes se devem orgulhar é o da redução dos recursos humanos. Que, graças às novas tecnologias, as empresas não precisam de ter tantos funcionários.

Não foi o cantoneiro que faltou às estradas de Portugal que foi capaz de detetar na Madeira e em Atrani que a secção de escoamento das ribeiras enterradas era insuficiente para uma precipitação superior a 100 mm/dia, porque também aí não havia ninguém para fazer esse trabalho. Nem para detetar fissuras anteriores nas estradas das encostas, ou que os leitos das ribeiras estavam obstruídos com pedras e restos de vegetação, prontos a formarem uma barragem. Ou para explicar aos engenheiros ou arquitetos da câmara municipal que aqueles edifícios e aquelas estradas não podiam ser construídos assim.

Cinicamente a conjetura perguntará: será que os prejuízos das enxurradas recorrentes não dariam para suportar o pagamento dos salários de técnicos que ajudassem a prevenir as consequências e a detetar os riscos de enxurradas?
Mesmo que fosse em “outsourcing”, porque já se vê que as janelas de oportunidades devem ser muito bem aproveitadas.
E é aqui que entra a conduta de gás que rebentou na Califórnia. Segundo informações do MSNBC, as condutas eram já antigas, não tinham sido revistas e adaptadas à pressão do  gás natural escolhida, e havia dias que se notava o cheiro de fugas de gás (o gás é inodoro mas o transportador deve misturar um componente para dar cheiro).
Numa palavra, grandes economias com quadros de pessoal (e portanto um bom indicador para mostrar em powerpoints) e bons contratos de outsourcing com empresas de manutenção que não submeteram a conduta aos testes de estanquidade que deviam, foram as estratégias dos donos e dos operadores daquela conduta (como se sabe, a BP também não era a responsável pela perfuração da Deepwater Horizon. Tinha contratado o aluguer da torre e as equipas de perfuração).

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