sexta-feira, 29 de junho de 2018

A mercearia da senhora dona Manuela Farias

"Querem matar o bairro de Alfama" - diz a senhora na reportagem televisiva.  As televisões perceberam o filão dos despejos. O turismo em Lisboa ajuda a economia, mas um dos preços é este. A mercearia da rua de S.Miguel em Alfama vai fechar porque o novo senhorio assim o quer. É possível que o bairro não morra, Como dizia o lema da república marítima de Ragusa "A liberdade não pode vender-se nem por todo o ouro do mundo" . Alguns economistas e políticos acharam que sim, que em Lisboa a liberdade e a felicidade podem comprar-se. Que há mercado.
Convem recordar o que foi a república de Ragusa. Uma potencia marítima comercial, florescente do século XIV ao século XVIII, graças ao comércio entre o Oriente e o Ocidente, no Mediterraneo oriental, sempre, como agora, em guerra. Rivalizando com Veneza, e superior a esta no conceito de que os comerciantes de povos diferentes devem entender-se, por maiores que sejam as divergencias politicas ou ideológicas dos dirigentes das regiões em que se inserem,
Claro que os burocratas de Bruxelas não partilham desta opinião, e pressurosamente acorreram a aplicar sanções à Russia por causa da ocupação da Crimeia. Pouco a afetaram, o que a Russia gasta no seu esforço de guerra afeta mais a sua economia. Mas quem saiu a perder foram os exportadores portugueses que deixaram de enviar produtos para a Russia.
Criminosos de guerra, os russos, a ocupar a Crimeia. Mas que faziam exercitos ingleses, franceses e italianos em 1854 na guerra da Crimeia? Ganharam a guerra mas reconheceram ao czar da Russia a soberania sobre a peninsula. Numa altura em que os Estados Unidos preparavam a anexação do Texas, do Novo México, da California, pela força dos seus exércitos .
Sanções aos USA por ocuparem as terras dos mexicanos e dos indios? Quando em 1876 os USA violaram o tratado que reconhecia a autonomia dos índios Sioux e Lakota sobre as suas terras por que se descobrira ouro. O general Custer entretinha-se a massacrar aldeias indias quando os seus guerreiros náo estavam presentes, mas teve azar com a coligação de Sitting Bull e Crazy Horse, morreu na batalha de Little Big Horn. A coligação desfez-se e os USA puderam calmamente explorar os minérios, como agora fazem com a fratura dos xistos para obter mais petróleo e gás.  Ou como fez a doce França ocupando o Taiti em 1880.
Só os russos são imperialistas? Não brinquem. Voltando à república de Ragusa, cidade que hoje dá pelo nome de Dubrovnik, na Croácia, foi simplesmente extinta pelos exércitos de Napoleão, o senhor que sofria da demencia de se sentir escolhido para a missão de espalhar o código civil da revolução francesa por toda a Europa, mas como imperador. A reação que se seguiu no congresso de Viena acabou com a autonomia da república e entregou a soberania à monarquia dos Habsburgos, os pobres incapazes que foram preparando a 1ªguerra mundial ao combater os italianos e ao administrar desajeitadamente as regiões de população eslava. Ragusa estava na fronteira dos antigos impérios romanos do ocidente e do oriente, nos limites de influencia das igrejas católica e ortodoxa (por isso o Vaticano foi o primeiro estado a reconhecer a independencia da Eslovénia e da Croácia contra a Federação jugoslava, ao arrepio da ata de Helsinquia de 1975). Os decisores politicos não quiseram aceitar o princípio do entendimento comercial entre os povos que Ragusa significava (pese embora a república ser como a ateniense primitiva,. Foi pena. Podiam ter dado um bom exemplo aos politicos de hoje, que só não repetirão os seus erros se não puderem.
Ou, numa escala mais pequena, guardando as devidas distancias, foi pena não ter sido mantido o lema de que nenhum ouro pode comprar a liberdade e a felicidade. Pena o novo senhorio da pastelaria Suiça tê-la despejado. Pena que o grupo espanhol que comprou o quarteirão da Suiça ao grupo financeiro que deu com os burrinhos na água mas que já em 2009 tinha apresentado ao metropolitano o projeto de um grande hotel , ache que não vale a pena manter a Suiça. Lá iriam contrariar com uma renda baixa o interesse dos investidores que esperam dividendos, não podemos contrariar as expetativas dos investidores, são o motor da economia, eles e a sua ganancia, numa altura em que o compromisso escrito da geringonça de taxar lucros foi esquecido, possivelmente por isso mesmo, para não afugentar os investidores (e contudo, transferiram os títulos dos fundos abutre para o banco mau do BES, afugentando a Blackwater, perdão, a Blackrock, que as Blackwater é a empresa privada de mercenários no Afeganistão). O metropolitano de Lisboa, que aprovou o dito projeto, dada a proximidade da galeria, gastou muito dinheiro com a reabilitação das fundações da pastelaria Suiça, do Nicola, dos prédios da rua do Carmo e da rua Nova do Almada, até com a reabilitação das fontes do Rossio, que tinha as canalizações completamente inoperacionais, durante a expansão dos anos 90. Por isso, fechar a pastelaria Suiça hoje é também o desperdício do investimento que o metro fez. Com dinheiro ou empréstimos em nome dos contribuintes. Por isso posso dizer que estão a acabar com uma coisa que pode ser intangível, mas que existe e não é deles, do fundo abutre novo senhorio do quarteirão da Suiça, é dos contribuintes, ou acionistas da sociedade Portugal.
Querem matar a cidade, mas talvez não consigam, parafraseando a senhora da mercearia de Alfama que também vai fechar.

https://en.wikipedia.org/wiki/Crow_Indian_Reservation

https://www.dn.pt/portugal/interior/seguranca-social-e-mais-um-grao-de-areia-na-engrenagem-da-geringonca-9525011.html

http://sicnoticias.sapo.pt/economia/2018-07-04-Lojistas-de-Lisboa-despejados-depois-de-30-anos-de-trabalho

Portugal 2030, III - comentário (participativo) sobre a opinião da Transportes em Revista

Com a devida vénia à Transportes em Revista:

https://www.youtube.com/watch?v=0a5adHz4mP4&t=2s



Temos aqui um interessante paradoxo, ou dilema, não sei bem.
Por um lado, o XXI governo é apresentado como continuador da boa prática do XIX , mas com outra metodologia (creio que se refere ao papel fundamental do PETI3+) e elogiado por, pudicamente, dizer que não quer condicionar a discussão pública apresentando soluções. E contudo, por exemplo, são conhecidas as posições rígidas e surdas aos pareceres dos técnicos não engajados sobre os compromissos sobre a rede transeuropeia core 2030 e o corredor atlantico interoperável (incluindo bitola UIC), ou sobre a expansão do metropolitano de Lisboa, para não falar nos também "ouvidos de mercador" sobre as interligações elétricas com França para rentabilizar a produção renovável (eólica, fotovoltaica, hídrica) ou sobre a necessidade de criação no Ribatejo/Oeste e Alto Alentejo de albufeiras para o regadio (apesar da boa experiencia do Alqueva), ou sobre a definição pormenorizada de um plano  de ampliação dos portos (e de construção do porto de Bugio-Cova do Vapor) ou sobre a malfadada política aero-portuária .
Por um lado, o XXI governo apela à discussão pública, mas por outro dá a entender que o objetivo é obter 2/3 de apoio parlamentar (nada a opor). Porém, por experiencia própria através de alguns contactos com deputados, tenho verificado que, apesar de muito boa vontade e alguma informação, de uma maneira geral não têm conhecimentos concretos ou experiências das questões técnicas, como no caso da mobilidade e transportes. Pelo menos é a ideia com que fiquei das perguntas que faziam. Então o dilema será: vamos respeitar as regras da democracia constitucional - compete aos partidos dizer ao governo o que deve executar, mas os deputados dependem do partido que governa e é este que diz aos deputados como devem votar. Ou , dilema, os deputados votam conforme os resultados das suas entrevistas com os técnicos que discordam da política do governo. Como sair do paradoxo/dilema?
Simples, basta cumprir o artigo 2º da Constituição da República:  "...o Estado de direito democrático visa...a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa."
Salvo melhor opinião, quando se diz que os partidos têm de se entender sobre os investimentos para 2030, estão a desrespeitar o artigo 2º da CRP, o que é matéria suficiente para a intervenção corretiva dos restantes orgãos legítimos do poder.
Não  são os partidos, é a sociedade civil.
Mas não é com os métodos tipo “orçamento participativo” que ficam tão bem nas ações de “marketing”.
A coisa precisava de ser dinamizada de outras formas. Recordo alguns capítulos do livro de James Surowiecky, a Sabedoria das multidões, e uma interessante sessão de preparação de estratégias nos transportes  no tempo de António Mexia ministro das obras públicas, transportes e comunicações, em Coimbra :  ver


Portugal e o mar - 4 eventos


Da Transporte em Revista, com a devida vénia:

https://www.youtube.com/watch?v=Gx27wURhu2U&feature=youtu.be

Caro Diretor
Sempre oportuno e com análises pertinentes, o que vale aplausos.
Mas como de costume faço de velho do Restelo (de que outra maneira poderia Luis Vaz expor as suas razões sensatas sem perder a tença?). Refere o orgulho do passado, mas ele só teve relevancia porque a armada portuguesa tinha canhões tecnologicamente superiores aos dos rumes. Nos tempos que correm, os canhões são a capacidade financeira, cuja não temos.
Não tenho dúvidas em subscrever o elogio à realização destes 4 eventos (embora no caso dos cruzeiros só darei o meu aval se for discutida a redução das emissões e da produção de detritos pelos navios de cruzeiro). Mas corremos o risco , num país que só tem 9 navios mercantes (ver "Os últimos marinheiros" de Filipa Melo; será que ainda temos 9? ), de criarmos nestes eventos uma ilusão, de nos juntarmos numa hipnose coletiva em que acreditamos todos uns nos outros em ideias que não batem certo com a realidade, mas que nos dão uma sensação de pertença a um grupo coeso e com bons objetivos. Porém os objetivos só estarão acessíveis com uma estratégia sólida  e resultante de uma discussão pública eficiente e com dados tratados rigorosamente (coisas muito dificultadas pela nossa capacidade inata de nos desorganizarmos e pela fé que temos em "desejados" com capacidade de liderança, por sua vez coisa que D.Sebastião demonstrou não ter) .
Como desenvolver Sines se insistem no seu carater redutor de transhipment, deixando-o desligado da rede transeuropeia ferroviária interoperável ?
Como contentar-nos com a estratégia do porto de Lisboa, perdida a hipótese do porto do Bugio-Cova do Vapor (não fechem a Golada, não, não venham para cá chorar depois, vejam a taxa de assoremento na barra), um porto do interland de Madrid...
Como ficar calado com a ausencia de ligação ferroviária à rede transeuropeia do porto de Aveiro, quando vêm depois com um prémio de consolação ilusório de "ir por Vigo" ou mais virtual ainda, ir pela margem do Douro...
Mas aplaudo os seus comentários.
Melhores cumprimentos, pedindo desculpa pelas alusões ao século XVI e, pior ainda, ao que poderia ser o século XXI.

domingo, 24 de junho de 2018

IKEA - citação de Ingvar Kamprad


Foi divulgada recentemente a carta de despedida do fundador do IKEA para os seus trabalhadores.
Cito uma das suas passagens:

"Nunca confiei apenas em curvas e barras estatísticas ou nas rígidas pesquisas de mercado. Estes dados são apenas uma parte de toda a verdade e frequentemente comprometem os objetivos".

Parece-me uma afirmação muito lúcida, coerente com outras revelando uma conceção correta das relações entre empresários e trabalhadores. Por vezes penso que o neomarxismo devia aceitar essas formas de relacionamento e mesmo apoiá-las, sem prejuízo das análises caso a caso emfunção dos contextos.

Mas a citação serve-me também para pensar em problemas de planeamento de transportes. Por exemplo, o IKEA de Loures ganharia em acessibilidade (a maioria dos seus clientes desloca-se de automóvel privado) se existissem percursos de frotas partilhadas ou "on demand", em sítio guiado de preferencia, entre o IKEA e a estrada de Loures (já que não há transporte ferroviário para Loures, coisa que houve no século XIX, durante 3 ou 4 anos, com o Lermanjat de Torres Vedras-, o desenvolvimento das empresas de camionagem nos anos 30, aliás ilustrado em filmes da época, também não o permitiu). Talvez proponha um esquema desses ao IKEA.

E quanto a planeamento, não hesito em citar Paul Mees, cuja indicação agradeço ao colega Carlos Gaivoto, a propósito também dos "estudos" que são apresentados para justificar soluções de transportes impostas de cima:

"A enfase em fontes secundárias, elasticidades e equações matemáticas produz uma espécie de nevoeiro que torna difícil ver o mundo real"

E de forma um pouco mais acutilante, numa altura em que as soluções aparecem impostas de cima, por razões políticas que se sobrepõem aos critérios técnicos:
Um bom transporte público requer um bom planeamento e uma política correta, a par de competente e honesta administração pública. Essas coisas não aparecem por acidente: requerem uma comunidade informada e ativa que exija altos níveis de desempenho dos seus políticos e burocratas, e insista que as políticas sejam baseadas em evidencias técnicas mais do que em opiniões. A verdade realmente importa, não interessa quão inconveniente seja para o poder, qualquer que ele seja.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Portugal2030, II - iniciativa do governo para ouvir os cidadãos?

É de facto muito importante este tema. Ver

À primeira vista parece ser uma bem intencionada iniciativa do governo, mas não passa, contrariamente ao que diz o senhor ministro, duma "top-down" barata.
O site Portugal2030 existe já há mais de 6 meses e ingenuamente, como pedia contributos, enviei 4 sugestões em janeiro de 2018. Ver

Não recebi acusação de receção, nem muito menos comentário ou indicação estatistica por tema.
Isso quer dizer que desprezam a opinião dos cidadãos, como aliás ficou confirmado à vista de todos nas sessões da OE de 28 de fevereiro sobre a ferrovia internacional e de 3 de abril sobre a expansão do metropolitano de Lisboa. O governo decide, diz que tem a melhor opção e não aceita opiniões contrárias.
Vem agora falar no hipotético conselho superior das obras públicas. Vamos ver se não é um grupinho de boys a dizer amen, nomeado em secretismo para não variar.
Infelizmente o atual governo não parece cumprir o artigo 2º da Constituição: "...o Estado de direito... visa...o aprofundamento da democracia participativa".
Mas se ainda assim subsistirem dúvidas de que se trata de um "marketing" para branquear uma imposição "top-down", marquemos um novo evento sobre estes dois temas: ferrovia internacional e expansão do metro (melhor: reformulação dos transportes da área metropolitana de Lisboa) e sobre o tema interligações elétricas (inclui produção eólica, fotovoltaica e hídrica para exportação). E logo veremos.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Planear uma rede de metro, planear uma linha

Vou transcrever parte do texto final do meu livrinho "Crónicas de um metropolitano", que é mais ou menos um conjunto de memórias, umas ficcionadas e outras menos. Isto a propósito da conveniência de ser discutida qualquer proposta de expansão duma rede de metropolitano, e comparada com outras hipóteses, de acordo com o método científico, caraterizado pela submissão a referendum das propostas, por técnicos e por cidadãos, sem esconder dados:

"... vamos ter confiança em melhores dias. Contra um trabalho secreto de comissões nomeadas por governantes que não conhecem o negócio ou que só teorizam, tentar envolver no estudo de soluções para os problemas  do desenvolvimento, sem protagonismos, não só representantes da indústria, de jornalistas da especialidade, de gabinetes de engenharia e de economia, de organismos municipais, de empresas de transportes, públicas ou privadas, mas também universidades e associações profissionais como a ordem dos engenheiros e associações técnicas especializadas. E que. através das juntas de freguesia e dos mecanismos informáticos mais eficazes de consultas públicas, seja possível, a par e passo da evolução desses estudos, o acompanhamento e a contribuição dos cidadãos."



Segue-se a transcrição de um pequeno powerpoint com uma perspetiva ligeira perante a questão da expansão da rede, qualquer coisa que, se fosse um trabalho académico ou de consultoria, se poderia chamar um roteiro de orientações:

https://1drv.ms/p/s!Al9_rthOlbwejGXHKicabX49xu4n






























sábado, 2 de junho de 2018

Para citar só quatro casos






Caro Henrique Raposo, comentário ao seu artigo:

Parece-me correta a interpretação em relação a Hanna Arendt, mas confesso que não a li, apenas tenho lido umas recensóes. Mas sobre Primo Levi li o Sistema periódico e discordo da interpretação, mas não valerá a pena debater isso. Para mim o que poderia contrariar o caminho para o abismo era o reconhecimento pelos cidadãos que lhe têm impingido versões da História manipuladas e partir daí para um diálogo inter-religiões e inter-culturas sem condições prévias e reconhecendo o direito a não ter religião e a não ser violentado (live and let live)
Que autoridade moral tem a Europa para pregar democracia e valores humanos quando o seu colonialismo foi e é totalitário nomeadamente no médio Oriente? 
Para só citar quatro casos, o bombardeamento de Alexandria descrito por Eça de Queiroz, o ataque a Galipoli, os testes de aviões bombardeiros no Afganistão nos anos 20 e a declaração Sykes-Picot. Claro que não justifica os atentados, mas são por sua vez atentados. Com que autoridade moral se pode criticar uma república islâmica quando governos ocidentais são governados por partidos confessionais como os democratas cristãos  e os seus chefes de Estado são hereditários e até representantes de deus na terra? E pensar que há 100 anos as mulheres não tinham direito de voto em países europeus...Recordar ainda que as religiões abraâmicas, judaica, cristã, muçulmana,  baseiam-se numa bíblia que descreve os atos triunfantes e os massacres cometidos pelo povo eleito sobre povos vizinhos, com a própria vitimização à mistura quando dava jeito (va pensiero, sul asa dorata). Pobre Hanna Arendt, cairam-lhe em cima, como cairiam em cima de mim se eu tivesse visibilidade.

Melhores cumprimentos



Artigo de Henrique Raposo:

Arendt e a questão muçulmana

A judia Hannah Arendt era e julgo que continua a ser uma figura odiada pela maioria dos judeus. Percebe-se porquê. Em primeiro lugar, a tese de Arendt sobre a banalidade do mal de Eichmann parece que retira – à primeira vista – o opróbrio à monstruosidade nazi. Os judeus queriam uma criatura alada, com chifres, cheirando a enxofre e comendo crianças judias ao pequeno almoço, mas Arendt deu-lhes um manga de alpaca. Queriam um Moloch, tiveram um funcionário. Em segundo lugar, Arendt recusou a vitimização absoluta e, mesmo perante o horror de Auschwitz, não deixou de fazer mea culpa. Isto é, não deixou de registar que, no cartório de Auschwitz, existe uma pequena percentagem de culpa judaica, que começa naquilo que ela considerava ser o quietismo inexplicável dos conselhos judaicos.

Tal como as comunidades judaicas do passado, as comunidades muçulmanas de hoje não aceitam a integração nos valores das cidades europeias, a começar na condição feminina
Mas o ponto mais interessante de Arendt nesta questão judaica está um pouco mais a montante. Tal como podemos ler em “As Origens do Totalitarismo”, os judeus tiveram uma quota-parte nas responsabilidades na criação do antissemitismo, porque recusaram sempre a assimilação e o contacto com o mundo “gentio”. Esta realidade também fica claro na autobiografia de Primo Levi, “O Sistema Periódico”: era claro que existia uma recusa consciente e voluntária de não diluição na maioria cristã ou nacional; os judeus até mantinham uma linguagem cifrada. “Repito: compreender não significa negar o revoltante”, diz Arendt em jeito de aviso aos estômagos mais sensíveis. Repudiar o nazismo não implica colocar a cabeça na areia e recusar compreender as raízes históricas do problema, não implica declamar que o nazismo foi feito por demónios inumanos que desceram à terra a partir de uma nuvem de mal.
Julgo que esta questão judaica do passado tem lições para a questão muçulmana do presente. Sim, é verdade que as duas questões não são simétricas. Para começar, não se conhece nos séculos XIX e XX uma vaga de ataques terroristas judaicos às cidades europeias. Ao contrário das comunidades muçulmanas europeias do nosso tempo, as comunidades judaicas dos séculos XIX e XX não criaram movimentos radicais e dispostos a cometer atos de terrorismo. O judeu era até visto como uma figura branda, cobarde e quietista – foi essa a essência do sionismo: nunca mais o judeu baixará a guarda! Existe porém um ponto em comum: tal como as comunidades judaicas do passado, as comunidades muçulmanas de hoje não aceitam a integração nos valores das cidades europeias, a começar na condição feminina. Enquanto este problema não for confrontado, a Europa continuará a caminho do abismo. Recusar confrontar o machismo e homofobia dos muçulmanos, só para dar dois exemplos, é que contribui para a islamofobia, não o inverso. Tem sido esta aliás a tese da Hannah Arendt desta questão, Hirsi Ali.