quarta-feira, 7 de maio de 2014

Poema de Vasco Graça Moura, as musas são assim...

expo’98


“- você dá-me um cigarro?”, disse a musa
de repente a meu lado. os cabelos escorriam água.
e a testa e as faces, toda ela. olhei-a interrogativo. “- é.

estou muito ruisselante. desculpe o galicismo”.
e piscou-me o olho enquanto acendia o cigarro
no meu isqueiro lesto, a t-shirt encharcada

demorava-se nos seus contornos íntimos, acerava-lhe
os bicos dos peitos pelos meus olhos dentro.
rosetas de bronze húmido, enfim, suponho, os jeans e os

ténis deviam pesar imenso, tinha as ancas bem desenhadas.
expeliu uma baforada, o umbigo estava à mostra acima
da fivela do cinto, viu que eu olhava ainda, sorriu.

encolheu os ombros, apontou para a azinhaga das águas tumultuantes.
havia lá mais gente a espadanar sem ter tirado a roupa,
os pais, as mães, os querubins do lar.

tinha passado para este lado da imagem, estava ao pé de mim.
“foi ali”, disse, “agora preciso de uma corrente de ar”.
quando olhei, tinha desaparecido, as musas são assim,

lustrais, perladas, elásticas e jovens.
pedem-nos lume, dão-nos fumo e partem logo. ficam as
notas pessoais: expo. sol, água e vento, gazela do deserto.


Vasco Graça Moura, in giraldomachias –
onze poemas de circunstância e um labirinto
sobre imagens de Gérard Castello-Lopes,
Casa Fernando Pessoa/Quetzal editores, 1999)


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