segunda-feira, 21 de outubro de 2013

O 11ºcongresso da ADFERSIT no centro de congressos do Estoril em 17 e 18 de outubro de 2013

"Meu Senhor, tende piedade dos que andam de bonde..."                                                                            (Vinicius de Morais, o desespero da piedade,  
                                                                                 ver o poema completo no fim deste post)

Podia ter sido este o tema do congresso, que talvez tivesse ficado mais próximo das causas últimas do desolador panorama dos transportes em Portugal, mesmo sem considerar as culpas que nisso a crise terá.
Mas não, o tema foi "Os transportes, a energia e o ambiente".
Graças aos patrocinadores foi possível debater algumas questões relacionadas durante dois dias, no edificio cedido pela camara municipal de Cascais.
Este blogue teve a hora de fazer uma apresentação sobre energias renováveis e a tração rodoviária com hidrogénio, que já foi inserida neste blogue.
A atividade da ADFERSIT, enquanto expressão do conhecimento teórico e prático dos seus técnicos, é uma prova de que é possivel à sociedade civil e aos cidadãos não organizados em partidos mostrar soluções concretas.
Infelizmente, o bloqueio à operacionalização das soluções imposto pela própria estrutura politica e partidária tem sido muito eficaz e a eficácia das ações como as da ADFERSIT reduzida.
Não parece assim ter sido suficientemente profundo o debate que se verificou, nem passíveis de rápida concretização as medidas propostas, nem existirão grandes esperanças de que o poder politico, especialmente na sua vertente económica e financeira, tenham recebido as mensagens.
Fica uma sensação de que a população anda a ser enganada quando é revelado, numa das apresentações do congresso, que no programa dos fundos europeus de coesão 2000-2006,  Portugal utilizou 24% das verbas (equivalente a 5.000 milhões de euros) em  infraestruturas de transportes (certo, já sabemos, muito foi mal gasto em autoestradas, mas consideremos o estado prévio deplorável das ligações rodoviárias). Nos fundos do programa de 2007-2013 foi programada uma utilização de 13% (equiv.2.800 Meuro) para infraestruturas de transportes, que foi baixada para 9% !!! (equiv.1.900 Meuro) pelo atual governo em 2012.
Será, para utilizar os termos de Vinicius, uma piedosa distancia da realidade e das necessidades da comunidade portuguesa em transportes (passageiros e mercadorias,claro) por parte dos decisores.
Ter-se-á manifestado mais uma vez a maldição dos economistas, que manipulam as suas contabilidades sem saber como funcionam na realidade as coisas correspondentes (não se pretende ofender, apenas que perguntem como as coisas funcionam e qual o efeito delas não funcionarem, ou de não se construirem as respetivas infraestruturas).

Foi comunicado no congresso que a UE aprovou o plano dos fundos europeus (QEE - quadro estratégico europeu, sucessor do QREN, dotado, para Portugal, duma verba total de 21.800 Meuro) para 2014-2020 com as prioridades das redes Transeuropeias, que incluem os corredores ferroviários atlanticos Lisboa/Sines/Setubal - Madrid e Leixões/Aveiro - Salamanca (para passageiros e mercadorias, claro).
Ficam assim, mais uma vez, sem argumentação os decisores e seus apoiantes que repetem "não há dinheiro" .
Que parte da frase "a UE aprovou as redes transeuropeias com os corredores atlanticos com comparticipação de 85%" não terão percebido?
Mas há um problema: os projetos já deveriam estar a ser elaborados a todo o vapor, e reina o silencio sobre isso.
Foi dito informalmente que nas verbas sobrantes do QREN ainda cabiam os acabamentos da estação do metro da Reboleira de correspondencia com a linha de Sintra.
E que nas verbas do QEE seriam contempladas a ampliação dos cais da estação Arroios e a adaptação a pessoas com mobilidade reduzida de algumas estações do metro.
Esperemos, embora o problema principal seja aquele: é preciso acabar rapidamente os projetos para a  candidatura ser aprovada, vencer a inércia, o olharmos uns para os outros sem nehuma entidade decisora tomar a iniciativa, enquanto a bola do voleibol cai no chão e a equipa perde o ponto.
Das sessões especializadas em que participei, saliento a necessidade de redução da dependencia de combustíveis fósseis nos transportes (36% da energia primária, 3.700 milhões de euros anuais, correspondente a petróleo importado, é consumido em transportes rodoviários)  através do desenvolvimento de frotas elétricas (relacionado com isto, são boas sugestões a construção de uma linha de muito alta tensão de corrente continua entre Portugal, Espanha e França para absorver o excesso de produção das eólicas, e a conclusão do plano de barragens com centrais hidroelétricas com bombagem).
De assinalar que, entre os participantes, ainda há técnicos que não estão sensibilizados para a maior eficiencia energética por passageiro.km de uma linha ferroviária Lisboa-Madrid quando comparada com a ligação aérea (a economia energética de uma ligação aérea, para alem da taxa de ocupação elevada, reside na baixa resistencia ao deslocamento a alta altitude, em velocidade de cruzeiro; na ligação Lisboa-Madrid o avião tem de começar a descer ao atingir a altitude de cruzeiro, perdendo assim rendimento; por maioria de razão na ligação Lisboa-Porto).
Igualmente se viu no congresso que a perceção da opinião pública ainda está dominada pelo chavão de que as empresas públicas de transportes são mal geridas e que só os privados podem gerir bem o respetivo serviço público.
Trata-se de uma questão que tem de ser analisada caso a caso, que depende dos técnicos executantes e não de ideologias.
Por exemplo, a FERTAGUS dispõe de indemnizações compensatórias por passageiro.km muito superiores às que os metropolitanos e unidades de suburbanos recebem. Foi ainda dado o bom exemplo dos transportes municipais  rodoviários do Barreiro e o mau exemplo da concessionária dos transportes urbanos de Cascais.
Assinalo ainda as excelentes intervenções sobre a problemática a nível global da energia e do ambiente.
Por exemplo, a equação Kaya para estimativa da produção de CO2:  
produção CO2 = população x (volume de serviços/pessoa) x (volume de energia/serviço) x (emissão de CO2/energia produzida)
Por exemplo, a evolução da extração de combustíveis fósseis (fratura hidráulica de rochas de xisto para obtençao de petróleo e gás de xisto - oil and gas shale)


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O Desespero da Piedade
Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta - que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde
ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados - sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

                                       Vinicius de Morais 

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