domingo, 18 de outubro de 2015

Caro André Gustavo

Em primeiro lugar, parabéns pelo teu sucesso nas eleições das legislativas de Portugal de outubro de 2015.
Deixa que te peça desculpa pelo tratamento familiar, que não é vulgar em Portugal, mas espero que me perdoes, atendendo aos meus cabelos brancos, que já vai longe o tempo em que votei pela primeira vez.
Foi em 1969, era ditador o professor Marcelo, que depois se exilou no Brasil, mas que nesse ano autorizou eleições livres, as primeiras depois de 43 anos. E eu digo livres porque a oposição, que na altura era a CDE (ligada mais ou menos ao PCP) e a CEUD (ligada mais ou menos aos que formariam o PS) estavam nas mesas de voto.
Ganhou a União Nacional, suporte da ditadura, com 981 mil votos. Depois foi a CDE, com 115 mil (um dos quais meu) e depois a CEUD, com 17 mil.
Isto para dizer que já estou habituado a votar em minorias, mas sem de maneira nenhuma querer impor o que eu penso à maioria que não pensa como eu. Ou melhor dizendo, voto em ideias e não em ditaduras com goulags, nem em Maduros, nem em Kim Jongs.
E se agora te escrevo, num contexto tão diferente desse ano de 1969 (em que no teu país se vivia também em ditadura...) foi porque me lembrei de fazer uma reflexão contigo.
Nessa altura, estava eu a acabar a minha licenciatura de eletrotecnia (fui um dos poucos privilegiados com um curso superior, nesses tempos) e costumava ler uma revista de telecomunicações e eletrónica, a Wireless World.
Dei por mim a ler um dos seus editoriais e a meditar longamente sobre a questão que punha. O tema era o equipamento eletrónico de um novo tipo de caça fabricado na Suécia e que iria reforçar a aviação da NATO. No focinho do avião estava um arsenal de sensores, detetores, transmissores, radares, cujos esquemas a revista tentava adivinhar e que a grande distancia recolhiam informação sobre o inimigo e utilizavam-na para guiar os misseis até o destruirem.
O editorial fazia uma analogia com os tubarões. Os biólogos já descobriram que o focinho dos bichos está equipado com sensores que detetam a mais pequena porção de sangue e o movimento das presas a grande distancia e que elas não têm hipótese de escapar. E a questão moral era esta: OK, o técnico de eletrónica colabora no projeto, põe a sua ciência ao serviço de arma de matar, e como sabe que quem a detem a utiliza bem? Qual a garantia que um louco não ganhe eleições e não vai pôr os caças a bombardear inocentes?
Assim como assim, Hitler ganhou as eleições e anos depois fez um referendo e ainda teve maior votação, seguindo-se os bombardeamentos de Londres com as V2 e os primeiros caças a jacto.
Na altura não sabia, mas anos depois 4 políticos do mundo ocidental reuniram-se nos Açores e mandaram avançar a aviação sofisticada para apoiar a invasão do Iraque das armas de destruição maciça que afinal não havia, com os resultados conhecidos.
Por uma coisa e por outra, o editorial levou-me a decidir evitar qualquer colaboração fosse com que projeto militar destrutivo fosse.
Mas já na altura reconheci que era legítima essa colaboração, que a responsabilidade de um mau uso de um bombardeiro não é do técnico que o equipa, mas de quem decide a utilização da arma.
Simplesmente não quis trabalhar na industria da eletrónica de armamento, nem criticar os colegas que enveredaram pelo projeto em empresas que vendiam equipamento às forças armadas.
É esse paralelo que estou agora a estabelecer.
Por um lado, é perfeitamente legítimo o teu contrato com o primeiro ministro de Portugal que mentiu aos eleitores em frente das câmaras de televisão nas legislativas de 2011. Sabes, com certeza, daquela vez em que disse que era uma estupidez cortar os subsídios de Natal e depois cortou-os mesmo, ou quando disse que sabia muito bem onde havia de cortar e depois se desculpou a dizer que afinal a situação era mais complexa (sintoma nítido de impreparação).
 Eu sei que estás a pensar "vocês só sabem queixar-se, se vivessem no Brasil, terra de desigualdades ainda maiores, não se queixariam tanto, não sabem a sorte que têm".
Pois, talvez, apesar de tudo este é um país desenvolvido, mas o primeiro ministro que tão bem ajudaste, com o teu "know how", ajudou a aumentar a pobreza e as desigualdades em Portugal.
A riqueza por habitante baixou 12,9% desde 2011, o número mde milionários ultrapassou o número de milionários na Arábia Saudita, 15%  das crianças têm pelo menos um dos pais desempregado há mais de 12  meses, o número de crianças na pobreza ultrapassou 640 mil, mais de um quarto, e sabes como as privações que uma criança sofre condicionam o seu desenvolvimento físico e intelectual, refletindo-se na sua baixa produtividade quando adulto, o risco de pobreza e exclusão social da população em geral subiu 2,1% para 27,5% , claramente acima da média da UE (dados do relatório da Caritas de 2015). Aliás, apenas 40% dos adultos ativos tem o curso secundário completo, quando a média da OCDE é de 77%.
Isto é, aumenta o fosso, e não é por causa da inconsciencia do primeiro ministro anterior e do respetivo ministro das finanças, como o teu cliente costuma desculpar-se, não sei se por sugestão tua, ao mesmo tempo que omite a gravidade da crise financeira internacional de 2008 e o atraso indesculpável do BCE em intervir até baixar as taxas de juro dos empréstimos.
É porque a política do teu cliente e dos seus ministros das finanças foi de clara transferencia do rendimento do fator trabalho para o fator capital, desperdiçando a oportunidade que o petróleo barato e as taxas de juro baixas proporcionaram.
Vou mostrar-te dois gráficos. Talvez queiras utilizá-los nas tuas apresentações, porque compara as desigualdades em vários países e relaciona-as com os problemas sociais em cada país. Foram retirados de um livrinho de que os economistas neo-liberais que nos governam não gostam nada, "The Spirit level", de Richard Wilkinson e Kate Pickett ("O espirito da igualdade, por que razão sociedades mais igualitárias funcionam quase sempre melhor", ed.Presença).


Ponho estes gráficos aqui para mostrar que uma das prioridades de qualquer governo em Portugal deveria ser o combate às desigualdades, o que o teu cliente, com os números que já citei, demonstrou não querer.
Foram 4 anos perdidos, digo-te eu não só pelo que já disse.
Mas também pelo que o governo do teu cliente não fez na minha área profissional.
Parou investimentos que tinham financiamento através de fundos comunitários, de linhas de alta velocidade que ligariam à Europa em bitola internacional a estações de metro que economizam combustível importado, privatizou empresas de produção e distribuição de eletricidade sem primeiro reduzir as taxas de rentabilidade dos produtores, desperdiçou candidaturas a fundos comunitários para aumentar as interligações energéticas com a Europa (só uma pequena parte foi proposta).
Dirás que sou parte interessada porque me cortaram o complemento de reforma, que era mais uma prova de que sou um privilegiado.
Pois, serei, mas era um contrato. Como é um contrato pagar a dívida ao credor. Só que o teu primeiro ministro é forte com os fracos e fraco com os fortes. Não quer sequer ouvir falar na taxa Tobin nem em renegociar a dívida (ao menos os prazos...) mas acha que o contrato com os reformados não precisa de ser respeitado.
Tem o conselheiro do primeiro ministro que sacrifica assim o seu povo consciência de que é cúmplice na sua ação, ou sente apenas que se limita a cumprir um contrato? como o técnico de eletrónica do jacto da NATO ... se receber uma proposta de uma força política oposta considerá-la-á?
Glorificaste na campanha eleitoral os exitos da parte da sociedade portuguesa que tem crescido apesar da crise, desviando os holofotes da outra parte, que aliás prefere abster-se nas eleições, assim aumentando um fosso de desigualdade de rendimentos que já era inadmissível.
Discretamente deixaste no esquecimento o crescimento da dívida, a pública e a privada, o défice acima do previsto (ai a ministra das finanças que, imprudente, não segue as tuas recomendações e nega a evidencia...) porque tudo isso mete contas e faz doer a cabeça.
Aproveitaste a ténue subida do PIB e a descida da taxa de desemprego para ganhares eleitores. Deixaste na penumbra a sangria da  emigração e a diminuição da população ativa, que sabes muito bem que nestes casos é melhor não dizer nada. E aquela ideia de retirar os desistentes da estatística do desemprego quando se atrasam um dia em responder à pergunta se ainda estão desempregados foi tua? cerca de 50 mil todos os meses, foi uma boa ideia ... mas não deve ter sido tua, não te tenho nessa conta, apenas a aproveitaste. Conheces, com certeza, a lei de Philips, que relaciona o desemprego com a baixa de preços. É esse o objetivo do teu primeiro ministro, conte os preços, e para isso precisa de aumentar o desemprego para, baixando a procura, baixar os preços. Mas o teu marketing tem de dizer o contrário às pessoas, e para isso nada melhor do que umas contas maquilhadas do desemprego, não é?
E deu resultado, isso e a condução da imagem.
Embora saibas que é o conteúdo, a essencia, o concreto, e não a imagem, a aparencia, o virtual, que resolvem as coisas.
Até os indicadores da saúde, depois de se agravarem nos dois primeiros anos com os cortes em serviços essenciais, mostraram ligeiras melhorias á aproximação das eleições...

Difícil, este dilema moral.
Difícil governar um país.
Difícil, combater as desigualdades, uma sociedade dividida entre sucesso e insucesso.

Vamos ver como correm as coisas, como o povo português mais sacrificado vai reagir à continuação das dificuldades, como combaterá a promiscuidade entre o poder económico-financeiro e o poder político.
Encontramo-nos nas próximas eleições?

Até lá desejo-te, eu e também os reformados, os desempregados e os desvalidos deste país, os maiores sucessos profissionais e pessoais.

Um abraço







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