Há 65 anos, era eu um préadolescente deslumbrado com as histórias aos quadradinhos do Cavaleiro Andante que me chegavam ao sábado (agora diz-se banda desenhada), li uma história de que não me esqueci, talvez por ter vindo a trabalhar em questões relacionadas com o tema.
Nos anos 50 vivia-se a euforia do automóvel como novo padrão da mobilidade (como agora se costuma dizer, embora na altura apenas se dizia, nos paises produtores, que era preciso exportar, e nos paises consumidores, que ter carro era sinónimo de progresso). A capacidade industrial desmobilizada a seguir à guerra reconvertia-se na produção automóvel. Também na altura a capacidade de produção nuclear se reconvertia nas boas intenções do programa "átomos para a paz", mas essa é outra história.
O professor Eleutério Antunes e a senhora reformada das Finanças Bertolina da Silva eram os herois da aventura do Cavaleiro Andante e os dois únicos habitantes da cidade que não tinham automóvel.
Os funcionários das diferentes marcas insistiam com eles e tanto que finalmente conseguiram vender um vistoso Pantera vermelho ao professor Antunes e um discreto Pirolito branco à senhora Bertolina.
As coisas acabaram por não correr bem, a senhora tirou a carta à pressa e não tardou que batesse num muro a fugir de atropelar um gatinho branco e vendesse os restos do Pirolito. O professor Antunes simplesmente cansou-se do seu Pantera, que não eram para ele acelerações tão fulgurantes nem engarrafamentos tão entediantes. E como os serviços de autocarros da cidade cada vez eram mais exíguos, também vendeu o carro e mudou-se para perto do liceu onde dava aulas. Isto é, aqueles dois cidadãos não se adaptaram ao novo padrão de mobilidade.
Lembrei-me desta historinha ao assistir à conferencia Wise Mobility, em 20 de setembro de 2019 na Central Tejo, promovida pela Câmara Municipal de Lisboa (CML).
A CML empenha-se, com o mesmo entusiasmo dos vendedores do Pantera e do Pirolito, a promover a ideia da mobilidade inteligente (o que põe a hipótese de haver mobilidades não inteligentes) que deverá ser, cito de cor, "conetada e digital, elétrica, partilhada, e a pensar na autonomia" e baseada nos esquadrões de bicicletas e trotinetas elétricas partilháveis (vá que não se insiste nas segway/diciclos, nos hoverboard/diciclos, nos monociclos e outros autoequilibrados, nos patins elétricos e nos hoverkart/sucedâneo dos carrinhos de rolamentos, isto para não imaginar os flyboard air de Zapata nos ares de Lisboa).
E lembrei-me porque não me sinto vocacionado para subir para uma trotineta e ir por aí, em vez de andar um bocadinho até à estação de metro ou paragem de autocarro ou praça de taxis mais próxima. Não que tenha alguma coisa contra uma peça de engenharia interessantissima, desde o seu modo de tração, com baterias de litio e motores de imans permanentes (ai a necessária extração de neodimio, do praseodímio e do disprósio, isto é, de terras raras) à sua geolocalização e gestão. Mas desde adolescente, quando tive dois acidentes, que não gosto de andar de bicicleta.
Por outras palavras, há cidadãos, como eu, que não se adaptam ao padrão de mobilidade proposto. Especialmente quando se percebe que os chamados modos suaves (bicicletas e trotinetas), não são uma solução de mobilidade para a cidade, são principalmente um complemento dessa mobilidade e um meio de lazer. Pese evidentemente o entusiasmo e proselitismo com que neste tipo de conferencias se defendem as bicicletas e as trotinetas.
Foi importante ouvir do senhor vereador da mobilidade da CML que tem receio que os seus filhos sejam atropelados, e creio que se referia tanto aos automóveis, diabolizados sem o querer reconhecer pela politica da CML, quer por trotinetas ou bicicletas, dada a pouca preocupação dos utilizadores em cumprir as regras de segurança. Mas receio que tais manifestações de preocupação com a segurança dos municipes sejam mais de imagem do que de substancia, sem negar evidentemente a sinceridade como pai. É que, como técnico de transportes, tenho de recordar que as questões de segurança se tratam com análises de risco com base em estatísticas fiáveis. Ora, quando é a própria colaboradora do senhor vereador que vem afirmar no periodo de debate, que a CML não dispõe das estatísticas de sinistralidade de trotinetas e bicicletas, só posso afirmar que o sistema está a funcionar em condições deficientes de segurança e de falta de garantia aos municipes, utilizadores ou não. Não é admissível que continue a faltar uma estatística fiável.
Vários intervenientes afirmaram que eram irrelevantes os acidentes com trotinetas e bicicletas quando comparados com os acidentes de automóvel.
É verdade, mas a comparação deve ser feita entre a situação anterior e a situação atual, tendo em atenção que as condições são gravosas para as pessoas de mais idade, com limitações visuais e de locomoção, quando têm de conviver com as duas rodas em vias cicláveis adjacentes aos passeios e quando têm de atravessar sucessivamente vias para automóveis e vias para duas rodas, estas com dois sentidos e com possibilidade das trotinetas atingirem mais de 25 km/h.
É imperioso que se atribuam meios à ANSR (autoridade nacional para a segurança rodoviária) para combater a sinistralidade rodoviária, aliás de acordo com as orientações da UE, com campanhas para alteração de comportamentos e contenção da velocidade.
A comparação também se deve fazer considerando o número de acidentes fatais por milhar de milhão de passageiros-km para cada modo de transporte. O número de passageiros-km equivale ao somatório de todas as deslocações feitas por todos os passageiros.
Citando o statistical pocketbook da DG MOVE, em 2012 contabilizaram-se as seguintes mortes por mil milhões de passageiros-km: 52,6 para as duas rodas, 4,5 para os automóveis e 0,2 para os comboios. Isto é, para o mesmo número de passageiros e de km morre 12 vezes mais gente com as duas rodas (em 2012 ainda não se tinha dado a expansão das trotinetas e das bicicletas partilháveis) do que com os automóveis.
Será diferente em Lisboa? É inadmissível continuarmos sem uma estatística fiável que nos permita avaliar os riscos.
Tentemos uma aproximação. Considerando 400.000 automóveis por dia a entrar e sair em Lisboa e a fazer cada um 20km e 200.000 automóveis a circular internamente em Lisboa e a fazer cada 10km teremos 10.000.000 automóveis-km por dia. Admitindo 1,2 passageiros por automóvel tem-se 12.000.000 passageiros-km por dia. Considerando 4000 trotinetas a fazer cada uma 4 km teremos 16.000 passageiros-km por dia. Isto é, 700 vezes menos do que os passageiros-km dos automóveis.Ou que a gravidade de uma morte com trotinetas equivale a 700 mortes com automóveis.
Como conseguir uma estatística fiável dos acidentes com trotinetas e bicicletas se muitos dos acidentes não são registados pela polícia? Provavelmente a solução será recolher junto das administrações hospitalares, que aliás se queixam da subida de politraumatizados por acidentes com duas rodas, os registos de admissões nas urgencias de acidentados com duas rodas, quer utilizadores, quer atropelados. Isso é urgente que se faça, inclusivamente para fundamentar medidas disciplinadoras da utilização das duas rodas.
Não é admissivel que circulem nos passeios em clara violação do código da estrada, não é admissivel que as trotinetas circulem a 25 km/h (ou 7 m/s) em vias cicláveis adjacentes a passeios, porque uma conjugação de circunstancias dadas as limitações de mobilidade de muitos peões pode levar a uma colisão:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2019/05/os-21-novos-radares-para-controle-da.html
Não é admissivel que, sendo considerados veículos pelo código da estrada, passem os sinais vermelhos ou circulem em contramão.
Não é admissível que bicicletas e trotinetas utilizem as passadeiras de peóes como se o fossem, não é admissível que os ciclistas circulem nos passeios obrigando os peões a desviarem-se ou a adotar medidas defensivas.
Não é admissível que a CML proceda como se ignorasse tudo isso. Não é admissivel que um secretário de Estado da Administração interna dê orientações à PSP para não fiscalizar o uso do capacete nem de outras infrações das duas rodas partilháveis: https://rr.sapo.pt/2018/12/20/pais/ministerio-da-administracao-interna-diz-que-capacete-deixa-de-ser-necessario-nos-velocipedes-a-motor/noticia/134936/
A reunião de 11 de dezembro de 2018 com o secretário de Estado da Administração interna é um episódio gravissimo de desrespeito pelo código da estrada, pelas normas de segurança rodoviária e pelo direito à segurança dos cidadãos , em favor do facilitismo e da leviandade no uso dos veículos de duas rodas com motor, auxiliar ou não. (art.82º - 5 do código da estrada: Os condutores e passageiros de
velocípedes com motor e os condutores de trotinetas com motor e de dispositivos
de circulação com motor elétrico, autoequilibrados e automotores ou de outros
meios de circulação análogos devem proteger a cabeça usando capacete devidamente
ajustado e apertado).
Não é admissível que a ANSR omita a discriminação das bicicletas e das trotinetas nas estatísticas dos acidentes por categoria do veículo porque isso impede uma análise de riscos.
Do relatório de sinistralidade rodoviária da ANSR de 2018 retira-se que houve 88 mortes nas estradas e nas vias urbanas do distrito de Lisboa.
Das 88 mortes, 30 foram dentro dos limites do municipio.
Das 88 mortes, 63 foram em zonas urbanas.
Das 88 mortes, 37 foram por atropelamento, 25 por colisão e 26 por despiste.
Das 88 mortes, 38 foram peões, 6 em bicicletas ou bicicletas com motor e 22 com motociclos.
É uma situação intolerável e as palavras do senhor vereador da CML na conferencia Wise Mobility não são tranquilizadoras porque se vê o tempo a passar e não se vê uma campanha eficaz contra a sinistralidade rodoviária, automóveis e duas rodas, nem a aplicação de medidas de regulação e de fiscalização do uso das bicicletas e das trotinetas.
Pelo contrário, a tolerancia da CML e a tolerancia imposta à PSP acabam por induzir comportamentos de risco e abusivos nos utilizadores.
Ver por exemplo a iniciativa da UE em http://mobilityweek.eu/Urban-Road-Safety-Award
Dados sobre a sinistralidade com trotinetas em Londres apresentados de maneira diferente do que o representante dos TFL referiu na conferencia (0,4% do total de mortes):
https://www.theguardian.com/uk-news/2019/jul/13/tv-presenter-emily-hartridge-dies-in-scooter-crash
https://fullfact.org/health/cyclist-deaths/
Nas intervenções durante a conferencia raramente se fez referencia ao transporte coletivo em sítio próprio (metro ou metro ligeiro de superfície, este com pedonalização de ruas ou recurso a desnivelamentos) como solução para a mobilidade urbana. Foi no entanto referida a necessidade de fazer a integração dos vários modos de transporte coletivo com o exemplo de Berlin.
Embora pôr 50% da população a andar de trotineta ou bicicleta elétrica na cidade seja muito bom para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, não o será do ponto de vista da segurança, conforto e rapidez devido ao congestionamento por impossibilidade física de acomodar o respetivo tráfego, como se analisa em:.
https://time.com/5659653/e-scooters-cycles-europe/
https://en.wikipedia.org/wiki/Cycling_in_Copenhagen#/media/File:Cyclists_at_red_2.jpg
Parece ser consensual a necessidade de reduzir a dependencia do automóvel, mas as medidas de acalmia como penalização do estacionamento e redução das vias para circulação automóvel (a CML tem evitado usar uma solução eficaz, as portagens no acesso ao centro) sem compensar com aumento da capacidade do sistema metropolitano têm vindo a agravar o congestionamento na cidade.
Um pouco dececionante a intervenção do representante da Free2Move, não correspondendo ao anúncio das tendencias tecnológicas.
Interessante a referencia a Pontevedra e à importancia de projetar com as crianças na mente (playstreet).
Interessante a informação de que nas redes sociais se discute muito a mobilidade suave na cidade.
Pena não estarem disponíveis as apresentações.
Muito agradável, o cocktail no fim da conferencia, embora das conversas que tive tenha retido a confirmação de que a CML adotou uma postura olimpica e imperial. Decide e estuda, que até tem bons técnicos, mas depois convoca os cidadãos para os informar, já com os projetos fechados e inamovíveis. E isso acontece, desde o planeamento da rede de metro ao arranjo da mais acolhedora praça de bairro. Mas quem sou eu, se qualquer bom francês continua a prestar homenagem ao seu imperador no arco do triunfo...
Não tive paciencia para fazer uma observação que às vezes faço à saída deste tipo de conferencias, que é o de avaliar a percentagem de assistentes que vão para os seus carrinhos, dos que vão para o transporte coletivo e dos que vão para a mobilidade suave. Pela minha parte, fui à rua da Junqueira apanhar o 727 até à avenida dos Estados Unidos. Sem contar o tempo de espera, 1 hora certa de caminho. São 9 km/h. E se substituirmos os automóveis do percurso congestionado por outra coisa que não seja metro ou metro de superfície (LRT, em viaduto quando necessário para evitar os cruzamentos mais gravosos), teremos o mesmo percurso congestionado por trotinetas e bicicletas. Salvo melhor opinião, claro. Mas aqui também a discussão deve basear-se nos números de passageiros-km ou viagens-km .
Enfim, o problema da mobilidade urbana é complexo, mas se houver humildade da parte dos gestores do espaço público , abertura à participação dos cidadãos (não confundir como até aqui participação dos cidadãos com informação de factos consumados aos cidadãos) e capacidade de reconhecer erros, omissões e atrasos, talvez consigamos, pouco a pouco, melhorar a situação.
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