quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Não brinquem com o São Carlos

Eu faço um esforço para não falar sobre coisas de que não percebo nada e limitar-me a falar sobre coisas que conheço pouco, uma vez que, por respeito para com a teoria do conhecimento, não tenho esperanças de perceber muito seja do que for. Isto é, nunca poderei dizer que estou tão dentro dos assuntos como as ilustres senhoras e os ilustres senhores que compõem a lustrada lista de ministros e secretários de Estado do XXII governo.
Dado que vejo óperas no São Carlos há mais anos do que a média de vida dos senhores e senhoras ministros e ministras e sou assinante há mais anos do que anos de vida tem o ilustre ministro mais jovem, e que assisti à agressão cometida há anos contra ele, São Carlos, por uma muito ilustre senhora ministra da cultura do partido do governo ao despedir sem justa causa e por mera reação de apoio ao "meio" e seus conhecimentos, dele "meio" , um dos melhores diretores artísticos que por lá passou, Cristopher Dammon, o qual saiu de funções e do país pensando de si para consigo como é possível isto acontecer num país que até tem alguns indicadores de desenvolvido, dizia eu que talvez me possa pronunciar sobre um pormenor da referida lustrada lista.

Não quero também que os adeptos do branco e negro, não a sobremesa, mas o que não é branco é negro e o que não é negro é branco, fiquem a pensar que no tempo do XIX governo é que era bom. Bem tentou o maestro Vitorino de Almeida entusiasmar os sisudos e sisudas ilustres ministras e ministros do XIX governo, começando por convencê-las e convencê-los a irem a um concerto ao ar livre de música clássica, às portas do Palácio da Ajuda que agora aguarda o atamancamento do lado ocidental (que me perdoe o arquiteto do fecho do poente do palácio, porque de facto sou um ignorante de arquitetura, mas é que o projeto pouco tem de classicismo musical). Pobres, as caras de enfado que ficaram registadas na reportagem da televisão. E claro, aparecerem no São Carlos para assistirem a uma ópera nem pensar.

Mas voltando ao tema e à lustrada lista do XXII governo. Confirma-se que o senhor secretário de Estado da Presidencia do Conselho de Ministros, André Moz Caldas, é o mesmo senhor doutor André Moz Caldas, que era até agora o ilustre presidente do conselho de administração do OPART, entidade gestora do São Carlos e da companhia nacional de bailado.
Este senhor doutor foi nomeado como comissário político do partido do governo para estancar a crise da greve no São Carlos que motivou a supressão das 5 récitas da Boheme (devolveram-me o dinheiro dos bilhetes, mas não devolveram a dignidade ao teatro) e que ameaçava dar cabo dos espetáculos do festival ao largo, que têm impacto turistico "et pour cause" , como o senhor administrador teve formação musical era a pessoa indicada para convencer os trabalhadores do São Carlos a terminar a greve prometendo-lhes negociações razoáveis, embora seja confuso considerar o conceito de razoabilidade quando o prejuízo de ficarmos sem  as cinco Boheme foi superior aos custos de equiparação dos vencimentos do S.Carlos aos do bailado. A coisa esteve mesmo feia porque a senhora ministra da cultura lembrou-se de dizer que a coisa se ultrapassava aumentando o numero de horas de trabalho na companhia de bailado, para assim o salário por hora ficar nivelado dum lado e doutro. A eterna mania de nivelar por baixo. Se temos de erradicar alguma coisa, que se erradique a pobreza, não a riqueza, até já se ganham prémios Nobel a estudar isso... e então alguém no XXI governo disse que o senhor doutor André Moz Caldas para além de ser músico, era também chefe de gabinete do senhor ministro do Tesouro, perdão, das Finanças, que do Tesouro e da Fazenda Nacional são designações indignas desta era de transição digital (curiosa a transição da transição energética para ação climática...) e que por isso sabia muito bem que a verba para nivelar os vencimentos do São Carlos estava no orçamento de Estado e que ele era a pessoa indicada para oportunamente descativar a verba, mas só oportunamente, depois de ser nomeado presidente do OPART. Seria qualquer coisa como o mito urbano diz, que a mordedura do cão se cura com a baba do cão. Mito, disse-me a doutora veterinária do meu cão, a baba do cão só tem bactérias que só sabem fazer mal.  Terá sido por isso que nomearam agora o senhor doutor André Moz Caldas secretário de Estado. Sairá do OPART? Irá acumular? Os grandes gestores têm capacidades não sonhadas por Stuart Mill, que achava, ignorante dos meandros quanticos, que não se podia estar ao mesmo tempo em sítios diferentes. Tão pouco tempo no OPART, se sair, sem ter tido tempo de nas poucas entrevistas que deu dar um arzinho de um programa de ação. É que os teatros de ópera têm de planear pelo menos a dois anos. Eu sei que um bom português se recusa a fazer isso quanto mais não seja por patriotismo, como diria o diretor despedido Dammon, mesmo sem se fazer planeamento o país tem indicadores de desenvolvido. Pelo que me deixou um travo de desilusão a entrevista da nova diretora artística do São Carlos, nomeada pela senhora ministra da cultura não apresentou sequer um esboço de um programa de ação e de uma programação. É verdade que a senhora já tinha concorrido no concurso que selecionou o diretor artístico que saiu agora, Patrick Dickie, dizendo também de si para consigo como é possível num país desenvolvido acontecerem coisas destas, mas falta a cultura do concurso neste país, prefere-se o ajuste direto, desde a adjudicação da exploração de minas de lítio às empreitadas mais vulgares, nada que se compare com o que os ingleses fazem, concurso internacional para governador do banco de Inglaterra).

De modo que, talvez por influencia da recente apresentação da ópera a Força do destino, de Verdi, ainda programada por Patrick Dickie, que tive o gosto de assistir em 12 de outubro de 2019, receio que tempos dificeis esperem o São Carlos. Dum lado o Olimpo com os seus deuses, do outro os que com o seu trabalho erguem os espetáculos. A força do destino, uma história do romantismo trágico, que Verdi aproveitou para pregar a guerra aos tedeschi em defesa da libertação da Itália (perigoso, fazer a transposição para o confronto económico-financeiro atual, tedeschi-italiani...), de mistura com a reação da nobreza castelhana contra o descendente "mulato" dos incas (pensar que o heroi da força do destino poderia ter sido o Tupac Amaru que morreu no naufrágio de Peniche em mais um episódio do colonialismo europeu) e com o sentimento de honra manchada que leva um irmão a matar a irmã que se ligara ao inca não aceite pela família, sentimento de honra que afinal na cultura ocidental estava vivo há apenas dois séculos. Muito boa a interpretação do soprano português Cristiana Oliveira, ainda há quem faça o seu trabalho com gosto e qualidade.

Aguardemos os próximos episódios. Pouco de bom se espera. Provavelmente vão continuar a brincar com o São Carlos como até agora, aprisionado no "meio" fechado da cultura e da política. Viria a propósito programarem o Crepúsculo dos deuses, ou o Macbeth, o da mão invisível que castiga os manipuladores. A ópera pode ser perigosa para os poderosos.

Sem comentários:

Enviar um comentário