quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Um conto de Natal - cartas de Kuçadasi




Cartas de Kuçadasi

Primeira carta

Querida amiga
Engraçado, depois de tantos anos, tratá-la assim. Talvez porque tenho andado a ler Tchekov e Oscar Wilde. Coisas da idade.
Escrevo-lhe para lhe dar notícias e porque gostava muito de a ter aqui no dia de Natal. Continuo em Kuçadasi, naquele pequeno hotel em que estivemos uma vez, há muitos anos. Quis ter uns dias de isolamento para finalmente escrever o que vinha a desejar há muito. Dirá que é a velha mania de querer mudar, ou mais corretamente, melhorar o mundo, coisa de que não consigo libertar-me.
Da janela da sala onde costumo escrever vejo o Egeu, magnífico. O pessoal aqui é muito simpático, interessa-se verdadeiramente por mim, e deixam-me sair sem fazer perguntas. Limitam-se a chamar-me um taxi e depois deambulo pelos museus e  ruinas da região de Esmirna. Efeso está mesmo aqui ao lado. Cuidaram bem do legado da Grécia antiga, conservaram os templos de todas as religiões, o que me leva a comentar a cópia de uma inscrição com um poema do imperador Juliano, o último imperador romano pagão, que vi no museu de Esmirna. Um poema ao sol, como se fosse um hino ao Natal, anunciando os dias maiores a seguir ao solstício de inverno e a promessa de grandes colheitas. E não será o mesmo que o desígnio central do islamismo nomeia como a paz, num clima adverso ao nosso ciclo agrícola? Ou os nirvanas orientais? Somos diversos mas dentro de um domínio dependemos do determinismo; é como na física e na matemática, o nosso cérebro reage da mesma forma e a mente humana deseja uma festividade. Pena os resquícios que nele ficaram das leis da selva nos dividirem e lá vamos nós sacrificando os inocentes a Moloch e aos deuses das guerras santas.
Mas estou a maçá-la, Kuçadasi não tem culpa das minhas lucubrações. Meta-se num avião e venha.
Um beijo.

Segunda carta

Querida amiga
Que pena tive por não ter podido vir. É verdade, esqueci-me que tinha a excursão dos seus meninos da turma mais adiantada, à neve. Isso tem prioridade, claro, mas tive cá toda a família, até as mais pequeninas. O dia esteve radioso e o Egeu, lá ao longe, muito calmo.
Adeus, já não devo demorar, tenho o livro quase pronto.
Um beijo

Epílogo por quem recolheu as cartas

Sou a responsável pela clínica de cuidados paliativos onde o engenheiro José estava internado e onde faleceu serenamente no dia seguinte ao do Natal. Coube-me a mim recolher as suas coisas e encontrei estes dois textos que possivelmente, na sua imaginação vítima de senilidade, terá pensado que enviou à esposa. Daqui não vemos o mar Egeu, apenas o Tejo, onde sei que ele trabalhou. Era centenário, quase não tinha família mais chegada porque muitos foram morrendo. Mas estiveram cá no dia de Natal as duas netas. E com ele também todos os que o cuidavam e que ele tomava por pessoas da família e por antigos amigos. E sim, estiveram felizes.


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