Para Presidente da Câmara Municipal de Lisboa cc da digna vereação e órgãos institucionais
Assunto: Jornadas Mundiais da Juventude
Chocado com mais um acidente num evento ao ar livre, em Houston, em 5nov2021 num concerto de musica pop, dirijo-me a V.Exa depois de ter já enviado uma análise de riscos expedita ao senhor Presidente da Câmara de Loures e à comunicação social manifestando sérias reservas sobre as condições de segurança possíveis para a zona escolhida para a JMJ.
Espera-se que o grupo de projeto nomeado pela RCM 45/2021 pondere os riscos associados, tal como as duas câmaras envolvidas.
Sobre as condições de segurança requeridas em eventos ao ar livre existe uma interessante tese que inclui a análise de uma série de acidentes com multidões em:
https://comum.rcaap.pt/bitstream/10400.26/19418/1/2015.04.016_.pdf
Além da lista de acidentes incluída nessa tese, há a acrescentar:
- 21 mortos num túnel inclinado de saída do festival Love Parade em julho de 2010 em Duisburg, Ruhr, capital da cultura, num recinto por onde passaram de 200 mil a 1,4 milhões de pessoas
- 45 mortos numa viela inclinada de cerca de 6 m de largura, entre muros, num festival religioso em Israel, Mount Meron, em abril de 2021, num evento com cerca de 100 mil pessoas
- 8 mortos estimando-se num concerto de musica pop em Houston, por compressão contra o palco, numa assistência de 50.000 pessoas.
Após 7 anos, a investigação do acidente em Duisburg concluiu que a maior parte destes acidentes não têm origem em ataques de pânico, mas são um fenómeno não determinista a que chamaram “turbulência da multidão”, em que as pessoas em espaços restritos se pressionam em movimentos alternados, podendo aleatoriamente o fenómeno entrar em ressonância aumentando as pressões entre pessoas, provocando quedas e esmagamentos. Pode observar-se este fenómeno, antecedendo o acidente de Israel no vídeo em (instantes 22 a 33 segundos):
Dozens ‘crushed to death’ in Israel pilgrimage stampede | Religion News | Al Jazeera
A portaria 135/2020 estabelece as condições mínimas de segurança a respeitar em recintos cobertos e ao ar livre:
https://www.ordemengenheiros.pt/fotos/editor2/noticias/portaria_135.pdf
Admitindo, conforme o art.51 da portaria, 3 pessoas por m2 na zona do aterro onde se prevê a missa papal e uma área para a multidão de 28 ha, teremos 3x280.000 = 840.000 pessoas.
De acordo ainda com a portaria (art.56) por cada 300 pessoas deverá ser garantida para evacuação uma unidade de passagem (1 UP = 0,6m), o que conduz a (840.000/300) x 0,6 = 1680 m de largura livre para evacuação. Este valor é incompatível com os limites do terreno, que são os rios Tejo e Trancão, edifícios, arruamentos e uma ETAR.
Em entrevista o responsável pela equipa de projeto afirmou que esperava 2,5 milhões de participantes. Considerando a área disponibilizada pelo despejo até 22 de dezembro de 2022 do terminal da Bobadela para realização das restantes atividades do festival, teremos cerca de 40 a 50 ha utilizáveis o que para uma concentração menor poderia dar 1 milhão de pessoas e 2000 m de largura de evacuação. No entanto, essa área consiste em 12 ha de sapal mais uma faixa com cerca de 2 km de comprimento e largura variável de 150 a 350 m, entalada entre a linha férrea e uma via rápida, o IC12. Não sendo aconselháveis túneis pela proximidade do Tejo, as unidades de passagem teriam de ser construídas em passadiços com a largura requerida sobre a via férrea e a via rápida (o que aliás se verificará quando se quiser transformar o terminal da Bobadela em zona de Lazer).
Por todo o exposto, faço como cidadão o pedido que se estude outro local para as JMJ em campo aberto sem zonas de risco envolventes.
Por mais válidos que sejam os argumentos da fruição de um espaço com vista para o Tejo (uma vez que, dado o carater laico da República, não são válidos argumentos que privilegiem uma religião ou justifiquem para ela uma dotação financeira extraordinária), estamos também perante uma desconsideração pelo valor económico da atividade da plataforma logística da Bobadela, que tem desempenhado um papel relevante na economia nacional através da movimentação de 300.000 contentores por ano, servindo o porto de Lisboa e o transporte rodo-ferroviário de mercadorias, sendo muito mais do que um depósito de contentores.
Não somos um país rico que deva e possa desconsiderar este argumento. Acresce que tendo já sido ordenada a libertação do terminal sul, concessionado à Medway (parque sul, 7,6 ha, 85.000 movimentos por ano), observo que não foi estudada uma alternativa comparativamente vantajosa (Castanheira do Ribatejo encarece o transporte de e para o porto de Lisboa), o que vem confirmar a dificuldade dos decisores políticos em concretizar um planeamento estratégico (primeiro fecha-se um terminal e depois nomeia-se um grupo de estudo).
Outro exemplo que ilustra a falta de planeamento estratégico diz respeito à atual indefinição sobre o futuro traçado da linha de alta velocidade Lisboa-Porto (se se aproxima de Lisboa pela margem esquerda ou direita), sobre a localização do novo aeroporto para o horizonte 2050, sobre o traçado da nova travessia ferroviária do Tejo para alta velocidade, suburbanos e mercadorias. Justamente a zona da foz do Trancão é uma das que configura hipóteses válidas para a passagem da nova linha Lisboa-Porto e para a amarração do túnel ou ponte de travessia ferroviária do Tejo.
Compreende-se o interesse da direção da Câmara de Loures em proporcionar vistas de rio e espaço de lazer incluindo a ciclovia marginal, mas observo que no projeto inicialmente divulgado para as jornadas não há ocupação do espaço atualmente ocupado pelo terminal de contentores, mas apenas dos terrenos da GALP (embora a resolução do conselho de ministros 45/2021 diga que o parque sul do terminal é necessário pra preparar o evento). Verifica-se assim que para a Câmara de Loures a desmobilização do terminal é um aproveitamento das jornadas.
No tema de zonas de lazer, ainda duas observações:
1 – será sempre possível estudar soluções de redução da área de ocupação por contentores da plataforma logística, sem com isso prejudicar a economia e, ao mesmo tempo, criar ou ampliar algumas zonas de vistas de rio livres
2 - se se pretende aproveitar os terrenos do terminal de contentores para lazer, ter em atenção que se trata de uma faixa estreita entalada entre a linha férrea do norte e o IC12 (A30). Isto é, a sua utilização para lazer só poderá fazer-se com rigorosas medidas de isolamento com vedações normalmente intransponíveis (o que por si só constitui contraindicação de segurança) e com passadiços sobre a via férrea e via rápida, sendo certo que as regras da segurança impõem equipamento dissuasor de lançamento de objetos e dimensionamento em função do número de pessoas no recinto (previsão dos canais de evacuação conforme exposto anteriormente). Acresce que do lado do rio relativamente ao IC12 o terreno é de aluvião; seja ou não consolidado, nunca poderá ser considerado caminho de fuga em caso de pânico. Se efetivamente é importante construir uma zona de lazer, o dimensionamento do plano superior à via férrea e à via rápida terá de ser o correto, o que permitiria, se financeiramente viável, o aproveitamento parcial ou total do mouchão da Póvoa.
Em resumo, a localização das jornadas nos terrenos na foz do Trancão e a norte, basicamente pelas razões expostas, tem os inconvenientes:
- prejuízo económico para a atividade logística
- riscos de segurança para um evento deste tipo dadas as caraterísticas do local
- possível comprometimento de soluções para as novas infraestruturas ferroviárias
Reiterando o pedido de consideração desta problemática, apresento os meus melhores cumprimentos
Lisboa, 7 de novembro de 2021
PS (não enviado) - Dirão os organizadores que é sempre possível dividir o espaço em espaços menores cercados por corredores de evacuação comunicando com saídas de emergência e improvisar passadiços sobre a via rápida e a via férrea. É verdade. Mas é muito difícil manter a multidão afastada desses corredores porque a tendência é acorrerem mais pessoas do que as esperadas e estas ocuparem o espaço livre, saturando-o e, no caso de uma emergência, congestionarem os corredores e passadiços de evacuação. Nesta perspetiva, para além de reservar espaço para os corredores circundantes, deveria interditar-se a circulação ferroviária e a circulação rodoviária na via rápida durante os dias do evento.
Recordo que
muitos acidentes não têm origem em momentos de pânico, estes são consequência
da turbulência das multidões, um fenómeno físico com analogias com o movimento
aleatório de corpos em grande número (imaginem-se os movimentos dos cardumes ou
de bandos de aves em espaços restritos) e possibilidade de geração por
ressonância de pressões incomportáveis para o organismo humano.
Insisto que o festival deveria
realizar-se noutro local, em campo aberto sem elementos de risco na envolvente,
ou simplesmente cancelado. O papa Francisco compreenderia.
Mensagens enviadas à Câmara Municipal de Loures:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/11/mensagem-para-o-presidente-da-camara.html
Acidente no Japão em 2001 e análise do acidente de Duisburg em 2010:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2022/04/mais-um-exemplo-dos-cuidados-ter-nos.html
- PS em 29jan2023 - acrescenta-se à lista de fatalidades:
Para além dos acidentes por esmagamento relacionados em https://fcsseratostenes.blogspot.com/2021/11/jornadas-mundiais-da-juventude-mensagem.html temos, indicando-se o número aproximado de mortes:
- estadio de Yaunde 25jan2022 - 8 ; https://www.aljazeera.com/sports/2022/1/25/at-least-six-football-fans-killed-in-cameroon-stampede
- fronteira de Melilla 24jun2022 - 23 ; https://en.wikipedia.org/wiki/2022_Melilla_incident
- estadio de Malang, Indonesia 1out2022 - 133 ; https://www.theguardian.com/world/2022/nov/01/how-do-crowd-crushes-happen-stampede-myth-what-happened-in-the-seoul-itaewon-halloween-crush
- ponte pedonal de Morbi, India 30out2022 - 135 ; https://en.wikipedia.org/wiki/2022_Morbi_bridge_collapse
- Seoul, comemorações do Halloween 31out2022 - 150 ; https://www.theguardian.com/world/2022/nov/01/how-do-crowd-crushes-happen-stampede-myth-what-happened-in-the-seoul-itaewon-halloween-crush
Informação adicional:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2023/02/jmj-em-17fevereiro2023.html
O palco-altar e o zigurate de UR:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2023/01/jornadas-mundiais-de-juventude-27-de.html
O problema do terminal de contentores da Bobadela:
https://fcsseratostenes.blogspot.com/2022/04/5-hipoteses-para-deslocalizacao-do.html
PS em 21abr2023 .- A juntar à lista de fatalidades em eventos, o esmagamento por compressão de cerca de 90 vítimas contra o edifício de uma escola onde se fazia uma distribuição de apoio à pobreza em Sanaa, Yemen :
https://www.aljazeera.com/news/2023/4/20/at-least-78-killed-dozens-injured-in-yemen-stampede
Embora possa ter havido pânico em consequência de tiros e da explosão de um gerador, os organizadores dos eventos deviam reconhecer que mesmo sem correrias, a compressão do peito, consequencia dos movimentos de uma multidão ou aglomeração junto de recinto exíguo é suficiente para paralisar a respiração das vítimas. Isso ficou provado em Monte Meron e em Seoul e, provavelmente, agora em Sanaa.
PS m 21abr2023 - Confirma-se a desistência da ponte militar , segunda ponte sobre o Trancão que tinha sido pensada não para segurança em emergência, mas para a passagem do papamovel para o lado norte do recinto, assim desincentivando os participantes alojados desse lado de tentarem a travessia para o lado sul. Os decisores disseram que a ponte militar era desnecessária.
Segundo a portaria 135/2020 que regula a segurança em eventos, aos 6 metros de largura da única ponte correspondem 10 unidades de passagem e, considerando 1 U.P. por 300 pessoas, uma capacidade de escoamento em emergência de 3.000 pessoas. Em movimento normal com formação compacta, poderão passar pela ponte a uma velocidade de 1m/s (3,6 km/h) cerca de 36.000 pessoas por hora. Será essencial que a segurança do evento se abstenha de atitudes que possam provocar movimentos de compressão entre pessoas.
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