quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Para um amigo triste com a reprovação do Orçamento de Estado em outubro de 2021

Querido amigo, penso que compreendo a tua tristeza. Esperavas que a inclusão de medidas ao encontro das necessidades de quem trabalha ou de quem precisa de apoio convencesse os partidos conhecidos como à  esquerda do teu partido, único representado no XXII governo, a aprovar ou, pelo menos, a absterem-se na votação do orçamento.

Não o fizeram, e assim ficaste a pensar que a esquerda perdeu uma oportunidade de se manter unida no poder. São os teus ideais que te fazem pensar assim, mas talvez a realidade esteja um pouco ao lado.

Lembras-te, claro que não, eras muito novo, quando Jean Pierre Chevenement disse que a esquerda não pode falhar quando governa nem trair quando luta pelo poder. Manuel Alegre não gostou de ouvir porque entendeu que era com o seu partido, e saiu da sala, que destemido sempre ele foi.

Ora, deixemos as análises políticas e falemos de coisas concretas, com algumas honrosas exceções, a maior parte dos ministros e secretários de Estado do XXII governo são incompetentes nas áreas que tutelam. Dirás que não é assim, mas à luz de critérios técnicos não há grandes dúvidas, pelo menos na área dos transportes, são incompetentes, dão ouvidos a técnicos que não trocam impressões com quem discorda. São mesmo incompetentes. Disparatam com as ampliações das redes de metropolitano, com a estratégia de ligação ferroviária à Europa (para eles apenas há Espanha). Enchem a garganta com as modas da mobilidade conectada, partilhada, suave no raio de 15 minutos, já ninguém vai querer comprar carro e 40% das deslocações vão ser de bicicleta. Acham-se exemplos a seguir por toda a Europa e pelo mundo na descarbonização dos transportes. Apregoam vitórias incomensuráveis nos seus planos de investimentos para 2020, para 2030, para recuperação. E consideram-se titãs que derrotarão os preços elevados da energia, mesmo continuando a acreditar como a senhora chanceler, que o que faz falta é mais mercado, mesmo ignorando o exemplo da Enron e da California no principio do século XXI. 

Como pois, queres que se sustente  um governo em que as decisões cruciais são definidas em conluio discreto e divulgadas como factos consumados, em que fiquem por debater e fixar as estratégias de desenvolvimento que "agarrem" todos, as empresas, os trabalhadores, as universidades, os cidadãos interessados no crescimento da economia? Que através das estratégias debatidas abertamente se construa o eixo estruturante da industria e da economia produtiva, da agricultura e silvicultura às exportações de bens para  todo o mundo. Em vez de nos dividirmos em trincheiras opostas, o meu grupo é o melhor, o teu grupo faz mal ao país. 

A esquerda não pode falhar ... agora que até os decisores dos USA propõem o IRC mínimo de 15% e os da UE a contenção das taxas de juro. Falta ainda aceitar a taxa Tobin, o que será preciso para isso?

Longe que estamos das boas intenções da Constituição, promover a democracia participativa, quando alguns se acham donos de certezas.

Em vão procuro no texto da Constituição motivos para a dissolução da Assembleia. Não encontro, apenas para a demissão do governo (art.195, rejeição do seu programa, reprovação de uma moção de confiança, aprovação de uma moção de censura, por exemplo). Para a dissolução, apenas que o Conselho de Estado e os partidos serão ouvidos (nada escrito que esses pareceres sejam vinculativos, só consultivos). Isto é, a dissolução depende do poder discricionário do Presidente, de ele achar que o país está ingovernável, enquanto paradoxalmente, o governo continua em funções, como aliás prevê a lei. Será isto respeito pela separação dos poderes e participação, não apenas representação, dos cidadãos? Dissolvo a Assembleia porque não quero esta, apesar de haver uma lei recente de enquadramento orçamental que diz o que fazer quando se fica sem orçamento. Aplicam-se os duodécimos do orçamento anterior, que até tinha medidas extraordinárias contra a pandemia. Tempo para os senhores deputados despacharem as suas leis atrasadas e entenderem-se fora da lógica dos grupos irredutíveis (facilitadores de governos de salvação nacional, não é assim que se diz?). Tempo para os deputados do teu partido se deixarem de certezas e humildemente ouvirem  os outros.

Já que a maioria das instituições aceita então novas eleições, aguardemos o seu resultado. Perdemos tempo, mas se é a vontade de maioria dos representantes ... esperemos pela expressão (ou abstenção dela) da maioria dos cidadãos.



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