sábado, 4 de março de 2023

Colisão de comboios em Larissa/Tempi, Grécia

 Condolências pelos familiares e amigos das vítimas.

O acidente de 28fev2023 na Grécia, uma colisão frontal de comboios, impressiona-me muito pela semelhança com o acidente de Alcafache, na linha da Beira Alta em 1985. Em ambos o acidente teve origem numa má compreensão das comunicações telefónicas sem que o agente que deu autorização de partida tivesse percebido que o outro comboio já estava em movimento em sentido contrário, sem que existisse um procedimento de confirmação em que agentes em locais diferentes confirmassem por escrito ou em registo audio a autorização de movimento e, principalmente, sem que estivesse instalado um sistema de deteção e controle do movimento dos comboios ou um dispositivo de travagem automática por ultrapassagem de um sinal vermelho.

Na sequência do acidente de Alcafache foram desenvolvidas as medidas para a instalação do sistema CONVEL (controle de velocidade) da Ericsson, mantendo-se a exploração da linha da Beira Alta em via única, tal como se manterá após as obras de manutenção e beneficiação parcial em curso.

No caso do acidente de Larissa/Tempi verifica-se a exploração da via dupla em modo banalizado, isto é, para aumentar a capacidade da linha em situação de maior tráfego num dos sentidos, é possível  circular nos dois sentidos. Assim se transpuseram para a via dupla os riscos da via única.

Com a agravante de entre Larissa e Neoi Poroi, o troço da linha Atenas-Tessalónica em que se deu o acidente, constituir um cantão ou bloco único de sinalização, isto é, o comboio que sai de Larissa tem o itinerário feito ou instruções para seguir até ao sinal de entrada de Neoi Poroi, apesar de a meio haver uma estação técnica de cruzamento de comboios. 

Isso para otimizar a capacidade da linha, com o consequente aumento dos riscos por inexistencia de deteção e controle do movimento dos comboios. É provável até que não exista uma sala de comando com a exibição em tempo real da ocupação dos circuitos de via (que também é provável que neste troço não existam) que tivesse permitido ao agente da estação de Larissa verificar que tinha mandado para a via sul (à esquerda no esquema)  o comboio de passageiros quando essa via já estava ocupada em sentido contrário. Pormenor importante, o agente de estação de Larissa estava colocado na estação apenas há 40 dias. Terá tido uma formação consistente?

Das gravações dos telefonemas entre o agente da estação e o maquinista retira-se que o agente pensava que o comboio de mercadorias vinha na via do norte (à direita no esquema), pelo que também se deveria esclarecer a intervenção do agente de estação de Neoi Poroi, se é que existia. 

As informações disponíveis dizem que as economias têm ditado a rarefação dos quadros de pessoal e consequente sobrecarga dos efetivos. A esclarecer  também numa fita de tempo  se o agente da estação de Larissa teria tido oportunidade de acionar a agulha que a 2 km antes do local da colisão teria permitido o comboio de passageiros "escapar" para a via Norte. 

Também se deverá esclarecer o que alguns técnicos disseram, que em face da frequencia das avarias da sinalização, maquinistas e agentes de estação "ignoram" muitas vezes o estado da sinalização (passagem intempestiva e indevida de verde a vermelho, por exemplo), confiando no cantonamento telefónico (recordo que foi o caso de uma colisão fatal no metro de Washington).

A confusão dos sentidos dos comboios pode também estar relacionada com o grande atraso do comboio de passageiros, por sua vez consequência de uma rotura e queda de catenária horas antes, a sul de Larissa.

Troço de cerca de 50 km onde se deu o acidente, integrado na linha Atenas-Tessalónica ; distancia Larissa-Atenas 216 km para sul, Larissa-Tessalónica 120 km



                                                                   informação retirada de Google Earth, com indicação da data das imagens 2015

Esquema simplificado do troço de via dupla Larissa-Neoi Poroi que constitui um cantão ou bloco de sinalização de vias banalizadas (podem ser percorridas nos dois sentidos) com cerca de 50 km limitado pelos sinais de saída/entrada de Larissa e entrada/saída de Neoi Poroi; aparentemente não há deteção por circuitos de via (a confirmar) e os movimentos dependem do cantonamento telefónico entre os chefes de estação dos extremos e os maquinistas; aparentemente, com base nas conversas gravadas e na velocidade dos comboios, o comboio de passageiros terá saído de Larissa e passado o sinal  vermelho de mudança para a via do sul (lado esquerdo, a confirmar ou se já se encontrava na via do sul à chegada a Larissa) já com o comboio de mercadorias saído de Neoi Poroi    

PS em 8mar2023: foram publicitadas gravações telefónicas que registam a saída do comboio da estação de Larissa às 23.00 (informação posterior a confirmar: saída de Larissa às 23:02 , e saída do comboio de Neoi Poroi às 23.04 ) ; colisão às 23.21, indiciando que o comboio de passageiros terá entretanto estado parado. É essencial executar um inquérito que esclareça a fita de tempo e a configuração correta e a  sequencia dos movimentos das agulhas, e que deixe a intervenção judicial para depois da conclusão do inquérito técnico, embora se verifique já a extensão da acusação a vários intervenientes numa perspetiva de acusações para o pelourinho




Perante a extensão da tragédia, é fácil para o governo grego atirar a totalidade das culpas para o agente de estação ou outros funcionários. É fácil para quem está no gabinete acusar quem está no local de trabalho sem uma formação consistente, sem ajuda de colegas e principalmente, sem sistemas ou equipamento que detetem o perigo e impeçam automaticamente o acidente. 
O ministro dos transportes demitiu-se dizendo que, ao fim de 3 anos, o governo não tinha conseguido melhorar a ferrovia grega.
Tem de se respeitar a decisão e o reconhecimento da impotência, mas critico o primeiro ministro que foi lesto a culpar o agente de estação esquecendo o desinvestimento crónico na ferrovia por razões economicistas, também do seu próprio governo. 
Esta crítica é extensível à Comissão Europeia e à DG MOVE, que sabem, com palavras bonitas em seminários comemorativos do Year of the Rail e da emissão das diretivas ambientais em que a ferrovia desempenha um papel crucial.
São especialmente bonitas, mas apenas isso mesmo, bonitas, as palavras da Comissão Europeia no que toca à coesão na Europa dos países  periféricos, apesar do TFUE dizer claramente que essa, a condição periférica, é razão suficiente para apoios específicos, independentemente da conceção ideológica do funcionamento do mercado e das regras da concorrência. 
A tragédia de Larissa/Tempi é apenas um exemplo do desprezo dos orgãos centrais da CE pelas dificuldades financeiras dos países das periferias. O próprio TFUE inclui a possibilidade de apoio técnico, o que é aplicável à definição das estratégias por governos que se afastem das diretivas europeias no sentido do aumento da coesão via ferrovia. 
A simples existencia dum cantão/bloco de sinalização de 50 km com uma estação de cruzamento pelo meio sem controle da posição dos comboios é razão suficiente para uma intervenção técnica exterior às empresas operadora e gestora das infraestruturas. Isto é, uma despesa não contabilizada no orçamento do Estado.
Infelizmente, discute-se animadamente com argumentos ideológicos, se as empresas devem ser públicas ou privadas, se a operadora deve estar separada da gestora de infraestruturas.
Pessoalmente, baseando-me na minha experiencia no metro,  resolvemos melhor problemas de sistemas que requeriam a colaboração da operação, da manutenção do material circulante, e da manutenção das infraestruturas (por exemplo, sistema de radiocomunicações, sistema de controle automático ATP e ATO, que requerem intervenção nos equipamentos fixos e nos embarcados) do que se fossem empresas distintas.
No caso da Grécia, a operação dos comboios é da responsabilidade da Hellenic Trains, empresa privada cujo acionista é a empresa de capitais públicos italiana Trenitália, cujo acionista é a empresa pública Ferrovia dello Stato.
A gestão das infraestruturas compete à OSE, empresa grega pública.
Aparentemente, não conseguem fazer um plano coerente de investimento em melhorias, nomeadamente num sistema ATP.
Haverá recomendações do inquérito (parece também que não existe uma entidade para investigação de acidentes de acordo com as normativas europeias) nesse sentido? e a CE intervirá, ajudando?




Informação recolhida:




PS em 11mar2023 - Amável correspondente fez uma pequena investigação e o levantamento da situação na rede ferroviária nacional neste março de 2023, quanto ao sistema de controle de velocidade CONVEL:

- Linhas da Beira Baixa , Sul e Algarve – na totalidade com CONVEL
- Linha do Minho – CONVEL instalado até Viana do Castelo; de Viana até Valença está prevista a entrada em serviço em junho de 2023 (a confirmar)
- Linha do Douro – instalado até Marco de Canaveses; prevista a entrada em serviço até à Régua em 2025
- Ramal de Alfarelos e linha do Oeste até Louriçal – prevista a entrada em serviço até dezembro de 2023
- Linha do Oeste –Louriçal a Cacém prevista a entrada em serviço em 2024
- Linha de Beja – sem CONVEL no troço Casa Branca-Beja
- Linha de Cascais – a instalar o ETCS com o futuro material circulante; até lá, mantem-se o dispositivo de travagem automática por ultrapassagem de sinal vermelho INDUSI

Verifica-se assim que numa rede de linhas de via única subsistem em Portugal troços sem controle de velocidade. É absolutamente imperativo que os procedimentos de exploração por cantonamento telefónico  em condições normais ou de permanencia de sinal vermelho exijam a troca de informações entre um centro de comando, o maquinista e um agente de tráfego junto deste que registem e confirmem por escrito ou por gravação telefónica as ordens de movimento ou implementando o cantonamento por bastão piloto.

Sobre o sistema de controle de velocidade ETCS refere-se que a IP pretende conservar o sistema atual CONVEL que foi descontinuado, mantendo no futuro dois sistemas compatíveis com comboios equipados com o sistema ETCS: linhas com equipamento fixo ETCS e comboios ETCS, e linhas com equipamento fixo CONVEL e comboios equipados com ETCS e o módulo STM que lê as balizas do CONVEL. Este módulo está a ser desenvolvido pela Thales. Pessoalmente, dada a complexidade dos interfacves e ter-se deixado de fabricar sobresselentes CONVEL; preferiria a desmontagem total deste sistema, mas esperemos que a capacidade da Thales resolva o assunto até 2024.

Entretanto na Grécia o governo continua a incriminar mais agentes de exploração ao mesmo tempo que pede ajuda à ERA (agencia ferroviária da Comissão Europeia) apoio para a reralização do inquérito técnico (saber exatamente o que se passou, o que causou o acidente, em que circuntâncias, e que recomendações devem ser adotadas para evitar a repetiçõ do acidente, sem , na fase do inquérito, haver a preocupação de apurar ações criminalizáveis.

Neste artigo do jornal eKathimerini.com pode ver-se a negligencia oficial de há mais de 15 anos sem que se conclua a sinalização e a instalação do sistema de controle de velocidade ETCS na linha Atenas-Tessalónica, eventualmente relacionada com as exigencias economicistas do período da troika na Grécia (no artigo informa-se que o sistema ETCS já funciona no troço de cerca de 100 km entre Tessalónica e a fronteira com a Bulgária, mas não entre Tessalónica e Atenas):

https://www.ekathimerini.com/news/1206447/etcs-awaiting-signaling-system-of-rail-network/


Informação de 13msr2023:

https://www.investigate-europe.eu/en/2023/french-contractor-italian-owned-trains-eu-policies-greek-crash-was-also-a-european-failure/











5 comentários:

  1. Tem graça que eu conheço outro país europeu que, no campo ferroviário, é muito parecido com a Grécia. Começa com a letra P .

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  2. No caso de Portugal, o eixo Braga-Lisboa-Faro e as linhas da Beira Alta e Beira Baixa, e linha de Sintra e Cintura, dispõem dum sistema CONVEL, de origem sueca, que controla o cumprimento pelos comboios das ordens dos sinais. Ou seja, caso um sinal esteja com ordem de paragem (vermelho) o CONVEL obriga, de forma automática, à paragem de todos os comboios, por adequada atuação dos travões.

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  3. Ao autor deste blog comunico que gostei deste seu texto/análise, tendo em conta a informação de que atualmente se conhece. Fiquei, no entanto, com uma dúvida que gostava que me esclarecesse. Referiu que a exploração estaria a cargo da Ferrovia dello Stato (FS) italiana e que as infraestruturas estão a cargo do estado grego através da OSE. A minha questão é a seguinte: à semelhança de Portugal, confirma-se que o chefe da estação pertencia à OSE ? (em Portugal o pessoal das estações pertence à IP).
    Obrigado.
    Caldeira Martins

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    1. Agradecido pela apreciaçãao. Tanto quanto retiro da informação disponível confirmo a analogia com aa organização em Portugal. Os maquinistas pertencem à Hellenic Train/Trenitalia e os operadores de estação responsáveis pelas agulhas e itinerários à OSE, equivalente às categorias na IP (operador de circulação, controlador de circulação, operador de comando ferroviário https://meusalario.pt/direitos-do-trabalho/base-de-acordos-colectivos/acordo-coletivo-entre-a-infraestruturas-de-portugal-sa-e-outras-e-o-sindicato-nacional-dos-trabalhadores-do-sector-ferrovi-rio-e-outros---revis-o-global-2019#CAP%C3%8DTULO_IV ) ..
      Cumprimentos

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  4. PS em 29mar2023 - contrariamente ao que afirmei no comentário anterior, não está claro que os agentes de estação nas estações de Larissa e de Neoi Poroi, pertençam à OSE (infraestruturas). Segundo a imprensa grega (jornal eKathimerini), a propósito da incriminação de outros agentes sobre os quais impendem as acusações de deficiente formação ou saída mais cedo do turno, eles pertenceriam ou estariam sob contrato precário à Hellenic Trains, a operadora dos comboios.
    A confirmar-se, sublinho a confirmar-se, será apenas mais uma deficiência organizativa da ferrovia grega, aliás proporcionada pelo dogma da CE de que a operação tem de ser separada da infraestrutura para viabilizar a concorrência (acontece que a segurança tem prioridade sobre a concorrência).

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