segunda-feira, 5 de maio de 2025

Mais duas pequenas histórias a propósito do apagão e do SIRESP

 Não aprecio orientação das ideologias dos mercados liberais que insistem em reduzir o peso das empresas públicas, transferindo as suas atividades para empresas de mairia de capital privado. Não seria problema de fosse possível às entidades públicas exercer rigorosamente uma função reguladora. E não é possível porque, como denunciou publicamente o primeiro presidente de uma comissão reguladora em Portugal, estas acabam por cair cedo ou tarde na esfera de influencia das empreas privadas, subsistindo outra razão, que é a de só saber regular quem ganhou experiência exercendo o negócio. Tentou a União Europeia ultrapassar esta questão proclamando a superioridade da concorrência, podendo nesta participar, sem favoritismos, conforme o art.106º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), entidades públicas satisfazendo as necessidades sociais. Dir-se-ia que no respeito por Adam Smith, se lembraram do que ele escreveu no Tratado dos sentimentos morais àcerca do bem estar dos clientes das empresas.

Mas Adam Smith, parafraseando Fernando Pessoa, não sabia nada de eletrotecnia, nem de comboios. E já tivemos exemplos de acidentes depois de privatizações de operadores ferroviários. Não admira que no UK se assista à renacionalização na ferrovia. Sem esquecer a ironia do destino, quando o ferry do primeiro naufrágio que se seguiu à privatização dos ferries do canal da Mancha se chamava "Herald of free enterprise" (para cortar nas despesas, tinha sido admitido um marinheiro sem experiência que se esqueceu de fechar uma das comportas da entrada de veículos). E nas eletricidades, também temos exemplos de apagões (não foi só a 28 de abril de 2025) por esse mundo fora, quando uma diversidade de operadores de redes ajuda o apagão. Ver por exemplo o apagão na Europa de novembro de 2006 em  https://en.wikipedia.org/wiki/Power_outage

Seria bom que em vez de orientações ideológicas as coisas se resolvessem por critérios técnicos, o TFUE tem razão, deve haver compatibilidade entre entidades privadas e públicas, mas será difícil pedir isso aos governos e às empresas que põem apenas o seu lucro acima do lucro de outras empresas sem atender aos tais critérios técnicos de eficiência social. Preferem deixar o mercado funcionar nos leilões de energia. Não seria mau abandonar-se no MIBEL o critério do último preço oferecido pelo produtor (no caso do apagão preço muito baixo das fotovoltaicas, retirando-se o nuclear e o gás a partir das 8:00 horas por não poder produzir a esse preço) e substitui-lo por um custo médio num intervalo de tempo a otimizar. É que assim até parece distorção do mercado e favorecimento de um grupo, digo eu...




Mas eu apenas queria contar duas pequenas histórias sobre o nosso apagão e concretamente, sobre o nosso (este nosso não significa a titularidade das respetivas ações) SIRESP.

1ª pequena história, num encontro em 2018 com um cidadão morador numa cidadezinha próxima de Lisboa:

A antena do SIRESP

O meu interlocutor de circunstancia puxou-me pelo braço e apontou-me a cancela desconchavada e o jardim desprezado que rodeava o posto de transmissão e a antena.
"Fui eu que plantei aquele alperceiro, e aquela ameixeira também. Era eu que tratava disto. Primeiro estive na tropa, em Transmissões, era cripto. Depois passei para a guarda fiscal e quando acabaram com ela para a GNR. Agora estou reformado e isto é do SIRESP. Está abandonado".
A conversa de circunstancia passava-se no alto da vila, com vista soberba para a autoestrada ao longe, o estuário e as manchas verdes da floresta.

O meu interlocutor dedica-se agora a trabalhos de limpeza de terrenos e orgulha-se de nem todos poderem fazer como ele.
Mas partilha comigo a impotencia perante a sucessiva transferencia de empresas de interesse estratégico para o controle de sociedades privadas, que poderão não ter as mesmas prioridades de uma empresa de serviço público.
Mas também, para quê insistir na natureza pública de uma empresa estratégica se os decisores são subordinados à estratégia oficial dos cortes de despesa pública e de cativações que inviabilizam decisivamente o bom funcionamento e o atingimento dos objetivos da empresa pública? Assiste-se assim à degradação do serviço dessas empresas e à sua transferencia para empresas estrangeiras.
Será uma forma de colonização já prevista por Margarida, duquesa de Mantua, depois da morte trágica do seu valido (primeiro ministro), Miguel de Vasconcelos .
Mas como eu não desejo a morte de ninguém, preferia que a opinião pública fosse tomando conhecimento disto, para no exercício do seu direito de voto o fazer em conformidade, de modo informado, das consequencias do cumprimento dos defices da UE. Mas posso estar a ser ingénuo.

2ªpequena história, numa reunião no departamento de Telecomunicações do metropolitano em ano distante cerca de duas décadas

A rede do metro ainda estava a crescer, assim como a sua frota, pelo que se pôs o problema de encomendar mais estações base (a propagação das ondas de rádio não atinge os subterrâneos em toda a extensão, mesmo em frequencias elevadas) e mais emissores recetores para os novos comboios. Não havia razão de queixa do sistema privativo de radiocomunicações do metro, mas de cima veio a ordem que o sistema seria substituido pelo novo SIRESP.

Claro que as minhas objeções, fundamentalmente ficarmos dependentes duma sala de comando em caso de emergância dirigida e operada por pessoas sem conhecimento da operação de redes de metro, em vez da nossa sala de comando, não tiveram eco na administração, a qual teria de cumprir as determinações superiores. Mas quem decidiu (mal) teve a amabilidade de enviar uma delegação do SIRESP, chefiada por um simpático coronel engenheiro, ao departamento de Telecomunicações para explicar o sistema. E de facto o senhor coronel explicou bem o sistema, incluindo os mecanismos para a atuação em caso de emergência, já que iamos ficar sem o nosso sistema de radiocomunicações. Tão perfeito era o sistema descrito, que, atingido um certo grau de convivialidade entre técnicos, exprimi ao coronel a minha convicção que o sistema era mesmo perfeito e tão perfeito que nenhum sistema tão perfeito poderia funcionar bem em emergências.

Paradoxos que a experiência vem sucessivamente confirmando.




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