Nota informativa do GPIAAF de 6set205 sobre o acidente;
https://www.gpiaaf.gov.pt/detalhe-noticias?uri=1665
Por força das diretivas da União Europeia que vinculam os Estados membros, um desastre como o de 3 de setembro, com o número de vítimas e as caraterísticas do meio de transporte deve ser investigado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF).
O diretor do GPIAAF informou pouco depois do
acidente que o seu gabinete iria cumprir a sua missão, lamentando que pelas
limitações orçamentais apenas tenha um técnico especializado para o fazer.
Depois das primeiras investigações, o GPIAAF
publicou em 6 de setembro uma nota informativa com o resultado das primeiras
investigações.
O relatório apresentado honra quem o fez, pelo
rigor das investigações. Deve insistir-se que o objetivo dos relatórios do
GPIAAF, por força do normativo comunitário, não é o de apurar responsabilidades
ou culpas, mas sim determinar as causas e as circunstâncias do acidente,
apresentando recomendações e propostas de prazos para evitar a sua repetição .
A nota informativa refere a indefinição do
enquadramento legal do ascensor e da supervisão da segurança de operação e
manutenção. Essa indefinição é bem ilustrada pelo procedimento de infração
2020/2092 instaurado pela Comissão Europeia a Portugal com base em falhas no
cumprimento do normativo de segurança da União determinado pelo regulamento
2016/798[1]
:
i)
na
supervisão da gestão da segurança dos operadores e dos gestores de
infraestruturas ferroviários;
ii)
no
cumprimento das recomendações emitidas pelos órgãos de investigação de
acidentes;
iii)
na
capacidade organizativa da autoridade nacional de segurança. (Nota do autor – o autor já teve contactos com equipas da
autoridade e testemunha a competência, o interesse e dedicação pelo serviço
público; outra coisa é a disponibilidade de meios para realizar as tarefas
necessárias e impor a execução das recomendações, de que um exemplo é a eliminação
das passagens de nível por desniveladas, conhecendo-se um plano mas não o seu
calendário de execução)
Estas indefinições e falhas têm de ser revertidas. Existe ainda em Portugal, e isso
afeta a sociedade civil e os próprios decisores e governantes, uma deficiente
cultura de segurança. São péssimos os indicadores de sinistralidade rodoviária
e ferroviária comparados internacionalmente.
A segurança do transporte ferroviário é
considerada uma área oculta reservada aos principais operadores e gestores de infraestrutura
que no fundo são os principais assessores de decisores e governantes.
Quando se discutem orçamentos sacrifica-se no
altar dos défices os investimentos que fazem falta aos sistemas de transportes.
No caso da ferrovia os investimentos são justificados pela maior eficiência
energética (menor consumo de energia por passageiro-km) relativamente ao transporte
rodoviário, em igualdade de desenvolvimento tecnológico.
Não admira que quem se preocupa com a segurança
ferroviária considere que o GPIAAF sofre as consequências do desinvestimento ao
longo de anos, situação que deverá ser compreendida nos seus riscos pelos
decisores e governantes e consequentemente revertida. Nesse sentido, para além do GPIAAF, entidades
como o IMT e a ANSF (Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária) deverão
beneficiar do investimento e melhoria da sua visibilidade e do cumprimento das
suas recomendações. Igualmente projetos de modernização ou de novos traçados, elaborados
se necessário com apoio internacional, submetidos aos critérios de normalização
da União Europeia e bem executados com suporte financeiro comunitário,
contribuirão para a melhoria do nível de segurança dos operadores e dos
gestores de infraestruturas. Nesse esforço de melhoria deverá ser também
chamada a sociedade civil através de, para cada ação de investimento, sessões
colaborativas (inscrições prévias, intervenção, divisão da assembleia em grupos
de discussão e reporte das conclusões de cada grupo – os especialistas de
comunicação sabem como se fazem estas coisas e poderão orientar os decisores e
governantes e seus assessores desde que não se fechem em círculos reservados).
Uma das questões ligadas ao desinvestimento
prende-se com a opção nas empresas públicas de operação e gestão de
infraestruturas para entrega por externalização (“outsourcing”) da manutenção
especializada. Tal como oportunamente denunciado pelos órgãos dos trabalhadores
e por técnicos da hierarquia das empresas, essa política traduz-se pela perda
de capacidade oficinal das empresas e pela não substituição dos operários
especializados que vão saindo por reforma, perdendo-se “know-how”. Dado que
esta questão está mais ou menos relacionada com os critérios da política de
privatizações, ela fica assim inquinada por razões ideológicas e não técnicas,
omitindo-se muitas vezes os exemplos negativos em outros países, desde o caso
do ferry “Herald of free entreprise” até aos acidentes na ferrovia inglesa. Muito
dificilmente se poderá justificar financeiramente a opção pela externalização
quando o que eventualmente se poupará (veja-se o caso dos concursos anulados
por preços superiores ao estimado nos cadernos de encargos) é menos do que o
que se perde em controle e monitorização. Mesmo admitindo maior produtividade
na manutenção externa e consequente custo menor de produção, a soma do custo de
produção externa com o lucro será normalmente superior ao custo de produção
interno. Não se põe em causa a competência de técnicos de empresas externas,
que mediante investimento poderiam ser admitidos pelo operador ou gestor de infraestruturas públicos.
Retomando a nota informativa do GPIAAF, nela se
refere que : "Neste momento ainda não
foi possível proceder às verificações de confirmação de que o sistema de
aplicação automática do freio pneumático nos veículos como resultado da perda
da força do cabo no trambolho tenha ou não funcionado."
Isto é, não está comprovado que
os elevadores funcionavem de acordo com o projeto (deteção de perda de tração
do cabo, consequente desligação da energia elétrica e da eletroválvula do
sistema pneumático e subsequente aplicação da pressão aos freios – aliás, o
corte de energia deveria também ter travado o elevador que se encontrava junto
dos Restauradores em velocidade reduzida, o que não aconteceu). A nota conclui ainda que : "na
configuração existente os freios não têm a capacidade suficiente para imobilizar
as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente
equilibradas através do cabo de ligação. Desta forma, não constitui um sistema
redundante à falha dessa ligação."
Portanto a investigação das
causas e circunstancias prosseguirá, sugerindo-se, como ilustração de mudança
de cultura, a progressiva informação à sociedade civil dos resultados sucessivamente
conseguidos. Igualmente se sugere o método participativo em sessões abertas à
universidade, associações e ordens profissionais e sociedade civil para
informação técnica sobre os sistemas de proteção redundante nos funiculares de
Lisboa e do país e sobre alternativas para substituição do elevador da Glória
ou melhoria dos outros.
Não é um pedido espúrio, é apenas
uma invocação dos artigos da Constituição da República que determinam o direito
à informação e à participação dos cidadãos em assuntos públicos.
Admitindo, considerando o declive
de cerca de 17% que o veículo esteve sujeito após o desprendimento do cabo a
uma aceleração de 1,5 m/s2, desprezando a velocidade inicial, a velocidade ao fim de 10m e 2s após o
desprendimento seria de cerca de 20 km/h ( ao fim de 100m e 6s seria 62km/h).
Seria de esperar que os freios imobilizassem o veículo a menos de 20km/h. Como
a própria nota informativa refere, o tipo de cabo usado foi introduzido em
2019, interessando compará-lo com o tipo de cabo anterior e analisar o tipo de
fixação (no veículo não acidentado). Igualmente é desejável conhecer-se o
resultado de ensaios no veículo não acidentado sobre o funcionamento automático
da travagem de emergência por perda de tração do cabo.
Parece uma boa sugestão montar uma carreira de
miniautocarros ligando a via poente da Avenida da Liberdade junto do sopé da
Calçada da Glória pela Rua da Glória,
com o Largo da Oliveirinha.
Sobre o futuro, relembro que
decorre neste momento na Suiça a substituição de um funicular de tração por
cabo e contrapesos por um sistema de pinhão e cremalheira, mecanicamente mais
seguro. Mas o novo elevador da Glória poderá continuar a ser por cabo desde que
a sua instalação seja otimizada e se
montem sistemas redundantes de travagem de tipos diversos, e instalados
sensores que detetem os estados de funcionamento de todos os componentes e os
transmitam para uma central de controle com acionamento automático dos
dispositivos de emergência.
Como já referido em muitos
comentários, a caixa dos novos elevadores deverá ser estruturalmente capaz de
resistir a embates, prevendo-se ao longo da descida elementos do tipo “air-bag”
acionados por detetores de velocidade excessiva de modo a reduzir a velocidade
de embate (note-se que no embate que aconteceu estimo uma desaceleração entre 6
e 8G para uma compressão de 2m a 60 km/h
no embate, o que seria fatal para alguns ocupantes mesmo com a estrutura
resistente da caixa).
Nos novos veículos e sistemas, para
além do antecedente, poderão instalar-se:
- dispositivos de segurança como patins de eletroímans entre rodados dos veículos que se “agarrem”
aos carris,
· carris de maior peso unitário,
· calha em forma de U mais resistente para o percurso dos sucedâneos dos “trambolhos” com capacidade para suportar o aperto de maxilas ou cepos de travagem de maior potência acionados pela
deteção de velocidade excessiva,
· redundancia dos dispositivos de deteção de velocidade excessiva com recurso a elementos no pavimento e leitura ótica.
Finalmente recordo, citando de
memória declarações do diretor do GPIAAF, que corrigir as deficiências e melhorar
os recursos das entidades de monitorização da segurança e o funcionamento dos
sistemas de segurança será uma forma de honrar a memória das vítimas.
[1] https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2016/798/oj/eng De acordo com o art.1 deste regulamento, a sua
aplicação não é obrigatória para metros e tramways, mas o mesmo artigo afirma
que nada impede que o Estado membro o aplique a esses modos