quarta-feira, 10 de setembro de 2025

O acidente do elevador da Glória em 3 de setembro de 2025

 

Nota informativa do GPIAAF de 6set205 sobre o acidente;

https://www.gpiaaf.gov.pt/detalhe-noticias?uri=1665


Por força das diretivas da União Europeia que vinculam os Estados membros, um desastre como o de 3 de setembro, com o número de vítimas e as caraterísticas do meio de transporte deve ser investigado pelo Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e Acidentes Ferroviários (GPIAAF).

O diretor do GPIAAF informou pouco depois do acidente que o seu gabinete iria cumprir a sua missão, lamentando que pelas limitações orçamentais apenas tenha um técnico especializado para o fazer.

Depois das primeiras investigações, o GPIAAF publicou em 6 de setembro uma nota informativa com o resultado das primeiras investigações.

O relatório apresentado honra quem o fez, pelo rigor das investigações. Deve insistir-se que o objetivo dos relatórios do GPIAAF, por força do normativo comunitário, não é o de apurar responsabilidades ou culpas, mas sim determinar as causas e as circunstâncias do acidente, apresentando recomendações e propostas de prazos para evitar a sua repetição .

A nota informativa refere a indefinição do enquadramento legal do ascensor e da supervisão da segurança de operação e manutenção. Essa indefinição é bem ilustrada pelo procedimento de infração 2020/2092 instaurado pela Comissão Europeia a Portugal com base em falhas no cumprimento do normativo de segurança da União determinado pelo regulamento 2016/798[1] :

i)                 na supervisão da gestão da segurança dos operadores e dos gestores de infraestruturas ferroviários;

ii)               no cumprimento das recomendações emitidas pelos órgãos de investigação de acidentes;

iii)             na capacidade organizativa da autoridade nacional de segurança.   (Nota do autor  – o autor já teve contactos com equipas da autoridade e testemunha a competência, o interesse e dedicação pelo serviço público; outra coisa é a disponibilidade de meios para realizar as tarefas necessárias e impor a execução das recomendações, de que um exemplo é a eliminação das passagens de nível por desniveladas, conhecendo-se um plano mas não o seu calendário de execução)

 

Estas indefinições e falhas têm de ser revertidas. Existe ainda em Portugal, e isso afeta a sociedade civil e os próprios decisores e governantes, uma deficiente cultura de segurança. São péssimos os indicadores de sinistralidade rodoviária e ferroviária comparados internacionalmente.

A segurança do transporte ferroviário é considerada uma área oculta reservada aos principais operadores e gestores de infraestrutura que no fundo são os principais assessores de decisores e governantes.

Quando se discutem orçamentos sacrifica-se no altar dos défices os investimentos que fazem falta aos sistemas de transportes. No caso da ferrovia os investimentos são justificados pela maior eficiência energética (menor consumo de energia por passageiro-km) relativamente ao transporte rodoviário, em igualdade de desenvolvimento tecnológico.

Não admira que quem se preocupa com a segurança ferroviária considere que o GPIAAF sofre as consequências do desinvestimento ao longo de anos, situação que deverá ser compreendida nos seus riscos pelos decisores e governantes e consequentemente revertida.  Nesse sentido, para além do GPIAAF, entidades como o IMT e a ANSF (Autoridade Nacional de Segurança Ferroviária) deverão beneficiar do investimento e melhoria da sua visibilidade e do cumprimento das suas recomendações. Igualmente projetos de modernização ou de novos traçados, elaborados se necessário com apoio internacional, submetidos aos critérios de normalização da União Europeia e bem executados com suporte financeiro comunitário, contribuirão para a melhoria do nível de segurança dos operadores e dos gestores de infraestruturas. Nesse esforço de melhoria deverá ser também chamada a sociedade civil através de, para cada ação de investimento, sessões colaborativas (inscrições prévias, intervenção, divisão da assembleia em grupos de discussão e reporte das conclusões de cada grupo – os especialistas de comunicação sabem como se fazem estas coisas e poderão orientar os decisores e governantes e seus assessores desde que não se fechem em círculos reservados).

Uma das questões ligadas ao desinvestimento prende-se com a opção nas empresas públicas de operação e gestão de infraestruturas para entrega por externalização (“outsourcing”) da manutenção especializada. Tal como oportunamente denunciado pelos órgãos dos trabalhadores e por técnicos da hierarquia das empresas, essa política traduz-se pela perda de capacidade oficinal das empresas e pela não substituição dos operários especializados que vão saindo por reforma, perdendo-se “know-how”. Dado que esta questão está mais ou menos relacionada com os critérios da política de privatizações, ela fica assim inquinada por razões ideológicas e não técnicas, omitindo-se muitas vezes os exemplos negativos em outros países, desde o caso do ferry “Herald of free entreprise” até aos acidentes na ferrovia inglesa. Muito dificilmente se poderá justificar financeiramente a opção pela externalização quando o que eventualmente se poupará (veja-se o caso dos concursos anulados por preços superiores ao estimado nos cadernos de encargos) é menos do que o que se perde em controle e monitorização. Mesmo admitindo maior produtividade na manutenção externa e consequente custo menor de produção, a soma do custo de produção externa com o lucro será normalmente superior ao custo de produção interno. Não se põe em causa a competência de técnicos de empresas externas, que mediante investimento poderiam ser admitidos pelo operador  ou gestor de infraestruturas públicos.  

Retomando a nota informativa do GPIAAF, nela se refere que :  "Neste momento ainda não foi possível proceder às verificações de confirmação de que o sistema de aplicação automática do freio pneumático nos veículos como resultado da perda da força do cabo no trambolho tenha ou não funcionado."

Isto é, não está comprovado que os elevadores funcionavem de acordo com o projeto (deteção de perda de tração do cabo, consequente desligação da energia elétrica e da eletroválvula do sistema pneumático e subsequente aplicação da pressão aos freios – aliás, o corte de energia deveria também ter travado o elevador que se encontrava junto dos Restauradores em velocidade reduzida, o que não aconteceu). A nota  conclui ainda que :  "na configuração existente os freios não têm a capacidade suficiente para imobilizar as cabinas em movimento sem estas terem as suas massas em vazio mutuamente equilibradas através do cabo de ligação. Desta forma, não constitui um sistema redundante à falha dessa ligação."

Portanto a investigação das causas e circunstancias prosseguirá, sugerindo-se, como ilustração de mudança de cultura, a progressiva informação à sociedade civil dos resultados sucessivamente conseguidos. Igualmente se sugere o método participativo em sessões abertas à universidade, associações e ordens profissionais e sociedade civil para informação técnica sobre os sistemas de proteção redundante nos funiculares de Lisboa e do país e sobre alternativas para substituição do elevador da Glória ou melhoria dos outros.

Não é um pedido espúrio, é apenas uma invocação dos artigos da Constituição da República que determinam o direito à informação e à participação dos cidadãos em assuntos públicos.

Admitindo, considerando o declive de cerca de 17% que o veículo esteve sujeito após o desprendimento do cabo a uma aceleração de 1,5 m/s2, desprezando a velocidade inicial,  a velocidade ao fim de 10m e 2s após o desprendimento seria de cerca de 20 km/h ( ao fim de 100m e 6s seria 62km/h). Seria de esperar que os freios imobilizassem o veículo a menos de 20km/h. Como a própria nota informativa refere, o tipo de cabo usado foi introduzido em 2019, interessando compará-lo com o tipo de cabo anterior e analisar o tipo de fixação (no veículo não acidentado). Igualmente é desejável conhecer-se o resultado de ensaios no veículo não acidentado sobre o funcionamento automático da travagem de emergência por perda de tração do cabo.

Parece uma boa  sugestão montar uma carreira de miniautocarros ligando a via poente da Avenida da Liberdade junto do sopé da Calçada da Glória  pela Rua da Glória, com o Largo da Oliveirinha.

Sobre o futuro, relembro que decorre neste momento na Suiça a substituição de um funicular de tração por cabo e contrapesos por um sistema de pinhão e cremalheira, mecanicamente mais seguro. Mas o novo elevador da Glória poderá continuar a ser por cabo desde que a sua instalação  seja otimizada e se montem sistemas redundantes de travagem de tipos diversos, e instalados sensores que detetem os estados de funcionamento de todos os componentes e os transmitam para uma central de controle com acionamento automático dos dispositivos de emergência.

Como já referido em muitos comentários, a caixa dos novos elevadores deverá ser estruturalmente capaz de resistir a embates, prevendo-se ao longo da descida elementos do tipo “air-bag” acionados por detetores de velocidade excessiva de modo a reduzir a velocidade de embate (note-se que no embate que aconteceu estimo uma desaceleração entre 6 e 8G para uma compressão de 2m a 60  km/h no embate, o que seria fatal para alguns ocupantes mesmo com a estrutura resistente da caixa).

Nos novos veículos e sistemas, para além do antecedente, poderão instalar-se:

dispositivos de segurança como patins de eletroímans entre rodados dos veículos que se “agarrem” 
aos carris,
· carris de maior peso unitário,
· calha em forma de U mais resistente para o percurso dos sucedâneos dos “trambolhos” com capacidade para suportar o aperto de maxilas ou cepos de travagem de maior potência acionados pela 
deteção de velocidade excessiva,
· redundancia dos dispositivos de deteção de velocidade excessiva com recurso a elementos no pavimento e leitura ótica.


 Finalmente recordo, citando de memória declarações do diretor do GPIAAF, que corrigir as deficiências e melhorar os recursos das entidades de monitorização da segurança e o funcionamento dos sistemas de segurança será uma forma de honrar a memória das vítimas.

 



[1]   https://eur-lex.europa.eu/eli/dir/2016/798/oj/eng                             De acordo com o art.1 deste regulamento, a sua aplicação não é obrigatória para metros e tramways, mas o mesmo artigo afirma que nada impede que o Estado membro o aplique a esses modos