segunda-feira, 10 de novembro de 2025

o martírio de santa Apolónia (escrito em 2014)

 

o martírio de santa Apolónia

“O que nos une é uma mesma ignorância.”

(Pedro Paixão, Rosa vermelha em quarto escuro)

 

Exmo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa

O Senhor Presidente da Câmara participou, sorridente, na cerimónia de inauguração da estação do Terreiro do Paço e de chegada do metropolitano a Santa Apolónia.

No metro já desesperávamos, mas entregámo-nos aos trabalhos que deixamos que chamem “de acabamentos”, neste caso também conhecidos por “especialidades ferroviárias”, e que o senso comum compreende que são os mais demorados, mas que aqui não foram e assim conseguimos que o senhor presidente da câmara estivesse sorridente naquele dia 14 de dezembro de 2007 e que nós escapássemos ao castigo de inviabilizarmos tão esperada consagração, embora ainda agora continuemos nos trabalhos e ensaios finais.

Graves foram os erros cometidos em todo o processo construtivo.

Corrigimos os erros.

Pagámos, somos tanto Povo como o Povo.

Demolimos os tampões de betão que protegeram o metro enquanto o túnel era consolidado com as obras de reforço.

Fernando antela Saraiva

Gastámos na construção da estação Santa Apolónia, porque há 150 anos ali era rio e depois aterro, mais dinheiro dos empréstimos do que na estação do Terreiro do Paço, que foi vítima do acidente.

Fixámos os carris ao fundo do túnel.

Estendemos os cabos elétricos e os cabos de comunicações que aguardavam a demolição do betão protetor para prolongar a rede até Santa Apolónia.

Ativámos o posto de ventilação do pátio do Arsenal da Marinha que devia ter começado a funcionar em 1998.

Enchemos as estações novas com tudo o que nos habituámos a instalar nas outras estações.

Orgulhámo-nos de ver, finalmente, os comboios cheios de cidadãos e cidadãs que chegavam da Azambuja, de Vila Franca, do Barreiro, do Lavradio, na sua caminhada diária para o crescimento do PIB.

E vem agora o Senhor Presidente propôr o martírio de Santa Apolónia, mandando parar os comboios no Oriente, vendendo terreno e aproveitando o convento da santa para terminal de cruzeiros.

Eu digo martírio porque para nós é doloroso ver quebrarse o elo de ligação do metropolitano aos comboios da Azambuja.

Felizmente os colegas da CP já vieram dizer que os terrenos são precisos (não digo que umas franjazinhas de terreno não se pudessem converter em euros...) para alojar infraestruturas; isto de comboios é uma maçada, não são só os comboios, há sempre necessidade de mais coisas para eles funcionarem, às vezes até um núcleo museológico para os colegas do estrangeiro, na reforma, cá virem deixar mais umas divisas, e que o serviço até Santa Apolónia se justifica também com a ligação ao metro.

Não terá estado o Senhor Presidente à altura do contributo que deu para a melhoria dos transportes coletivos quandovenceu a corrida com o Ferrari, essa ficou o metro a deverlhe, e a resposta correta dos colegas da CP não é suficiente para nos tranquilizar.

Terá havido um aconselhamento de economista.

Mas o Senhor Presidente sabe que o economista sabe quanto custam as coisas mas ignora quanto valem as coisas (definição dada por um economista).

Se ele soubesse, sabia que a chegada de comboio a Santa Apolónia daqueles cidadãos e cidadãs vale mais, muito mais do que as mais valias ganhas com a venda de terrenos para cobrir o défice da REFER.

E se lhe vierem dizer que o projeto da RAVE para a linha do Oriente já tem infraestruturas que chegam para dispensar todas as de Santa Apolónia, seja cartesiano, não acredite.

E se mesmo assim o economista lhe disser que já há correspondência com o metro na estação Oriente, então digalhe calmamente que os transportes urbanos numa cidade não são linhas, são redes de linhas, para que os cidadãos e cidadãs possam distribuir-se por várias linhas e por vários nós de correspondência.

É por isso que esta missiva começa com aquela citação de Pedro Paixão.

Poderá parecer deselegante, mas o objetivo é chamar a atenção para a complexidade dos problemas dos transportes urbanos, a que corresponde uma grande ignorância das soluções, e que todos partilhamos.

Ou uma intransponível burocracia ou inépcia paralisante, que não nos deixou beneficiar de fundos comunitários para, aproveitando os meios instalados em obra, prolongar a linha até às comendadeiras, em Santos o Novo, onde seria curial fazer uma correspondência com uma linha circular pelo vale acima (ficou amputado, o término de Santa Apolónia, nem sequer chegou a ameaçar as fundações da discoteca Lux).

Fernando antela Saraiva

Deixem-nos porém, já que temos obrigação de ser um bocadinho menos ignorantes em questões de transportes, continuar a transportar os passageiros da Azambuja pela cidade dentro.

E não leve a mal pedir-lhe que acredite nos técnicos de transportes. Quando De Gaule pediu o helicóptero para ver as “embouteillages” em Paris, em 1956, deu apenas uma ordem: “Resolvam-me esta merda” . Não disse como, nem disse ao ministro dos transportes para lhe explicar como. E foi assim que nasceu o RER (suburbanos de Paris).

E muito menos leve a mal que chame a sua atenção para um problema gravíssimo, em termos de transportes, que se gerou em Alcântara, graças a governos e câmaras anteriores.

Recorda-se do disparate de um anterior Presidente de Câmara propondo a supressão do caminho de ferro entre Alcântara e o Cais do Sodré e a venda do terreno para urbanizações de luxo?

Como pode a Democracia, como podem os cidadãos defender-se destes ataques?

A natureza geológica dos terrenos em Alcântara e a proximidade do caneiro da ribeira e da sua foz recomendam que as estações futuras do metro e da CP sejam em viaduto e que os cruzamentos rodoviários se lhes subordinem.

Não vale falar em agressões ambientais quando estiveram previstas as duas torres Siza, se pensou nos blocos Jean Nouvel e os edifícios novos que lá estão têm 6 pisos.

Caso para dizer agora que terão de ser os técnicos da especialidade a descobrir como fazer um terminal de cruzeiros onde o senhor presidente quer, sem erguer um muro segregador de 6 m de altura nem violar o convento de Santa Apolónia.

Mas, por favor, que não sejam técnicos só de uma entidade, para que possamos beneficiar de um bocadinho de diversidade.

É a diversidade a mãe das grandes soluções, diria o Padre António Vieira se as técnicas de gestão já estivessem no tempo dele tão evoluídas como agora.

Não queira que aconteça o que aconteceu com a Ota e com o TGV, localização deficiente do novo aeroporto e traçados incertos, graças ao sigilo com que foram estudadas as soluções.

E que não venha assim a haver nenhum martírio, que seria histórico, de Santa Apolónia, a virgem alexandrina heroína de um martírio lendário no século III, precursora do martírio real de Hipátia de Alexandria, a matemática lapidada por fundamentalistas cristãos um século e meio depois, quando por decreto imperial se extinguiu a cultura hieroglifica.

E se convoco Apolónia, a cultura que emerge, e Hipátia, a cultura que resiste, é porque são bons exemplos de que é fácil escrever a história quando se tem o poder; e fechar ou deixar a funcionar a estação ferroviária de Santa Apolónia será sempre a melhor solução se, quem o decidir, fôr quem tiver o poder de deixar escrito que terá sido a melhor solução, deixando porém a amargura em alguns: como evitar uma má solução para os transportes coletivos em Lisboa?

Pedindo desculpa pelo tempo tomado, apresenta os melhores cumprimentos, o cidadão munícipe de Lisboa

Breve recebi um email informando que a minha pretensão tinha sido encaminhada para o departamento competente para estudo. Evidentemente que nunca mais recebi nada sobre este assunto.


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