domingo, 19 de julho de 2009

Economicómio XVI – Hartmud, o Viking

Hartmud, o Viking, assim chamado por ser grande e de bigodes ruivos, já não vinha a minha casa há 35 anos.
Esteve comigo pouco depois do 25 de Abril de 1974. Era militante do partido comunista da RDA e tinha vindo estudar a nossa revolução.
Quando lhe perguntei por que os alemães da parte ocidental eram tão orgulhosos da sua economia florescente que encaravam com desdém os seus compatriotas de leste, respondeu-me que as leis da história e do desenvolvimento económico eram compatíveis com isso mas que acabariam por se impor.
Não pude retribuir a visita porque tinha sido admitido havia pouco no metropolitano de Lisboa. Mas a minha mulher pôde retribui-la. O que mais a impressionou foi ver as pessoas que habitavam pequenas povoações no interior, com o ar mais normal do mundo, com o mesmo aspecto das que viviam na cidade, de aspecto pacífico, tranquilo, satisfeito.
Sabemos agora que a gestão da coisa pública padecia de afastamento das realidades e que não era sustentável. Também não era aceitável morrer gente junto do muro de Berlim, nem aceitáveis eram os métodos da Stasi.
Porém, o facto era que as pessoas tinham segurança social e acesso ao emprego, que são dois dos direitos da declaração dos direitos do homem que actualmente os economistas que nos governam acham que não é preciso cumprir.
Por isso Hartmud insistia que o problema não era da essência do modelo, que ele podia ser modificado para melhor, mas que a grande questão era que as pessoas também tinham de se modificar, e isso podia levar ainda gerações.
Possivelmente Hartmud tinha estudado os intangíveis de Keynes (Keynes justificou a grande depressão por razões intangíveis da psicologia das multidões: que de repente acharam que a economia estava a piorar e cortaram nos consumos, gerando excesso de produção) e intuiu que o socialismo exige a adesão das pessoas e que às pessoas lhes custa libertar-se dos seus genes egoístas. Ou, como se diz em coloquial português, sem socialistas não pode haver socialismo.
Verdade que Hartmud se referia mais às pessoas do lado ocidental, pelo que terá ficado muito desiludido com a queda do muro de Berlim.
Mas o mundo continuou a dar as suas voltas e eis que Hartmud está de novo em minha casa.
- Fascinante, toda esta evolução – disse Hartmud - a capacidade produtiva em extensão e em qualidade técnica evoluiu de tal maneira no último quartel do século XX que nenhum modelo matemático de economia podia simular a realidade. As pessoas não aderiram ao ideal socialista, mas as leis do processo histórico e da economia, agora a um outro nível mais elevado, funcionavam. Os países do mundo ocidental produziram uma economia mais forte do que do lado do Comecon, a gestão do problema da energia deste foi catastrófica e ineficiente, a formidável máquina de propaganda ocidental moldou a opinião das pessoas: crimes contra a humanidade era tudo a leste.
Entregue à ideologia neo-liberal ou ultra-liberal em período de abundância do petróleo, a economia continuou a evoluir de acordo com as leis da economia, como não podia deixar de ser, passe a redundância.
A globalização de sentido único (por exemplo, os USA e a EU têm restrições à importação de produtos agrícolas de África, mas esta nem condições tem para impor restrições), sabe-se agora, quase 20 anos depois da queda do muro, conduziu a um fosso maior entre ricos e pobres, apesar do extraordinário progresso técnico (Marx dizia que o progresso técnico servia para aliviar o esforço necessário de quem trabalha, desde que as mais valias não se acumulassem desigualmente…).
O mercado a funcionar não cumpriu a profecia de Adam Smith. O interesse individual não pode beneficiar o interesse colectivo, como na fábula do lobo e do cordeiro (este, por mais que demonstre que bebendo água do regato a jusante, não pode estar a prejudicar o lobo, acaba na barriga dele). Basta uma pequena assimetria de informação e o mercado está distorcido.
- É verdade - assenti eu – ainda hoje noticiaram o julgamento do antigo presidente da Telefónica espanhola. Antes de ser presidente da Telefónica, foi presidente de uma empresa, a Tabacalera. A dado passo, em período de alta, vendeu as acções que detinha. Depois, anunciou o negócio de venda a uma grande empresa, dando a entender que o objectivo desta era fechar a Tabacalera. As acções da Tabacalera vieram naturalmente por aí abaixo, que é para o que serve a Bolsa, para dar a cotação que as pessoas do meio têm do valor de uma empresa. Voltou a comprar as acções, agora a um preço muito inferior, e resolveu conservá-las e manter a Tabacalera a funcionar. Ganhou quase 2 milhões de euros com o negócio. O tribunal considerou provado o crime de inside trading, mas não o condenou porque o crime prescrevera entretanto. O homem há-de pensar, com uma certa razão, que o comum dos cidadãos é tonto.
- É isso mesmo, as mais valias geradas com a venda de acções são muitas vezes imorais, mas não se pode provar a ilegalidade, porque existe assimetria de informação. Eu penso que os beneficiários de mais valias elevadas sabem que esse é um benefício que não pode ser generalizado a toda a população. É um prémio que só sai a alguns. Portanto é uma assimetria, uma desigualdade, e essa é a essencia do ultra-liberalismo no que tem de anti-democrático. Só alguns podem ter o prémio. É o contrário do que diz o lema da revolução francesa - "égalité".
Outros exemplos de que a economia não pode funcionar muito tempo em regime ultra-liberal foram os casos da economia de casino dos sub-prime, das contas off-shore e das promessas de remunerações elevadas de fundos de investimento piramidais.
Tudo consequências do “laissez faire, laisser passer”.
- E contudo, as próprias pessoas, intoxicadas ou não pela propaganda das virtudes do mercado, apoiavam essas formas de actuação. E continuam a votar em partidos de direita, como se estivessem à espera de que lhes saia o prémio.
-Sim, mas só apoiaram as práticas até ser demonstrada a insustentabilidade do esquema, só até esgotarem a capacidade de absorção pelo sistema dessas práticas.
Já tinha acontecido com a grande depressão de 1929. Voltou agora a acontecer. Pode ser que os economistas dos governos, agora que já não estamos em abundância de petróleo barato, desenvolvam políticas de investimento, com mais contenção das grandes empresas, que abandonem o dogma dos limites do défice e combatam a correlação entre o custo de vida e o desemprego (a curva de Philips: para conter a subida dos preços, aumenta-se o desemprego para diminuir o poder de compra e, consequentemente, diminuir a procura e baixar os preços).
E também pode acontecer que as pessoas aprendam com a repetição da história, embora muitas vezes votem contra os seus próprios interesses.
Por exemplo, as últimas sondagens indicam que os alemães de leste acham que viviam melhor no tempo da RDA, e os do lado ocidental dizem o mesmo, relativamente ao lado ocidental, claro. A comunicação social não divulgou muito os resultados porque contraria o preconceito de que tudo na RDA estava mal.
Talvez a questão não seja de ideologia, mas de questões técnicas de qualidade de vida sustentável.
Repara que as pessoas votam em políticos de direita porque eles até tomam algumas decisões correctas no meio desta confusão.
O problema é que a correcção no meio da barafunda pode ser o que fez agora a Califórnia, a 10ª economia mundial, à beira da falência. Fez o mesmo que o subdesenvolvidissimo Afeganistão: promoveu a produção e distribuição de marijuana como principal actividade económica do estado (depois de a legalizar, para “fins medicinais”, claro), à frente de silicon valley, de Hollywood, do vinho californiano. As receitas dos impostos que estão a ter estão a equilibrar as contas públicas. É a nacionalização do vício.
- Meu caro Hartmud, ainda bem que o muro caiu. Assim deixou de ser o socialismo a ter a culpa de tudo, a ter de andar a violar direitos humanos.
- É, só que é como os intangíveis do Keynes. As pessoas também têm de mudar.
- Claro. O problema da marijuana na Califórnia e no México, do ópio no Afeganistão, da cocaína na Colômbia, é exactamente o obstáculo que isso representa à educação das crianças desses países. Era por aí que a humanidade podia progredir, mudar um bocadinho, educar as crianças, todas.
E agora que já sabemos como se resolvem os problemas do mundo, Hartmud, vamos tomar um café. Eu depois mando-te um email com os resultados das nossas eleições.

2 comentários:

  1. Mas, afinal, na RDA existia um pseudo-comunismo ou um pseudo-socialismo?
    Independentemente da ideologia, na RFA também havia emprego e segurança social e ainda... Marcos, Mercedes, BMW, VW, Siemens e mais algumas das maiores e mais importantes empresas do mundo.
    E se o primado de de algumas das ideologias do bloco de leste era a produção, deveriam ter aprendido com a RFA, porque 20 anos depois da guerra era novamente um gigante mundial.
    PHP

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  2. Carissimo PHP
    Não lhe sei responder de que pseudo se tratava. Estou tentado a concordar que era pseudo. Talvez porque a ciencia da economia política ainda não se tivesse desenvolvido o suficiente, por falta de informação com base na riquissima experiencia vivida nos ultimos 2 anos. Lembra-se quando Angela Merkel começou a ralhar com os patrões das empresas tão admiradas por si, por "empocharem", pura e simplesmente, na melhor tradição do interesse individualista adam smithista? os quais carreavam milhões dos seus também admirados marcos para "off shores" no Luxemburgo e na Suissa? falta de regulação? perdoe-me o cepticismo, mas não, porque a acumulação indevida de capital é a essencia da economia que Hartmud em 1974 reconhecia ser florescente, mas que hoje, em 2009, não pode esconder que a GM alemã anda a pedir empréstimos para que alguém a compre, enquanto a Porsche já conseguiu ser comprada pela VW, em pleno processo de concentração em que não há lei anti-cartel que valha (porque, por definição, haja um pouco de matemática nisto,não se pode ser adam smithista e regular). A economia é, de facto, uma ciência chja multiplicidade de variáveis transcende a capacidade de processamento do homem. Têm de se definir prioridades, i.é, fixar variáveis. O problema é que a experiencia dos tais pseudos, como diz, não conseguiu, e actualmente andamos todos um bocadinho desorientados. Por isso mesmo, eu sugeria o cumprimento o mais modesto possível da declaração dos direitos do homem, aquela coisa do direito à educação, à segurança social, ao emprego, mesmo que os empregos fossem mexerucos e não houvesse Mercedes para comprar, nem Porches... Mas democraticamente o pessoal prefere concorrer à lotaria das altas remunerações dos fundos (o BPN já está a oferecer 3,25% ao ano líquidos, nada mau pra o BPN, pois não?).

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