domingo, 4 de janeiro de 2015

Teoria do transporte de passageiros - miniensaio

resumo: recordam-se aqui algumas fórmulas fundamentais para a exploração de uma linha de transportes, e alguns gráficos que traduzem as relações entre o fluxo de tráfego e a densidade de veículos numa via rodoviária, nomeadamente na formação de engarrafamentos. Tenta-se ainda o relacionamento com o comportamento dos condutores. Fontes: metropolitano de Lisboa e "Critical mass", de Philip Ball, ed.Arrow Books, 2004


Um indicador importante para o dimensionamento da exploração de uma linha de metropolitano, de comboios suburbanos ou de autocarros, é a capacidade de transporte de passageiros numa secção da linha, por hora e sentido.
Por analogia com a mecânica dos fluidos, essa capacidade é a medida do fluxo de tráfego de passageiros, determinada a partir de matrizes de deslocação casa-emprego, de inquéritos e do planeamento de organização do território.
A capacidade horária da linha depende da capacidade c' de cada veículo e do intervalo de tempo ∆t entre comboios, ou tempo de espera máximo, em segundos, segundo a fórmula:

                                   C = 3600.c' / ∆t

O número n de veículos em toda a linha, nos dois sentidos, é igual ao quociente entre o tempo total de percurso dos dois sentidos da linha, incluindo os términos, e o intervalo entre comboios (n=T/∆t).
Considerando a velocidade média  v em km/h de circulação em toda a linha, incluindo os términos, e o comprimento L em km da linha de ida e volta, incluindo os términos, verificam-se as seguintes fórmulas:

                                  ∆t = 3600.L / v.n
                             
                                  C = c'.v.n / L

                                  n = 3600.L / ∆t .v

Para uma dada capacidade de um comboio, o intervalo de tempo entre comboios é imposto pela capacidade horária desejada (tanto maior quanto maiores a capacidade do comboio, a velocidade média e o número de comboios em linha, e tanto menor quanto maior o comprimento da linha).
O número de comboios necessário em linha, para esse intervalo entre comboios, dependerá então da velocidade média que puder manter-se (o número de comboios será tanto maior quanto maior for o comprimento da linha e tanto menor quanto maiores o intervalo e a velocidade média).

Tabela de valores construida para uma linha de 10 km (ida e volta mais términos) e comboios para 400 passageiros:



Para uma capacidade horária desejada de 10.000  pass./h ter-se-á um intervalo entre comboios de cerca de 150 segundos:

Entrando com o valor de 150 s no gráfico que relaciona ∆t  com v obtem-se nas curvas de  n  o valor de 10 comboios se puder garantir-se a velocidade média de 23-25 km/h.
Se for possível garantir uma velocidade média um pouco superior a 31 km/h serão suficientes 8 comboios (mais os 10% para imobilização para manutenção):




Outra forma de apresentação do resultado, sob a forma do gráfico da capacidade da linha em função do número de comboios para várias retas de velocidade:



Esta análise mostra assim a importancia das duas grandezas, a capacidade horária ou fluxo de tráfego, por um lado, e o número de veículos em linha ou densidade espacial de veículos, por outro.
Mostra-se que a mesma capacidade (ou intervalo de tempo entre veículos) pode ser alcançada com um menor número de comboios se se conseguir uma velocidade média maior.



Esta conclusão pode tornar-se perigosa quando se faz a transição para a análise rodoviária, sabendo-se que existe uma correlação fortemente positiva entre a velocidade média de deslocação dos automóveis e a sinistralidade rodoviária. Dados da ANSR indiciam que uma redução de 5% da velocidade média induz uma redução do número de acidentes de 30%.
Essa correlação deve-se aos condutores, para além de razões comportamentais, não disporem de toda a informação sobre o espaço à sua frente, nomeadamente sobre os indicadores de aderencia ao solo, de adequação às condições ambientais (por exemplo, o campo de visão reduz-se impercetivelmente ao aumentar a velocidade, a existencia de nevoeiro reduz as referencias para a estimativa da distancia de travagem) e de aproximação de obstáculos, com a agravante de se tratar de variáveis aleatórias.

Considerando para simplificar uma via num unico sentido, com uma distribuição uniforme de veículos ao longo da via a velocidade constante, vamos estabelecer uma tabela para vários valores do intervalo de tempo entre veículos e de velocidade, para traçar os gráficos que relacionam o fluxo de tráfego (ou número de veículos por hora numa secção da via) com o intervalo de tempo entre veículos, e o fluxo de tráfego com a densidade de veículos na via (ou número de veículos por km):


Verifica-se que o fluxo de tráfego ou capacidade horária de transporte do sistema é inversamente proporcional ao intervalo de tempo entre veículos (ou diretamente proporcional à frequencia com que passam numa dada secção).
O fluxo de tráfego em veículos por hora é também igual ao produto da densidade espacial de veículos, em veículos por km, pela velocidade em km/h, aqui suposta uniforme.
Isto é, uma mesma capacidade pode ser conseguida com uma velocidade baixa mas elevado número de veículos na estrada (densidade elevada, intervalo de tempo entre veículos pequeno), ou com poucos veículos, mas velocidade elevada.
No gráfico seguinte representam-se as funções:
               -      F, fluxo de tráfego, em função da densidade por km D, sob a forma de uma reta para cada valor de velocidade v ;
               -      F em função do intervalo de tempo entre veículos, ∆t
Entrando no ponto 1 com uma densidade de 20 veículos/km, obtem-se no ponto 2, na reta para v=108km/h, o valor de F=2016 veículos/h.
Deslocando para o ponto 3 obtem-se na curva de F em função de ∆t o valor de 1,8 s, no ponto 4.



O gráfico seguinte mostra outra forma de relacionar a velocidade em função do intervalo de tempo entre veículos, com as curvas para a densidade de veículos por km, crescente com a diminuição de ∆t e de v  (densidade em veículos por km inversamente proporcional ao produto de ∆t por v).



Estas fórmulas e gráficos, após breve análise das principais regras do tráfego automóvel, permitem abordar o fenómeno dos engarrafamentos, nomeadamente em autoestradas, e a fundamentação das recomendações para otimização do tráfego, de que se destaca a moderação da velocidade e a manutenção de um intervalo entre veículos superior ao espaço correspondente ao tempo de reação para a velocidade efetiva.

Regras elementares (segue-se com um pequeno acrescento a exposição do livro Critical mass):
- a tendencia dos condutores é acelerar até atingir uma velocidade objetivo
- um dos objetivos da condução é evitar colisões
- é fisicamente impossivel aos condutores adotarem as acelerações e desacelerações exatas em função das condições envolventes, donde a tendencia é, após o tempo de reação, adotar uma desaceleração superior à do carro que seguia em frente e abrandou
- em qualquer condução existem flutuações de velocidade devidas a pequenas distrações ou acontecimentos fortuitos (atravessamento da estrada por animais, ressalto de pedras, picada de insetos, etc)
- a condução é influenciada  por fatores comportamentais, como euforia devida a acontecimentos de impacto social, consumo de drogas, afeções psicológicas, compulsão para afirmação própria ou compensação com manobras aberrantes como ultrapassagens pela direita, mudanças bruscas de via, excesso de confiança, etc.
Nestas condições, o tráfego é um sistema de variáveis aleatórias sujeito a níveis de ruído não controláveis de forma determinista, dependendo as condições de segurança mais de regras gerais que deverão ser observadas por todos do que análises racionais caso a caso em tempo real.
Do livro Critical mass retiro a este propósito uma citação de Freud (as análises da sinistralidade rodoviária deveriam dar mais atenção aos aspetos psiquiátricos da condução, e os condutores deveriam ter mais consciencia das limitações da sua liberdade individual numa estrutura partilhada com outros):

"A liberdade do individuo não é uma dádiva da civilização. Seria maior antes de existir qualquer civilização, embora na verdade não teria grande valor, uma vez que o individuo estava em má posição para a defender. O desenvolvimento da civilização impôs-lhe restrições, e a justiça exige que ninguém deverá escapar a essas restrições ... esta substituição do poder do individuo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização" (S.Freud, A civilização e os descontentes)  

No gráfico seguinte representam-se as trajetórias de 5 veículos em via única sob a forma de espaço em função do tempo, inicialmente com uma velocidade uniforme de 108 km/h para os 5 veículos, espaçados também uniformemente de 30m e 1s.
Esta é uma situação não recomendável, porque o intervalo de tempo entre veículos é inferior a 2 segundos, considerado o tempo médio seguro de reação a mudanças na envolvente (é possível conduzir com concentração de modo a ter um tempo de reação inferior a 0,5s, mas numa viagem longa é impossivel garanti-lo permanentemente).
Admitindo que no instante t=2 o veiculo 1 sofreu uma desaceleração imprevista, passando a velocidade de 108 km/h para 36km/h (o exagero é propositado), e que o tempo de reação de condutores e equipamento é de 1s, o veículo 2 percorre 30m (distancia percorrida em 1s a 108km/h) até ficar à distancia de 10m do veiculo 1. Segue-se uma travagem com uma desaceleração superior à do veiculo 1, para uma velocidade de 27km/h. Repetindo-se o processo, o veiculo n que vier atrás poderá ter de abrandar até à paragem total, em que tivesse ocorrido nada de extraordinário, apenas um abrandamento do primeiro veículo, que nem terá sido afetado pela propagação da perturbação para montante.
A deslocação de grupos de automóveis com intervalos de tempo inferiores ao tempo de reação médio de segurança é assim um equilibrio instável, agravado por comportamentos individualistas como ultrapassagens que obrigam outros condutores a travar. O condutor incorreto poderá chegar mais cedo mas a média geral e o consumo adicional de combustível da maioria piorou. Daí  a citação de Freud.




A figura seguinte representa, num gráfico do fluxo F em função da densidade por km D, a ocorrencia do fenómeno de engarrafamento atrás descrito e a evolução da sua recuperação.
Existe, para cada velocidade e em função do intervalo de tempo, uma densidade crítica para a qual o equilíbrio é instável.
No caso do gráfico, considerou-se, para um intervalo de 1s, uma densidade de 33 veículos por km, o que dá uma capacidade de transporte de 3600 veiculos/h.
Ocorrendo a perturbação, a velocidade vai sucessivamente baixando e a capacidade tambem, mantendo-se o intervalo em 1s, até ao ponto em que a densidade sobe para 160 veiculos por km e a a capacidade desce para 1640 veiculos/h.
Caso não ocorram novas perturbações poderá retomar-se a curva da velocidade de 108km/h mas num ponto de menor fluxo, isto é, num fenómeno de histerese.
Verifica-se assim que, para uma velocidade menor e um intervalo maior, por exemplo 72km/h e 2s, será maior a probabilidade de garantir em permanencia um fluxo mais elevado, 1800 veiculos/h , do que em condições de perturbação para 108km/h e 1s.
Esta a razão por que nalgumas autestradas alemãs existe, em horas de ponta, limitação de velocidade a niveis suficientemente baixos para, juntamente com uma distancia entre veiculos razoável, garantir o escoamento em permanencia.
Os dois ultimos gráficos são retirados do livro Critical mass e representam gráficos de engarrafamentos com medidas em tempo real do fluxo de tráfego e espaço-tempo efetuadas em autoestradas alemãs.







Nota: Existe uma edição em português , Massa crítica, de Philip Ball, ed.Gradiva de 2009 , preço 45 euros.
Pela aplicação de métodos e leis da física, de métodos estocásticos e da estatística de sistemas de variáveis aleatórias, à economia, à sociologia e à politica, este livro deveria ser estudado nas empresas de serviços, salvo melhor opinião, naturalmente.

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