sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

viagem a Coimbra

o texto seguinte faz parte de umas memórias do  metropolitano






escrito assim, viagem a Coimbra, poderia pensar-se
que o seu motivo seria um dos atributos da cidade; terá sido essa a intenção de Rossini ao escolher o título de viagem a Reims para a sua ópera, que Reims era a cidade de coroação dos reis de França e havia que cumprir a tradição com Carlos X, o da restauração da  monarquia depois da revolução (a todos os ancien regime custa aceitar a mudança definitiva); Rossini teria querido homenagear o monarca, ou escolheu o título como quem, em Portugal, dissesse “uma viagem ao Cartaxo”, já que Reims é a capital do champanhe? é que o tema da ópera é tão fútil…o que  não é o caso desta viagem a Coimbra, escolhida apenas por ser o centro, não propriamente geográfico,  mas cultual do país



A oradora, perante uma assistência de um milhar de pessoas, falava da hesitação que tivera em aceitar o trabalho.
Estranhara a natureza e a extensão.
Como socióloga, especialista de comunicação e consultora de gestão, porém, achara o desafio entusiasmante.                
O ministério dos transportes e comunicações tinha-lhe encomendado uma reunião em Coimbra, do tipo seminário, das administrações e direções de todas as empresas públicas de transportes do país, para discussão e apresentação de propostas de estratégias.
Dois comboios especiais, um de Lisboa e outro do Porto, tinham despejado na estação de Coimbra os participantes, levados depois de autocarro até à sala de congressos do estádio municipal.
Estava-se em dezembro de 2004 e o ministro dos transportes, incensado gestor de empresas energéticas, e o seu secretário de Estado, aplaudido professor universitário ambientalista, queriam dar um toque de gestão empresarial inovadora e competitiva à pesada máquina do setor de transportes.
A oradora expôs o que, como utilizadora, pensava de um sistema de transportes.
Que era a base de uma pirâmide que assim contribuía para o esforço de produção de todo um  povo, e que crescia todos os dias de madrugada, quando as pessoas que produzem começam a sair de casa.
E disse que o que melhor ilustrava isso era a poesia.
Citou Alvaro de Campos, Livro de versos:

Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras, 
Acordar da Rua do Ouro, 
Acordar do Rossio, às portas dos cafés, 
Acordar 
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme, 
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono. 

Citou Carlos Oliveira, Quando a harmonia chega:

Acordam pouco a pouco os construtores terrenos,
gente que desperta no rumor das casas,
forças surgindo da terra inesgotável,
crianças que passam ao ar livre gargalhando.
Como um rio lento e irrevogável,
a humanidade está na rua.

A organização tratou de dividir os participantes em grupos à volta das tradicionais mesas redondas de casamento, 8 a 10 por mesa, misturando administradores, gestores, diretores e técnicos sorumbáticos, exuberantes, burocráticos, inovadores, conformados, discretos, ignorantes ou conhecedores da problemática dos transportes, do norte, do centro ou do sul do país.
A todos foi pedido que listassem as ameaças, as oportunidades, as fraquezas e os pontos fortes das empresas públicas de transporte, isto é, os componentes de uma análise SWOT.
O tema do seminário era apenas o das redes de transportes metropolitanos e suburbanos, e o objetivo de comparar as medidas estratégicas do ministério com as emanadas do corpo técnico e de gestão do setor, e assim ficou de fora a questão da rede de alta velocidade, que começava então a ser tratada a nível ministerial com os nossos vizinhos espanhois.
O objetivo do ministério neste seminário era o de recolher medidas a incluir no plano estratégico que começava a delinear-se para todos os modos, que era um objetivo mais vasto, de modo a rentabilizar as discussões com o diretório de transportes da comissão europeia.
Foi pena não se ter realizado um seminário especialmente dedicado ao tema da alta velocidade.
Ter-se-iam evitado os erros do traçado proposto em Espanha, fonte de  estrangulamento do tráfego se vier a ser realizado.
E ter-se-iam compatibilizado  os conceitos do serviço de mercadorias, centrado  na ligação com a região de Madrid e com a fronteira francesa, com o de passageiros, centrado na transferência para a ferrovia de passageiros das quase duas dezenas de ligações aéreas diárias com Madrid, fundamentada na maior eficiencia energética do transporte ferroviário relativamente ao transporte aéreo para a distancia Lisboa-Madrid.
E, por maioria de razão, ter-se-ia evitado o penoso processo de demonstração do erro de localização do novo aeroporto na Ota.
Todos os grupos, beneficiando da diversidade dos seus membros, debateram um leque variado de questões.
Desde a necessidade de reduzir a quota de transporte individual  nas áreas metropolitanas de modo  a beneficiar de economias de energia devido à maior eficiencia energética do transporte ferroviário, de reduzir custos na construção de redes metropolitanas e suburbanas (ainda se acreditava ser possível construir uma boa rede ferroviária entre Coimbra e a Lousã…) , de associar intimamente a politica de urbanização com o planeamento dos transportes, de taxar a entrada no centro das cidades, de fiscalizar rigorosamente o estacionamento, de copiar o sistema contributivo francês do “versement” pago pelas empresas com mais de 9 empregados, de repartir as receitas dos passes em função dos passageiros.km transportados, de aproximar  as receitas operacionais dos custos operacionais, de repercutir as mais valias urbanísticas nas receitas dos metropolitanos…
As gentis assistentes da organização, vestias de vermelho, recolheram as conclusões de cada grupo e foram reunindo num quadro os componentes SWOT de modo a, pouco a pouco, à medida que iam sendo lidas as contribuições, ganharem relevo as medidas estratégicas associadas às oportunidades.
Como se fosse um brinde, o secretário de Estado, ao encerrar os trabalhos, comunicou que o ministério ia financiar um programa de seleção e colocação nas empresas de transportes de 1000 estagiários recem licenciados com as  melhores classificações.
Tive o prazer de trabalhar com alguns no metropolitano de Lisboa, especialmente em tarefas ligadas às expansões da rede do metropolitano, embora não conseguisse convencer as administrações de que a engenharia é uma ideia também para o dia a dia da manutenção, da sua otimização, de melhorias do existente e de análise de perigos, e que portanto o concurso dos jovens licenciados no reforço das áreas das especialidades de engenharia era útil.
Infelizmente o critério de custos, ou talvez simplesmente o da falta de recursos, abafa o da qualidade e o da utilidade da engenharia.
Pese embora a engenharia servir, entre outras coisas, para evitar o desperdício à custa de um investimento.
A maior parte, porém, das medidas discutidas na reunião perderam-se nas vicissitudes de um ministério atribulado, ou diluíram-se tímida e ineficazmente no plano estratégico que o ministério divulgou uns anos depois.
Mas ficou o contacto franco entre técnicos de todo o país.
E a certeza de que é a discutir de forma aberta e participativa, sem condutores de opinião, extraindo  conhecimentos e  experiencia de cada um e de todos, que se encontram as soluções.
Nunca em secretismo e na entrega seletiva a grupos restritos, por mais credenciados que sejam os seus técnicos, do poder de tomada de decisões de soluções concretas.
No comboio de regresso, pensei no verso de Carlos Oliveira “Como um rio lento e irrevogável,a humanidade está na rua”, de como é injusto culpar pelos prejuízos de exploração e de financiamento os trabalhadores destas empresas, que são também a “humanidade na rua”, como os que se levantam cedo para tomar os modos de transporte, e que nada têm de comum, a não ser pertencerem à mesma espécie humana, com os financeiros, uns especulativos, outros dogmáticos insensíveis nas regras que impõem.



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