sábado, 30 de janeiro de 2010

As laranjeiras da praça de Alvalade

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Eu estou a escrever isto porque sou um bocadinho rústico embora viva em Lisboa, mas não nasci em Lisboa, vim viver para cá ainda só tinha 5 anos, por isso é como se fosse de Lisboa mas na verdade sou como comecei por dizer um bocadinho rústico e por isso tive de escrever isto porque, como disse, estava habituado a viver no campo e de repente, com 5 anos vejo-me a viver em Lisboa e logo na primeira vez que saí, havia em frente da nossa casa, não era bem uma casa, era um andar, ali na rua de Santana à Lapa, uma encosta cheia de ervas e com um rebanho a pastar, e eu lembro-me de na altura pensar que afinal era bom viver em Lisboa e fui passear para lá como costumava fazer na minha terra que estavam sempre a dizer à minha mãe que era um perigo eu andar a passear pelo campo fora porque havia pedreiras para a fábrica de cimento e uma linha de caminho de ferro para os vagões levarem o cimento dali para fora que eu nasci numa terra em que se produzia e ainda se produzem bens de utilidade para a comunidade e aqui em Lisboa também era um perigo por haver muitos automóveis eu até me lembro num dos primeiros dias de ver no cimo da Santana à Lapa um Chrysler De Sotto todo cheio de cromados todo esborrachado, o focinho, num eléctrico que ia a subir a Rua de Buenos Aires e eu não gostei nada de ver porque gostava muito de carros com cromados e quando ia a meio da encosta a sentir o cheiro bom das ervas e a humidade da terra que ainda não estávamos no verão vem um senhor com um boné de pala, vestido todo de azul que era a farda dos guardas da altura, ainda não havia estas empresas todas de segurança que visam suprir as faltas nos quadros da polícia ou nos quadros das empresas, e começou a gritar que era proibido andar ali e que se lá me voltasse a ver eu ia preso, como devem calcular eu não gostei nada e não voltei lá porque apesar de me sentir livre de pensamento faço os possíveis por evitar conflitos e quando não se consegue resolver as coisas pela argumentação é porque as pessoas não utilizam os métodos correctos de abordagem dos problemas ou porque foram forçadas por condicionalismos externos ou internos, ou simplesmente não querem na expectativa de recolherem benefícios individuais, e de facto, o guarda estava ali para guardar o terreno onde o empreiteiro daí a uns dias começou a tirar a terra para depois construir os edifícios que lá estão, entre a rua de Santana à Lapa e o gasómetro que já não está lá, os prédios em cima daqueles pilares que, apesar de tudo, nem são dos piores exemplares da arquitectura dos anos 50 do século passado, ai a idade que eu já tenho, mas a verdade é que provavelmente terei ficado traumatizado com este episódio e criado um sentimento de impotência perante a liberdade cerceada de passear no campo, coisa a que eu estava mesmo habituado e também por isso sempre me deliciei a contemplar as árvores que vejo nos passeios de Lisboa com grande pena de estar a ser egoísta quando elas são plátanos ou tílias e o pólen das inflorescencias esféricas e dos amantilhos tanto perturba os concidadãos alérgicos quando começa a primavera, mas todos somos egoístas e nestas coisas das árvores há sempre a possibilidade do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa escolher convenientemente as espécies de árvores em função das necessidades dos contextos particulares de local, tempo e modo, sem prejudicar os alérgicos, estou a dizer minha cidade porque vivo cá há tantos anos, como já disse, casei com uma menina lisboeta e pago as contribuições que a Assembleia municipal em que estão representantes por força do meu voto, poucos representantes porque os meus concidadãos acham que devem votar de maneira diferente da minha, entende por bem fixar, por isso penso que tenho o direito de dizer que me sinto muito desgostado com a forma como o departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa trata os arranjos paisagísticos, especialmente quando há mudanças por causa das obras do metropolitano, não nos esqueçamos que um dos temas principais deste blogue é precisamente a problemática dos transportes, e na altura das obras na estação do Marquês de Pombal que dantes se chamava Rotunda que era um nome bem republicano e servia para recordar que ali estiveram uns republicanos corajosos que ainda bem que as tropas monárquicas não estavam lá muito bem organizadas, que a força que mantem um sistema injusto acaba sempre por claudicar, é o que vale, e lá conseguimos ser uma república, que é coisa de que não podem orgulhar-se países mais civilizados que fogem à regra democrática de que todos os cidadãos nascem iguais em direitos políticos, sem cargos públicos à espera que o bebé cresça, e quando será que as monarquias escandinavas respeitam a regra democrática, terá de ser o príncipe herdeiro a declarar-se republicano, como o Júlio Verne ficcionou o grão duque herdeiro do império austríaco, mais valia que lhe tivessem dado ouvidos, ao Júlio Verne, e proclamado a república austríaca antes da I Grande Guerra e talvez não houvesse I Grande Guerra, mas de que serve agora chorar sobre o molhado, não sei, talvez o estudo mais científico do que interpretar a história dos conflitos na ótica dos vencedores pudesse evitar a repetição de erros como a invasão do Iraque, não sei, agora que não há meio do exército americano acertar a retirada com os chefes tribais e o exército afegão, nem o maestro Barenboim, com a sua orquestra palestino-judaica, conseguir convencer os repectivos decisores a acabar com a guerra, mas Marquês de Pombal também é um nome bem posto à estação para que os jesuítas não se esqueçam que podem colaborar com a comunidade mas façam o favor de não exagerar e não queiram controlar ad majorem gloria a formação das elites porque a comunidade dispensa heróis, vedetas e elites e o que era bom era nós fazermos as coisas normalmente como pessoas limitadas mas honestas, fazendo convergir os nossos esforços sem armarmos em detentores de verdades supremas, isto é, trabalharmos em equipa e por isso eu andei a recolher umas informações sobre espécies de árvores cujas raízes fossem horizontais, quando foram as obras da estação do Marquês de Pombal, não sei se se recordam que antes das obras havia na parte mais acima da avenida da Liberdade, em frente do Diário de Notícias, uns freixos frondosos e uns lódãos do rei bonitos que sombreavam os verões lisboetas, e as raízes tinham de ser horizontais porque as obras foram projectadas de tal maneira que a espessura resultante de terras entre a laje de cobertura da estação e a superfície, para os passeios da avenida e para as vias de rodagem, era muito reduzida e por isso eu recolhi essas informações e até tirei umas fotografias em Barcelona de uns arranjos nos passeios para ganhar volume de terras para as raízes das árvores, entreguei tudo ao meu amigo que na altura era o diretor da obra e ele falou então nas reuniões com os técnicos do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa, mas as coisas não correram bem porque lhe disseram que nós, nós os técnicos do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa, nós é que sabemos e os arranjos somos nós que decidimos, também não serviu de nada uns anos mais tarde, quando foi da obra da remodelação da estação Roma que esteve tanto tempo com a superfície da avenida avariada apesar de se ter usado o método construtivo invertido da laje de cobertura para baixo, eu ter sugerido que se estavamos na avenida de Roma era bom pormos uns pinheiros mansos, ai os pinheiros de Roma, mas os técnicos do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa devem ter-se assustado com a hipótese da processionária e das alergias às lagartas quando descem em procissão nos Fevereiros e resolveram pôr uns gingkos biloba, que eu também gosto muito dos gingkos biloba, são muito bons, os frutos, para fazer comprimidos com vitamina E mas nos Setembros os frutos caem, esborracham-se e deitam um cheiro muito pouco urbano, mas voltando à avenida da Liberdade, vejam como está o passeio da avenida da Liberdade em frente do Diário de Notícias com umas arvorezinhas raquiticas e pífias sem sombra no verão vá lá que ainda fizeram uns tratamentos de terras, umas modulações como eles dizem para ganhar espaço para as raízes de umas palmeiras que até ficaram com bom aspeto mas quanto às sombras foram-se e isso é uma pena porque desaparecer uma árvore, quer seja na avenida da Liberdade, quer seja noutro local da cidade ou noutra cidade ou numa aldeia, nós compreendemos, as pessoas também desaparecem, claro que temos pena mas é a lei da Natureza e a lei da Natureza é virem novas pessoas que eu também estou a acabar o meu percurso profissional, não sou como o Fernando Pessoa que achava que ficava mais novo com o tempo a passar por ficar mais longe da realização, e quando olho para os jovens que vão ficar, depois de eu me ir, até sinto um certo orgulho por eles ficarem e serem mais capazes do que eu, tenho a certeza de que não vai haver degradação nos domínios em que eu tentei desenvolver atividades conscientes, penosas e úteis, que é a definição de trabalho segundo George Gurvitch, a quem presto homenagem por ser, eu, de formação clássica, pouco impressionável pelas conquistas dos grandes gurus da sociologia da atualidade, mas ver uma árvore desaparecer sem ser substituída faz-me pena, muita pena, é como aquela tília que havia no largo da avenida D.Carlos que eu até acho muito bem que mantenha o nome porque D.Carlos era um excelente pintor, amante da Natureza e oceanógrafo, porém uma senhora que no largo vendia peixe numa banca ambulante a dias certos da semana queixou-se a um senhor da câmara, não sei se de boné, que os amantilhos que caíam da tília lhe sujavam o peixe e afastavam as freguesas e então ele, galante, mandou serrar a tília e lá ficou o vazio da tília, deve ter acontecido coisa parecida na praça de Alvalade, por onde eu passo todos os dias úteis a caminho da minha empresa, minha não por ser minha mas por nela ter tentado, com assinalável insucesso no âmbito de algumas políticas estratégicas dela, empresa, desenvolver as tais atividades conscientes, penosas e úteis, insucesso porque eu propunha uma coisa e a política estratégica ia por outro lado, e onde verifiquei um dia, triste, que estavam a arrancar as laranjeiras que ornamentavam as placas separadoras do transito rodoviário que aflui à estátua de António de Pádua e Lisboa, a arrancá-las com algum cuidado é certo, não sei se fingido, porque embrulhavam os torrões das raízes, e assim estariam a criar condições para as replantarem noutros locais, mas se foi isso que fizeram, que taxa de sucesso terão obtido, é verdade que as laranjas caíam e sujavam o chão, também estavam sujeitas à doença da mosca branca, e é provável que as cochonilhas já as tivessem atacado, e atacar essas doenças, para que alguém pudesse beneficiar das laranjas, envolveria encargos com pessoal e com os materiais necessários, alguns não renováveis, e é sabido que empresa bem gerida e câmara bem gerida são as que apresentam os rácios de pessoal, como eles dizem, os menores possíveis, embora nos cursos de reciclagem que promovem ou nas propostas de reestruturação que pagam aos seus consultores, que de consultores os rácios podem ser elevados sem serem acusados, os decisores, de má gestão, sejam os recursos humanos os bens mais importantes, o que não deviam dizer porque se fossem os mais importantes não andávamos a deixar crescer a taxa de desemprego para conter a inflação porque infelizmente é a correlação que existe, quanto maior o desemprego mais contidos os preços, claro, que se baixa o poder de compra tem a oferta de se adaptar à procura, e assim não podem as laranjas aproveitar a ninguém , o que é uma pena, mas é uma metáfora de que os recursos que a Natureza põe à nossa disposição para serem aproveitados, ainda por cima renováveis, não podem, ser aproveitados, porque é utopia aproveitá-los enquanto o critério dominante for o da maximização do lucro, assim como não podemos ter árvores nas ruas e nas praças de Lisboa enquanto o critério dominante for o superior entendimento dos técnicos do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa que decidiram pavimentar as placas separadoras da praça de Alvalade com pedra, bonita mas pedra, não arvores, que até são captores de CO2 para fotosíntese, pronto, ficámos sem as laranjeiras, ficámos mesmo, e iremos continuar a ficar sem as árvores do nosso contentamento, porque durante anos o meu amigo do metropolitano que já não é diretor de obra andou a negociar quando era diretor de obra o projeto dos arranjos exteriores da praça de Alvalade e nunca se chegou a nenhuma conclusão e agora de repente, sem que o projeto tivesse sido debatido pelas entidades envolvidas, a obra já está quase pronta e no estaleiro da obra lá está ufana, num letreiro empoleirado em dois postes, a câmara da minha cidade a dizer que fez uma requalificação muito bonita e muito bem feita, do que sinceramente discordo, quanto ao método, secretista, e quanto ao resultado, sem árvores, discordo, pronto, e discordo também que continuemos no futuro a seguir o mesmo caminho, pronto, que maçada não se poder mudar isto e não conseguir convencer os decisores nem os técnicos do departamento de arquitectura paisagista da câmara municipal da minha cidade de Lisboa a dar o braço a torcer, que coisa.
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2 comentários:

  1. OLnde é que eu já li neste estilo? Mas gostei! Força com as cnvicções. Já agora uma pergunta: porque é que as laranjas destas laranleiras não hão-de ser daquelas sumarentas, gostosas, doces? Sempre dariam para alguém matar a sede. Ou a fome. A menos que não se queira ninguém a "pão e laranjas". Nem o Sanot António...

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  2. É, a pontuação anda muito por baixo na literatura corrente. Quanto às convicções é sempre bom contrastá-las, para ver se surge a luz. Porém os filhos das trevas, "et pour cause" não gostam da livre manifestação das convicções. Já viu o que era tratar das laranjas e depois matar a fome ou a sede com elas a alguém? (por acaso, a Misericórdia de Vila Viçosa tem, pelo menos tinha, a incumbencia de tratar das laranjeiras e de as distribuir a quem precisasse). Mas como se sabe, a distribuição de bens coloca sérios e complexos problemas de matemática, como se viu no blogue de dia 2 de Janeiro de 2010. Foram umas discussões interessantes, sobre árvores.

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