domingo, 13 de março de 2011

O discurso do presidente e a manif

O presidente pigarreava baixinho e nervosamente enquanto se dirigia para o estudio da televisão.
Rememoriava todos os truques que a conhecida atriz de teatro, professora de dicção no Conservatório, lhe ensinara.
Mas isso não o tranquilizava, nem a confiança que tinha nos seus conselheiros e no seu redator e a certeza de que aquele discurso tinha sido por eles solidamente fundamentado.
Desdobrou o papel com o discurso, sem conseguir erguer o olhar para a câmara.
Os telespetadores, de que cerca de um quarto o tinha eleito havia poucos meses, aguardavam a comunicação freneticamente anunciada pelos serviços da presidencia.
Quando finalmente olhou a câmara, o discurso saiu frouxo e aos solavancos de uma gaguez contrastante com o brilho intelectual com que habitualmente defendia as suas ideias, com a tranquilidade com que analisava os problemas, com o espírito de tolerancia e de abertura às correntes mais progressistas da sociedade, com a cultura profunda que exibia, desde a literatura inglesa do século XVI à literatura alemã  do século XX.
O presidente acabou como pôde o seu discurso, amarrotou o papel e enfiou-o no bolso.
Os assistentes aplaudiram, mas o presidente sabia que era por simpatia.
Tinha acabado de demitir o governo.
Aos solavancos.
A situação não podia continuar assim.
A maneira de discursar, que a falta de governo não era a primeira preocupação.
Tinha de encontrar um terapeuta da fala para que o discurso de demissão do próximo governo pudesse vir a ser mais assertivo; o discurso, que o governo talvez não viesse a ser assertivo.
Os telespetadores reagiram como habitualmente.
Um quarto aplaudiu, o outro quarto decidiu ou confirmou a sua intenção de participar no dia seguinte na manifestação de protesto, contra tudo e contra todos, que tinha sido marcada em várias cidades do país pelo mesmo motivo por que o presidente tinha demitido o governo, e a outra metade absteve-se, isto é, mudou para os canais de entretenimento.
Mas é capaz de ter muito interesse reparar bem no que foi dito no dia seguinte.
Nos jornais, nos debates televisivos, na tal manifestação multi-cidades.
Vou tentar reproduzir algumas das opiniões que foram expressas.
No editorial de um jornal, o seu diretor chamou ao presidente desonesto (intelectualmente, claro, para evitar um processo por difamação ou insinuação de mais valias apropriadas por informação assimétrica). Que um professor daquela sorte (estou parafraseando o Barbeiro de Sevilha) não podia omitir a importancia que os especuladores financeiros do Lehman Bros e do Merryl Linch, e depois os especuladores das seguradoras e a venda das suas obrigações colaterais,  tiveram na crise internacional e na repercussão no nosso país. Nem podia propagandear soluções de privatização liberalizantes porque metade dos eleitores não costumava votar em programas políticos privatizantes.

Na manifestação do Porto, a senhora disse para a entrevistadora: estou a assistir ao desmoronar da educação depois de ter sido professora durante 33 anos, só posso apoiar o protesto dos jovens. E logo a seguir uma jovem disse que somos capazes, se fomos capazes de fazer o 25 de Abril, ela não, que ainda não tinha nascido, tambem seremos capazes de trabalhar todos num programa coletivo, com maior equilibrio na distribuição dos esforços e dos rendimentos, para aumentar a produção e sair da crise  (talvez de destacar este fenómeno: o movimento das forças armadas começou por protestar ao nivel de condições de trabalho e, de repente, Melo Antunes redige um programa de democratização e reorganização social e politica, de coexistencia de um setor publico e um setor privado, que poderá ter sido uma das principais razões do triunfo do movimento) .


Nota: manifestação de professores no Campo Pequeno; o cartaz significa que as aulas de EVT (fusão da Educação visual e trabalhos manuais) só são produtivas se tiverem dois professores

Um manifestante de Coimbra, licenciado em história da ciência portuguesa e mestrando em história do ensino da Física na Universidade de Coimbra no ultimo quartel do século XIX, declarou que o presidente, com aquele discurso a querer colar-se à juventude com um programa de privatizações, era como a universidade de Coimbra antes de ter aberto a sua faculdade de Engenharia, que não era uma tradição, era uma infeção. Mas, para que não ficasse a ideia de que a manifestação elegia bodes expiatórios, logo o manifestante do lado glosou as palavras do primeiro ministro demitido, que tambem o compreendia, às suas mentiras e aos seus movimentos telecomandados da praça de Potsdam.
Na manifestação de Lisboa, um jovem de bigode e pera, escondido num hábito franciscano, opinava que basta de professores de economia a pregarem a insustentabilidade do estado social, que na escandinavia está provado que é sustentável, e terminava com um refrão que repetia incessantemente em alta grita, para desespero da reporter, que o que é preciso é liberdade, pá, liberdade, pá.

Um comentador televisivo, provavelmente por ter sido vitima de acidente neuronal, mudou bruscamente de opinião a meio da entrevista, perante o espanto da entrevistadora que nunca tal tinha visto, e afirmou que, se a União Europeia não fornecesse imediatamente um gabinete de economistas para gerir a nossa crise e se o BCE não fornecesse empréstimos a juros baixos, o país devia sair imediatamente da união monetária e desvalorizar o novo escudo. Questionado sobre a impossibilidade do país sobreviver isolado, o comentador deu a solução: equipas técnicas escandinavas, alemãs ou holandesas de apoio nas fábricas e empresas, a exemplo do gabinete de economistas para orientar o governo, venda da fábrica da Auto Europa aos indianos da Tata,  nacionalização das minas de lítio na Beira Baixa para venda do lítio aos fabricantes de baterias para automóveis elétricos, telemóveis e ipads, a entrada pela mão do Brasil no Mercosul, a negociação de uma parceria com Moçambique para cultivo da jojofa para produção de combustível alternativo ao petróleo, e, se Angola tivesse finalmente um governo saído de eleições fiscalizadas internacionalmente, a negociação de uma parceria para construção de blocos habitacionais e de uma rede de metropolitano em Luanda. Toda a mão de obra atualmente ocupada a vender e manter os Mercedes, os Volkswagen, os Audi, os Opel e os BMW deveria ser reconvertida em mecânicos de manutenção de automóveis antigos, de modo que os automóveis dessas marcas, que para não aumentar o endividamento nunca mais podiam ser vendidos em Portugal,  pudessem circular ainda durante mais 50 anos, como se vê por exemplo em Cuba com os Chevrolet dos anos 50 do século XX.
O destacado jurista, que costumava explicar ao presidente por onde passava a ténue fronteira, entre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade dum decreto, atormentou-se com a dialetica do presidente, por não gostar da ideia dialetica, capaz, o presidente, de simultaneamente pregar a estabilidade governativa e a instabilidade governativa; talvez aflito por a realidade dos juros não se render à sua própria condição de presidente estável conforme tinha insinuado na sua campanha eleitoral.
A cidadã anónima, apanhada pela entrevistadora numa rua da capital, respondeu que a saída para a crise era a solução à islandesa, em que o primeiro ministro é uma mulher (o que está de acordo com os resultados do PISA por esse mundo fora, em que as raparigas ficaram sempre à frente dos rapazes na capacidade de interpretação dos factos e na gestão dos recursos) e em que se acabou com  a moda das privatizações, depois de todos os cidadãos e cidadãs terem sido informados do papel relevante que a privatização dos três principais bancos islandeses em 2000 teve na falencia de 2008, e do papel que a privatização das empresas de energia e mineiras teve na desertificação das zonas interiores (sem acabar com o setor privado, evidentemente, que para cada caso há uma solução; não há teoremas universais).
O sociólogo chamado a pronunciar-se sobre o fenómeno no fim do noticiário da hora do jantar, citou:
- o prémio Nobel James Buchanan e as suas teorias da escolha pública, a propósito da opção de uns pela votação em partidos políticos, e de outros pela abstenção, e de outros por movimentos cívicos, a que o presidente chamou "sobressaltos cívicos", como se fosse uma perturbação não reprodutível;
- Mark Kelman e o seu "Skeptical look at the Theoretical and empirical practice of the public choice movement";
- a experiencia da "Convenção das questões nacionais" de Fishkin, descrita em "The voice of the people; Public opinion and democracy", ed.Universidade de Yale, em que uns dias antes das eleições, nos USA, são realizadas reuniões por todo o país entre uma amostragem de eleitores, divididos em grupos que apresentam as suas conclusões aos coordenadores, que as sistematizam; as sessões finais são transmitidas pela televisão.
Pode ser que seja o caminho a seguir, acabando com o secretismo dos governantes, dos empresários, dos partidos politicos, dos presidentes de câmaras, dos gestores das empresas públicas, das direções gerais... pelo menos de alguns ou algumas.
Aguardam-se as sugestões pedidas e a apresentar pela organização da manifestação da geração à rasca.
Nunca se sabe.



Referencias:
- O discurso do rei, filme de Tom Hooper
- Reportagens da SIC Noticias e da TVI 24
- Editoriais, comentários e entrevistas do DN
- Citações bibliográficas do último capítulo da Sabedoria das Multidões, de James Surowiecky

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