quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O manifesto em defesa do jornalismo no Publico de 24set2021

 Caro Diretor

Não proponho a publicação desta mensagem na secção "cartas ao diretor" dada a sua extensão mas teria muito prazer em ter uma resposta, mesmo indireta, apesar da pouco provável disponibilidade para a leitura desta mensagem.

Não desejo imiscuir-me demasiado na polémica das vacinas para crianças, nem da liberdade de expressão ou da falta dela, nem dos currículos universitários, mas penso que são pertinentes algumas observações ao seu editorial de 24 de setembro.

Causou-me estranheza a afirmação que Paulo Morais não divulgou nenhum caso concreto de corrupção (etimologicamente, o latim diz-nos que corrupção significa deterioração... neste caso das instituições) quando no seu livro "Pequeno livro negro da corrupção" são descritos abundantes casos, desde o A da Quinta do Ambrósio, ao Z do Zé das medalhas, passando pelo M do Monte Branco e o V do Vale do Galante. Penso que o autor citado merece a correção da afirmação.

Quanto às certezas e incertezas científicas, recordo a atenção que a minha professora de filosofia do 6º (agora 10º ano, será que ainda há filosofia para todos no 10º ano?) deu a um texto de um médico praticante do método científico, chamando a atenção para os cuidados na observação dos dados estatísticos, da dificuldade de estabelecer relações de causa e efeito, dos cuidados com as coincidências, da natureza das correlações, mas na necessidade inescapável de experimentar, de testar as hipóteses, como diz o método científico, e sabemos que isso é feito pelas instituições oficiais. 

Na minha profissão, tive de atender ao carater pluridisciplinar da maior parte das questões, até porque mesmo na minha especialidade não posso arvorar-me em detentor da certeza "comprovadamente científica". E já vimos como tantos "especialistas" têm dificuldade em aceitar isto.

Quanto aos currículos, citando o meu antigo professor de Eletrotecnia Teórica do IST, devemos preferir o essencial ao acessório, neste caso a qualidade do conteúdo sobre a correção da forma, se quisermos estar dentro das questões. Embora não possamos esquecer, e até graças a artigos de opinião no Publico, a endogamia e a inveja que infetam alguns meios universitários (e não só esses meios).

Sobre a publicação  e despublicação (maravilhas dos sítios da Internet) ocorre-me um episódio antigo, em que um diretor, talvez por não poder "despublicar", informou o autor do artigo incorreto,  "Publicamos este, mas escusas de mandar artigos desses", embora também para isso sirvam as notas da redação, para mostrar o contraditório do artigo incorreto. Cito este episódio porque efetivamente concordo com o caro Diretor, há critérios deontológicos, neste caso do jornalismo, que devem prevalecer.  Aliás no dia seguinte o provedor dos leitores veio dar suporte ao "manifesto em defesa do jornalismo".

Mas precisamente porque há um código deontológico do jornalismo temos de aceitar como natural que outras profissões tenham também um código deontológico. E, infelizmente, podem surgir conflitos. Por exemplo, quando um profissional tem uma análise baseada na sua experiencia e na sua formação técnica (ou humana) que foi desrespeitada pelas instancias hierárquicas superiores sobre um tema de impacto público. O conselho editorial pode achar que não merece haver notícia, até porque uma decisão sobre um investimento público só muitos anos depois pode ser apreciado pela opinião pública. Pode também achar que alguém pretendeu ingerir-se na liberdade editorial do jornal.

Talvez já tenha adivinhado que me refiro a casos como o da expansão do metro de Lisboa. O editorial do Público declarava que era um erro criticar a linha circular porque havia linhas circulares por esses metros fora. Mas, tinha o editorialista, que achara que o tema era notícia,  conhecimentos técnicos para poder pronunciar-se daquele modo? E era notícia, o tema, nada mais nada menos do que uma lei do Parlamento (art.282 da 2/2020) que mandava suspender a construção da linha circular, e a decisão contrária de um governo e de uma empresa pública de continuar o processo de construção. 

Cada um falará por si, mas a deontologia da minha profissão manda que tem de se fazer uma declaração de escusa ou de declaração explícita de discordância, que se está a colaborar numa obra ilegal porque a estrutura hierárquica determinou a desobediência à lei. Infelizmente neste caso da linha circular a deontologia do jornalismo contornou a dificuldade, e simplesmente ignorou a deontologia dos técnicos de transportes que mostraram as inconformidades de um Estudo de Impacto Ambiental e o desrespeito por um Plano Regional de Organização do Território da Área Metropolitana de Lisboa.

Detenho-me neste tema, porque mantenho ainda viva a memória dos meus tempos de jovem, quando os meus colegas e eu esperávamos ansiosos a chegada, umas vezes mensal outras nem isso, da revista de eletrónica e telecomunicações, "Wireless World", que na altura ainda era incipiente a microinformática, e nós entusiasmávamo-nos mais com as aplicações da microeletrónica. A SAAB, na Suécia, estava a fabricar um novo caça para a NATO, e os seus técnicos tinham enchido o focinho do avião com sensores e detetores que, à semelhança dos tubarões que detetam a presa à distancia, tornavam obsoletos os caças adversários. O editorialista da WW, também ele técnico, interrogava-se, uma máquina de guerra destas, infalivelmente mortífera, só era possível porque havia técnicos que tinham desenvolvido tais sistemas, seria ético pôr os seus conhecimentos ao serviço dum instrumento de morte como os caças SAAB? e concluia sem certezas, mas que tinha de ter a liberdade de expressão de poder dizer o que pensava dos instrumentos de morte. 

Isto, numa altura em que o "Imagine" de John Lennon corria o mundo, era aceitável? Qual a garantia que um louco não ganhe eleições e não vai pôr os caças a bombardear inocentes?

Assim como assim, Hitler ganhou as eleições e anos depois fez um referendo e ainda teve maior votação (eu sei, o contexto de violencia  condicionou a opção dos eleitores, que sabiam o que tinha acontecido à citada, pelo caro Diretor, Rosa Luxemburgo) seguindo-se os bombardeamentos de Londres com as V2 e os primeiros caças a jato.

Einstein e Oppenheimer tinham agido bem com o desenvolvimento nuclear? E antes deles Haber na 1ª guerra mundial deveria ter sido julgado por ter desenvolvido a arma química? (Haber, o químico do processo Haber-Bosch que vai ser útil na guerra pela descarbonização na produção de amónia e hidrogénio).

Na altura não tinha meios de saber que anos depois 4 políticos do mundo ocidental se reuniriam nos Açores e mandado avançar a aviação sofisticada para apoiar a invasão do Iraque das armas de destruição maciça que afinal não havia, com os resultados conhecidos. Nem que a partir de uma sala de comando no Wisconsin se podia telecomandar drones mortíferos largados de um porta aviões que matavam civis no Afeganistão. Eça, o Eça das Cartas de Inglaterra e do bombardeamento de Alexandria por desfastio do almirante não perdoaria a hipocrisia da prepotência ocidental por aquelas paragens (em vão procurei na livraria um exemplar das Cartas de Inglaterra na panóplia das obras completas de Eça, mas não quero ingerir-me na liberdade editorial da editora).

Eis-me assim, guardadas as devidas distancias, no meio de um conflito de deontologias. De um lado uma estrutura respaldada pelo seu código de ética, um jornal, ou um conselho de administração de uma empresa pública, do outro cidadãos que anteviram ameaças para o país ou técnicos que veem grandes somas desperdiçadas em investimentos habilmente conduzidos para soluções deficientes que não admitem debate, sofrendo um imperativo moral para exteriorizarem o seu pensamento.

Dou outro exemplo para além da linha circular, a política ferroviária de recusa de cumprimento dos regulamentos vinculativos da Comissão Europeia de interligação interoperável com a rede europeia em bitola UIC e ERTMS. Fizeram-se belos discursos durante o ano internacional do caminho de ferro, sob a presidência portuguesa do Conselho, mas não se avançou na negociação com Espanha para a concretização do verdadeiro corredor atlântico. Ou a ausência de notícias sobre a resposta à Comissão Europeia do governo português ao anúncio de um processo de infrações sobre a sinistralidade ferroviária (prudentes que são, para mim em excesso, os termos dos relatórios de inquéritos a acidentes pelo orgão competente).

 Interrogo-me, não são temas para notícia? para além da apresentação da política oficial, a do seu contraditório?

E por falar em deontologia, como podem os colegas mais jovens, no ativo nestas empresas, receber as ordens das hierarquias e informá-las dos erros nelas contidos, sem correr o risco de verem as suas carreiras ameaçadas?

Como deixar de evocar a citação que o meu professor de Sociologia no IST, fazia do "Se" : "se consegues ouvir o que disseste distorcido por oportunistas para enganar pessoas, ou ver estragadas as coisas a que na tua vida deste o teu esforço..." ? Ou de uma forma mais ligeira, evocar o desabafo de Ronaldo no intervalo do jogo do campeonato na Africa do Sul, "Carlos, assim não ganhamos o jogo". A ideia que prevalece na comunicação social é o respeito pelas hierarquias, pelo "top-down", independentemente da tendência ideológica dos seus leitores, mas o que Ronaldo queria dizer, sem se ingerir na liberdade decisória do treinador ou da federação de futebol, é que devem ser ouvidos os que estão na frente de obra, ou no "terreno".

Outro exemplo: a cobertura dada às iniciativas de promoção do ciclismo. Quem quer apontar as inconformidades e os riscos da política excessivamente promocional do ciclismo em Lisboa raramente o consegue. Tecnicamente a redução do tráfego automóvel, que a maioria deseja com bons fundamentos, consegue-se com o correto desenvolvimento do transporte coletivo, ficando as bicicletas como meio complementar (como aliás os veículos autónomos a pedido que tive o prazer de ver referidos em artigo no Público de  30set2021 sobre o Urban Collectif). Sistematicamente são ocultadas as denúncias de que a omissão de realização  de inquéritos rigorosos aos acidentes rodoviários e divulgação das suas conclusões e recomendações contribuem para que se mantenha uma taxa intolerável de sinistralidade. 

Não será a defesa do combate à sinistralidade rodoviária notícia?

Caro Diretor, fico por aqui, afinal quase como comecei, em defesa dos códigos deontológicos, em cada profissão, e também da liberdade de expressão.


Com os melhores cumprimentos


Fernando Santos e Silva








 


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