- A recente resposta da comissária europeia de Transportes a uma pergunta de deputados portugueses
- a próxima aprovação da revisão e revogação do regulamento 1315 sobre as redes TEN-T
- a colocação em consulta pública do 1º troço da nova linha Porto-Lisboa
- a exibição de uma série de reportagens televisivas sobre a problemática das ligações ferroviárias à Europa culminando com a divulgação do comentário do senhor primeiro ministro no troço Évora-Badajoz de que seria fácil e rápido mudar a posição dos carris, isto é, a bitola, quando do lado espanhol isso for feito
Não será essa a estratégia oficial que já anunciou a intenção de lançar 3 lotes de concursos de PPP para Porto-Oiã, Oiã-Soure e Soure-Carregado, incluindo em cada concurso o projeto, construção, manutenção e financiamento de cada lote. Aparentemente pretenderá ultrapassar as dúvidas geradas na conformidade dos financiamentos comunitários com as exceções para construção de raíz da linha Porto-Lisboa em bitola ibérica.
As respostas da comissária Adina Valean às perguntas dos eurodeputados portugueses sobre as condições de financiamento
Na segunda resposta, em 12jun2023, a uma pergunta de 6mar2023, a comissária começa por dizer que a nova linha Porto-Lisboa é isolada (segundo a definição do regulamento revisto, linha isolada é a que tem bitola diferente da standard), o que suscita um problema de lógica, uma vez que a pergunta era como se poderia justificar o financiamento comunitário se a bitola proposta pelo governo português fosse diferente da standard. Igualmente será um problema de lógica a construção de uma linha nova que aparece nos mapas do regulamento revisto como integrando a rede TEN-T única e plenamente interoperável ainda estar sujeita a dúvidas
De seguida diz que as novas linhas da rede “core” (objetivo 2030) cuja construção não tenha ainda começado à data de entrada em vigor do regulamento revisto (2024?) deverão ser em bitola 1435mm (standard) conforme o art.16.a.1 .
Das duas premissas anteriores, eventualmente denunciando um problema de lógica, retira a comissária a conclusão que a construção de raíz da linha Porto-Lisboa pode ser em bitola ibérica de 1668mm “e posteriormente migrar a linha para bitola europeia o mais tardar em dezembro de 2030” graças à tecnologia das travessas polivalentes, que permitirão uma progressiva migração com efeitos limitados e sem interrupção do tráfego ferroviário.
Estranha-se que os assessores da comissária não a tenham informada da impossibilidade prática (não teórica) do que escreveu. Isso mesmo foi objeto de correspondência com a comissária em 2020, informando que a mudança de bitola (a “desaparafusar daqui e aparafusar ali” do senhor primeiro ministro) ocupa uma equipa de 17 homens durante um turno com um rendimento de 1km. Num percurso em via única, como Évora-Caia, é impossível evitar a interrupção do tráfego, sem material circulante de eixos variáveis e deslocação progressiva de intercambiador, durante vários meses. Num percurso em via dupla, como Porto-Carregado, a redução da disponibilidade a uma via única enquanto se trabalha na outra traduzir-se-á por perturbações de operação gravíssimas e com alguns riscos de segurança. Acresce que, de acordo com a estratégia oficial, não se prevê a ligação Carregado-Lisboa com caraterísticas de alta velocidade antes de 2030.
Não obstante as premissas anteriores, a conclusão da comissária é a de que “o financiamento pela EU desta linha, através do CEF, é juridicamente possível”.
Finalmente, com provavelmente mais um conflito lógico, a comissária informa que o governo português poderá pedir uma exceção/isenção temporária da obrigatoriedade da bitola 1435mm baseado numa análise de custos benefícios negativa.
Para além do comentário genérico de que perante uma diretiva de que um governo discorde, como é o caso da bitola 1435mm, este procure um subterfúgio (do dicionário: estratagema; etimologicamente: fugir às escondidas) de modo a fugir ao seu cumprimento, observa-se:
1 – no relatório do Parlamento relativo à revisão do regulamento, a condição linha nova cuja construção não tenha sido iniciada à data de entrada e vigor do regulamento revisto (2024?) como imposição da bitola 1435mm, foi substituída por linha nova cuja autorização não tenha ainda sido dada pelo Estado membro. No caso da linha Porto-Carregado, ela já foi autorizada, pelo que estaremos perante mais um subterfúgio para validar o início da sua construção em bitola ibérica, restando a obrigação de realizar uma avaliação dois anos após a entrada em vigor do regulamento revisto (2026?) sobre a viabilidade de migração para 1435mm e, um ano depois (2027?) um plano de migração que poderá conter uma recusa mediante uma análise de custos benefícios negativa e uma avaliação do impacto sobre a interoperabilidade e a interrupção do serviço que darão origem a uma exceção/isenção de natureza temporária, como afirmado pela comissária
2 – considerando que é inquestionável o impacto sobre a interoperabilidade (o próprio PFN o reconhece) e que migrar a bitola tem consequências para a continuidade do serviço (por isso a linha deve ser construída de raiz em 1435mm pelo que se considera um subterfúgio introduzir esta condição), resta ter confiança no bom senso da Comissão no ato de dimensionar o período da isenção temporária e considerar o que se pode esperar duma análise de custos benefícios, cujo resultado depende dos pressupostos sobre os quais não há domínio claro. No 10ºcongresso do CRP em jul2022 foi apresentada uma ACB que comparou a evolução do tráfego de mercadorias e de passageiros segundo os critérios oficiais, com a sua evolução em conformidade com os planos das redes “core”/objetivo 2030, concluindo-se que era positiva contabilizando os custos das emissões evitadas correspondentes à transferência do tráfego rodoviário de mercadorias e aéreo de passageiros para a ferrovia. O que não impede que, alterando os pressupostos, o resultado possa ser negativo. A exemplo do que acontece na EU, em que o Tribunal de Contas (ECA-European Court of Auditors) tem sistematicamente criticado a Comissão Europeia por inoperância na concretização da rede única ferroviária europeia, também aqui se apela para os órgãos fiscalizadores da atuação do poder executivo, em estrita observância das disposições da Constituição da República.
- considerando 38.d - O novo contexto geopolítico demonstrou igualmente a importância das ligações de transporte sem interrupções dentro do território da União e com os países terceiros vizinhos. Uma bitola ferroviária diferente da bitola nominal da norma europeia de 1 435 mm dificulta gravemente a interoperabilidade das redes ferroviárias em toda a União e afeta mesmo a competitividade dessas redes ferroviárias isoladas. Por conseguinte, as novas linhas ferroviárias devem ser exclusivamente construídas com a bitola nominal da norma europeia de 1 435 mm. Além disso, os Estados‑Membros com uma rede que utiliza uma bitola diferente devem avaliar a migração das linhas existentes dos corredores europeus de transporte.
- art.12 - prioridades das redes "core", "extended core" e "comprehensive":
- art.12.1.d - a interoperabilidade e as ligações transfronteiriças conforme o regulamento 1153 (que substituiu o 1316)
- art.12.1.i.a - a garantia de suficiente capacidade nos corredores ferroviários para passageiros e mercadorias com quotas razoáveis, no seguimento da integração dos corredores de mercadorias (RFC) nos corredores de transporte europeus (TEN-T)
- art.13 - prioridades dos corredores internacionais:
- art.13.a - o desenvolvimento de uma rede ferroviária de mercadorias através da União de alto rendimento e sem interrupções;
- art.13.b - o desenvolvimento de uma rede ferroviária de passageiros interoperável e de alto rendimento, incluindo em alta velocidade a ligação entre nós urbanos através da União
- art.18.1 - a demora adicional na passagem transfronteiriça de um comboio de mercadorias não deverá ultrapassar 15 minutos (não confere com a proposta de revisão do art.12.a.1.a do regulamento 913)
- art.18.2.a - colocação em serviço até dez2027 de um sistema digital de gestão da capacidade permitindo a reserva por operadores de passageiros e de mercadorias de canais para várias passagens transfronteiriças
- art.19 - prioridades adicionais para o desenvolvimento da infraestrutura ferroviária:
- art.19.a - migração para a bitola nominal standard europeia 1435mm onde relevante
- art.19.b - onde relevante, substituir as passagens de nível por passagens superiores ou túneis
- art.19.d - dependendo de análises de custos benefícios, desenvolver a infraestrutura para comprimento de comboios até 1500m e 25 toneladas por eixo quando da modernização de linhas para tráfego de mercadorias
- art.19.e - desenvolvimento e aplicação de tecnologias inovadoras para a ferrovia, nomeadamente operação automática, gestão de tráfego avançada e conectividade digital para passageiros e mercadorias, com base no ERTMS (o considerando 44 determina que os sistemas de classe B do lado da via deverão ser removidos até 2040), DAC (digital automatic coupling) e conectividade 5G
- art.19.g.a - desenvolvimento da tecnologia FRMCS (future railway mobile communications system) para permitir um ERTMS baseado na localização por satélite
- art.19.g.c - duplicação das vias simples nos troços congestionados
- art.19.i - normalização de vagões para a circulação de comboios de transporte de semirreboques até 4m de altura (P400)
- art.40.1.b.i - garantia pelos Estados membros de, até 31dez2027, no desenvolvimento da rede TEN-T nos centros urbanos, adoção de um SUMP (sustainable urban mobility plan) publicamente acessível, incluindo medidas de integração de todos os modos de transporte, para avaliação da viabilidade e acessibilidade por utilizadores com limitações de mobilidade e económicas, para promoção de mobilidade e logística urbanas de baixas emissões, para redução da poluição e ruído e considerando os fluxos de longa distancia transeuropeus
O PFN rejeita também a disposição regulamentar de partilha da nova linha Porto-Lisboa com as mercadorias e justifica (?) a bitola ibérica com a partilha da linha principal com o tráfego regional de passageiros (sendo que o exemplo espanhol de comboios de passageiros de eixos variáveis é ignorado, assim como as medidas mitigadoras do incómodo dos transbordos, a saber percursos curtos e cómodos nos transbordos e despacho das bagagens independente do acompanhamento dos passageiros).
É verdade que a tecnologia de eixos variáveis já homologada também para vagões (ainda não para as locomotivas de elevada potência, não confundir com eixos intermutáveis) permite uma transição rápida transfronteiriça (a menos da mudança de locomotiva), mas é uma limitação contra a concorrência por exigir material circulante específico, mais caro e com dificuldades na manutenção em longas distâncias.
No caso da ligação para passageiros Lisboa-Madrid, ter em atenção que segundo informação da ADIF alguns troços do percurso Madrid-Badajoz serão construídos de raíz em bitola 1435mm e a operação será executada por material circulante de eixos variáveis (Avant S 121) o que viabilizaria o serviço de Madrid-Évora a prazo de poucos anos com a instalação de intercambiador.
O momento atual da ferrovia nacional, apesar das sucessivas declarações de sucessos, apresenta graves atrasos na execução do plano Ferrovia 2020, existe a expetativa de mais atrasos no plano para 2030, são grandes os prejuízos nos atrasos da linha da Beira Alta e são patentes as limitações da operação da rede existente, desde os atrasos da operação, especialmente nas vias únicas, às inconformidades e incomodidades que afastam os clientes (excesso de passagens de nível, acesso fácil à via férrea, desprotegida, deficiência de I.S. nas estações e no material circulante, carência de material circulante e de profissionais, incumprimento da lei de acessibilidade de pessoas com mobilidade reduzida.
Todos estes fatores absorvem totalmente a atenção dos técnicos, sem possibilidade de se concentrarem na problemática do planeamento das linhas da rede TEN-T em território nacional. Tal como em Espanha, em que o gestor de infraestruturas se dividiu em ADIF convencional e ADIF Alta Velocidade, a IP deveria desdobrar-se em rede convencional e rede TEN-T de gestão separada, sem prejuízo de um contacto são entre as duas estruturas.
Compreendem-se as dificuldades de gestão das redes duais, mas o exemplo espanhol, com cerca de 11.000km de linhas convencionais de bitola 1668mm e 3.000km de linhas de bitola 1435mm e a necessidade de planeamento da operacionalização das ligações de mercadorias além Pirineus e da ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid recomendam a gestão separada rede existente versus rede de alta velocidade/mercadorias.
Por exemplo, na beneficiação da linha da Beira Alta em curso teremos uma linha de 200km entre Aveiro e a fronteira e uma estimativa, com base nas pendentes pré-existentes do percurso, de 38 Wh/ton-km do consumo específico do transporte de mercadorias. Comparando com o previsto no regulamento 1315 para o corredor internacional atlântico norte, teríamos 180km entre Aveiro e a fronteira e um consumo específico de 26 Wh/ton-km, com pendentes limitadas a 1,2%. Ressaltam assim as vantagens para a gestão económica dos operadores de mercadorias da nova infraestrutura.
Igualmente quando se completar a ligação do corredor atlântico norte em bitola 1435mm será vantajoso para a gestão económica dos operadores a dispensa das plataformas logísticas em Irun ou Vitoria para transbordo dos contentores ou mudança de eixos ou bogies, sendo apenas necessária uma plataforma em Portugal.
ii) no número 2, o art.16.a determina para os Estados membros, com linhas ou partes delas coincidentes com os corredores internacionais e com bitola diferente da standard 1435mm, a elaboração de uma avaliação da viabilidade da migração da bitola para 1435mm, em coordenação com Estados membros vizinhos afetados por essa migração. Essa avaliação deverá ser realizada pelo menos até dois anos após a entrada em vigor do regulamento revisto (admitindo a entrada em vigor em 2024, a avaliação deverá estar concluida até 2026)
iii) no número 3, o art.16.a determina que, conforme o número 2, o Estado membro elabore um plano de migração pelo menos até um ano após a conclusão da avaliação. Nesse plano poderá apresentar a justificação de não migração de linhas para a bitola 1435mm mediante a inclusão de uma análise socio económica de custos benefícios negativa e de uma avaliação desfavorável do impacto na interoperabilidade e continuidade da rede ferroviária. No caso de troços transfronteiriços, o pedido de exceção deverá ser coordenado com o Estado membro vizinho, no nosso caso, a Espanha.
Conclusão
Considerando o teor dos artigos revistos e das respostas da comissária, forçoso é reconhecer que existe alguma complexidade e conflitualidade entre tantas e pormenorizadas disposições, podendo comprometer-se o objetivo bem definido da rede única europeia ferroviária com total interoperabilidade e satisfação do art.170 do TFUE, nomeadamente na assumida consideração da necessidade de ligação das regiões periféricas às regiões centrais da União.
E é esse objetivo que deve prevalecer sobre a
obstaculização por parte de Estados membros nesse percurso (Espanha por
concentrar o esforço no corredor mediterrânico, França por adiar a duplicação
das linhas de ligação a Espanha, eventualmente Alemanha por motivo análogo), ou
sobre a ausência de planeamento compatível com os prazos da regulamentação
europeia para as redes "core", "extended core" e
"comprehensive", implicando uma coordenação rigorosa entre os governos português, espanhol e francês e a Comissão Europeia com a intensificação da colaboração com o coordenador europeu para a efetivação do corredor atlântico norte e sul.
texto da proposta de 6dez2022 do Conselho em:
https://data.consilium.europa.eu/doc/document/ST-15664-2022-INIT/en/pdf
Relatório do Parlamento Europeu de 14abr2023 sobre a proposta de revisão
https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/A-9-2023-0147_PT.html#_section6
Caro colega Eng. Fernando Santos
ResponderEliminarParabéns ! Você é um trabalhador incansável e de enorme mérito. A minha apreciação entretanto, vai focar-se apenas e em exclusivo, no seu capítulo "O problema do financiamento", onde no seu 2º parágrafo está escrito, para a ligação Porto - Lisboa em A.V. : - ".... a estratégia oficial que já anunciou a intenção de lançar 3 lotes de concursos de "PPP" para Porto-Oiã, Oiã-Soure e Soure-Carregado, incluindo em cada concurso o projeto, construção, manutenção e financiamento de cada lote".
Conforme palavras do vice-presidente da IP, Eng. Carlos Fernandes, registadas no vídeo da reportagem do Jornal da Noite da TVI , do dia 12 JULHO 2023, ao minuto 21.06, a primeira "PPP" será lançada no início de 2024, prevendo-se concluir a obra de ligação até 2030, pelo valor de 5.000 Milhões €.
Parece concluir-se daqui que este governo terá preferido, para construir esta ligação Porto - Lisboa de A.V. em "bitola ibérica", o risco de lançar sobre os contribuintes portugueses o pagamento de 5.000 Milhões € pela sua construção, se não concorrer à construção dessa mesma ligação, também em A.V. mas em "bitola europeia", com um possível cofinanciamento a 70 % pelo programa CEF- 2 ( 2021-2027), na chamada de SET 2023.
CONCLUSÃO- Se tal for verdade e se tal vier a acontecer, então estamos todos a assistir a uma decisão de "Lesa-Pátria".