quinta-feira, 25 de abril de 2024

O meu 25 de abril

 

Lisboa, Rossio, 25 de abril de 2024


Seriam umas 5 horas da manhã quando me levantei para atender o telefone. Era o meu colega do quartel de Transmissões em Sapadores, que estava de serviço como oficial de piquete no dia 24. Telefonava porque não sabia o que passava e pedia que eu não demorasse, que era eu que estava de serviço no dia 25. O meu colega era irmão mais novo de Rão Kiao, mas era de pensamento muito mais conservador do que o irmão e, por simples aplicação da transitividade, do que eu próprio. Mas falavamo-nos bem. Disse-lhe que estivesse descansado, que à hora do toque do piquete eu estaria lá, mas que ia descansar mais um bocadinho e depois ainda tinha de levar a minha filha e o meu filho a casa dos sogros. 

Eu não sabia que a revolução já estava no seu caminho. Havia dias que de vez em quando via os colegas do quadro permanente a fecharem-se na sala da messe, reunidos com ar de caso. Atribuía à questão do conflito entre os do quadro permanente e os milicianos dos cursos de capitão, ou pior ainda, que pudesse haver aí a mãozinha do general Kaulza, e não pensava mais nisso. Eles sabiam o que eu pensava da guerra colonial, e eu pensava que eles continuavam agarrados à ideia da pátria. 6 semanas antes tinha aproveitado  o fim de semana para acompanhar a minha mulher a um espetáculo de canto de intervenção em Valado de Frades, com o quarteto vocal em que ela cantava, num espetáculo com Carlos Paredes e o poeta José Carlos de Vasconcelos. Tínhamos sido parados por um soldado da GNR que depois de lhe mostrar o meu cartão de alferes miliciano respeitosamente aceitou as minhas explicações que era um passeio de fim de semana com a família. Nada tinha que ver com a coluna militar do golpe das Caldas. 

Como se tudo estivesse normal, pus os meninos nas cadeirinhas do carro, fui pela estrada de Benfica, Sete Rios, em S.Sebastião virei à esquerda , passei pelo quartel general sem imaginar o que se tinha passado durante a madrugada ao portão. Deixei os meninos com a sogra e entrei triunfante com o carro vermelho e velhinho, com um grande autocolante com o símbolo da paz na porta direita (cantava-se por esse mundo fora o "Hair"), digo triunfante porque ao contrário dos outros dias o portão estava fechado e a sentinela teve de o abrir.

A cerimónia na parada correu normalmente e depois fui encontrar na sala do oficial de dia o senhor comandante da unidade, um pacífico aristocrata, e o senhor tenente coronel que poucos meses depois seria dirigente de topo de uma grande empresa de telecomunicações (não, não era o tenente coronel Garcia dos Santos, representante da arma de transmissões no posto de comando da Pontinha) a seguirem atentamente o desenrolar dos acontecimentos no largo do Carmo. Lamentava-se o tenente coronel, que não devia ter participado com muito entusiasmo nas reuniões do movimento dos capitães no quartel das transmissões, do  rumo dos acontecimentos e da triste figura de Marcelo Caetano e Américo Tomás.

Virei-me para o capitão oficial de dia, "e não me disseste nada? estou lixado com vocês", ao que ele me respondeu, no seu alentejano cerrado "não podia dizer nada, pá, daqui a bocadinho vai lá atrás ver se ninguém quer saltar o muro". Tratava-o assim porque tínhamos sido colegas no Técnico, onde discutíamos a política colonial e as eleições de 1969. Ele dizia-me "Só depois de ires às colónias podes criticar" (já não tenho a certeza se na altura ele falou em colónias ou províncias ultramarinas). E de facto, ele e os seus colegas (camaradas de armas) foram e de lá vieram com as ideias mudadas. Recordámos o jantar comemorativo do fim do curso de engenharia eletrotécnica, no Cabo da Roca, em setembro de 1970, quando depois da sobremesa o quarteto da minha mulher cantou o seu canto de intervenção e tu discretamente vieste dizer-me "temos de ir que temos horas de entrada na Academia (Militar)". Recordámos os 6 meses que em 1972 passámos juntos na Arca d´água , no Porto, na instrução dos futuros operadores radiotelegrafistas, eu aspirante miliciano e eles alferes do quadro tirocinantes. O comandante da Escola Prática tinha recebido uma mensagem alertando-o que na leva de milicianos que iam dar instrução e nos instruendos havia infiltrações de perigosos comunistas, mas o tenente Golias, transmontano de gema, comandante da Companhia, pôs água na fervura e até contribuiu para que a festa de fim da instrução tivesse sido feita ao jeito do zip-zip, a série de espetáculos de animação cultural da primavera marcelista, com os velhos capitães de carreira absortos nos corredores a ler os rascunhos das intervenções e do programa da festa que ia fazer-se. Não admira que meses depois, na Guiné, o tenente Golias tivesse começado a preparar com outros heróis o 25 de abril.  

Telefonei para casa, "não saias de casa enquanto as coisas não serenarem", mas claro que não fui ouvido. O quarteto da minha mulher andou aos vivas pelas ruas de Lisboa, quatro semanas depois de terem cantado no Coliseu, abraçados a Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Ary dos Santos. Pela janela (abençoada revolução em que não havia perigo de nos chegarmos à janela, tirando o doloroso episódio das mortes em frente da sede da PIDE), à medida que a tarde avançava, comecei a ver o desfile de automóveis passando em frente do quartel, buzinando, com as senhoras com ar doméstico espetando o braço direito para fora, com os dedos em V. E eu pensando, como terão votado estes alegres concidadãos e concidadãs nas eleições de 1969, quando a CDE teve em Lisboa 30.000 votos e a CEUD 8.000?  ou porque não acompanharam a tentativa de renovação económica da ala renovadora do malogrado Pinto Leite no desastre de helicóptero da Guiné?  Mas não valia a pena pensar nisso. Quando no dia seguinte saí depois de almoço para tomar o café no sítio do costume, as pessoas olhavam para nós com alegria e parecia, reconhecimento.

Na tarde do dia 25 tivemos um sobressalto e tivemos de mandar o piquete serenar uma altercação no Intendente, mas sem consequências, e à noite também atendemos umas queixas de quem se dizia perseguido por jovens vingativos que os acusavam de serem agentes da PIDE.

Já não me recordo de quanto tempo ainda tive de ficar no quartel, mas terá sido pouco tempo e assim voltei até à saída da tropa, em agosto de 1974, à minha rotina, que desde fevereiro de 1974 era a de passar as manhãs no quartel e as tardes na divisão de estudos do metropolitano de Lisboa, onde os engenheiros seniores queriam preparar o futuro da rede, então com o apoio de um consultor alemão, cujo excelente plano ainda não está, passados 50 anos, completamente executado, porque ao longo do tempo foram aparecendo uns decisores que se consideravam geniais e, em demasiados casos, mandatados para escolherem as piores opções.


  






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