domingo, 30 de maio de 2010

Uma das últimas coisas que se devam fazer é anular um concurso



Esta fotografia foi tirada à mesa do meu almoço de há dias.
Não é um restaurante de luxo onde se coma risoto de lagosta (antigamente dizia-se arroz de lagosta, como ainda se diz no Pavão, na rua da Estefânia).
É apenas uma pequena cafetaria gerida por umas senhoras prendadas, onde às vezes como uma tarte de espinafres ou um quiche lorraine com uma salada, no ultimo piso do centro comercial do Chiado.
Ao longe, assinalado, o depósito de combustível pintado de xadrêz, do cais da Quimigal do Barreiro. Perto, há-de passar, em manhãs de nevoeiro, a terceira travessia do Tejo, amarrando um pouco mais para a direita, um ou dois quilómetros terra adentro.
Admitindo que o tabuleiro da ponte fique a 50m do nível médio (se tivessem consultado o Instituto Hidrográfico – se , porque não o consultaram, só pediram cartas marítimas - esse número talvez subisse para 70m, mas eu sou um exagerado, e os marinheiros do Hidrográfico também, quanto mais não fosse para não se repetisse a farsa da ponte do Carregado, que obrigou os varinos a ir ao estaleiro cortar as pontas dos mastros; ai os nossos projetistas do nosso país de marinheiros…) ela precisará de cerca de 4 km desde o nivel 0 até atingir essa altura.
Isto é, para não estar a obstruir o rio com uma altura pequena, tem de entrar francamente nos terrenos do Barreiro até ao túnel previsto.
Lembram-se daquele “prós e contras” em que uns senhores projetistas e administradores da RAVE vieram com sobranceria e arrogância chamar ignorantes aos críticos da ponte e do seu impacto visual (é fácil de imaginar que, neste caso, a ponte tapará toda a linha do horizonte atualmente visível entre o depósito e a colina da Sé, não é?)?
Lembram-se de se dizer que a ponte devia estar mais a norte (percurso Beato-Base aérea do Montijo, com menos 2 km) para o pilar norte não afetar os cais de contentores do Poço do Bispo?
Vem agora invocar-se alterações no pilar norte para ajudar a anular o concurso  para a construção da ponte que estava em fase de apreciação de propostas?
Diz o código de contratação pública que seriam precisas circunstâncias supervenientes para justificar uma anulação.
Que o pilar estava mal, já se sabia; que a situação financeira não era famosa, já se sabia...
Um dos senhores administradores da RAVE explicou nesse “prós e contras” a todos nós ignorantes que o traçado da ponte era por causa da curva para entroncar na linha do Norte.
Mas porque cargas de água tem o TGV de ter a estação principal na Gare do Oriente?
Podia ir em frente, pelo vale de Chelas, ter a sua estação central aqui, em correspondência com a estação de metro de Olaias.
Mas se não quisessem, podia construir-se a estação central no sítio do aeroporto da Portela, agora que já se percebeu que não se deve substituir um equipamento social por uma urbanização na bolsa imobiliária (por causa da lei das expropriações para fins de serviço público, os herdeiros dos expropriados têm direito às mais valias).
Ou ir até à gare do Oriente com recurso a tuneis para a curva concordante (Barcelona também teve de recorrer ao traçado em tunel para o TGV). Calro que fica mais caro. Mas porquê esta obssessão calatraviana de ir à gare do Oriente?
Enfim, não resisto a transcrever o que escrevi a seguir ao tal programa do Prós e Contras, há dois anos.
É uma pena evoluir-se tão devagar.
Ser preciso tanto tempo para perceber que aquele pilar norte não estava bem (nem aquele pilar nem aquele traçado da ponte…).
Que afinal não era só o pilar do poço do bispo a crescer ou a minguar consoante o observador; também se mexia do lugar.
Foi preciso anular um concurso para perceber isso.
Não sei é se será motivo reconhecido pela legislação para anular o concurso, mas isso será com os nossos amigos advogados.



Texto escrito em Abril de 2008:

O projecto da ponte da RAVE para a travessia do Tejo
Um belo exemplo de uma travessia oblíqua, neste caso em relação à direcção do vector dominante da velocidade da água no estuário, e por isso uma boa solução para, em linha tipo raguebi, cada pilar reter a sua porção de areia em fases diferentes do escoamento do fluido.
Vitruvius, com a sua mania de apontar proas a montante, nas bases dos pilares, não teria aprovado, por rigidamente apegado à ultrapassada teoria de que o caminho mais curto entre duas margens é um segmento de recta ou de ortodromia.
Mas Vitruvius nunca utilizou um vão de 500 metros quase 600, nem beneficiou da inovação que agora incensamos.
É comovente a homenagem que os técnicos da RAVE prepararam à cultura e à educação: o tabuleiro de ligação à margem norte, sobre a Calçada do Grilo, vai projectar a sua sombra protectora sobre o mimoso convento e assim prolongar o tempo de vida das suas pedras e dos ligantes destas; questiono-me quanto teria o ministério da Cultura de desembolsar para construir uma protecção térmica tão eficaz como o tabuleiro; igualmente o ministério da Educação vai ser liberto dos encargos que a continuidade de uma escola profissional como a Afonso Domingues lhe acarretaria ao orçamento, especialmente aqueles laboratórios de máquinas eléctricas; mantê-los a funcionar era um sorvedouro; Afonso Domingues, absorto nas suas abóbadas e refractário também à inovação, seguiria talvez Vitruvius e não aprovaria; do outro lado do rio, no Barreiro, Alvaro Velho do roteiro da viagem de Vasco da Gama, inclinar-se-á cordato perante a destruição da sua escola preparatória - mais uma economia para o ministério da Educação - a expansão da via rápida até à nova ponte, e a escolha de um nome mais ilustre do que o seu, de barreirense humilde e piloto sabedor, para a baptizar.
Tomando o primeiro pilar da projectada ponte, do lado do Convento do Beato, vê-lo-emos erguer-se (o pilar) como a torre de Akbar sobre o casario de Barcelona ou a torre do Colombo sobre a cumeada de Monsanto, o sol reflectindo-se nos tirantes, como fiapos do líquido espargido pela emergência vigorosa acima do rio, em inovador, porque em sentido inverso, ritual de fecundidade.
Será um apelo gerador para mais uma Manhattan de Cacilhas e umas torres Siza em Alcantara, a infeliz, se as tiver.


  
Só precisamos de escolher um local para miradouro, como se assistissemos a um fogo de artifício.
Duzentos metros acima da superficie do rio, sobranceiro como o ultimo andar de um prédio de 67 andares (2 Sheratons), o pico do segundo pilar acena-nos, acima do campanário da igreja de Santo Estevão e encostadinho à base da cúpula de Santa Engrácia, a nós, que a 3100 metros de distancia, nas Portas do Sol, o reverenciamos como em Stonehenge, elevando o nosso olhar segundo um angulo de 2,5º.
Viva a inovação, de portas do sol, por viradas ao sol nascente, passemos a chamar-lhes portas do pilar a espreitar ao longe.
Madrid já tem as portas do sol; não tem nenhumas portas do pilar, teria quando muito umas portas da Pilar.
Com a inovação ganhemos vantagens competitivas por comparação com Madrid.
Mas não nos iludamos, o Homem e a Mulher (escolhida a ordem alfabética) são a medida de todas as coisas, apesar do fracasso, pelo menos até agora, dos falanstérios pitagóricos; e aquele pilar vai ser de geometria variável: para uns cresce, cresce, cresce, e quanto mais afastado das portas abertas ao sol melhor.
Para outros o pilar mingua, mingua, mingua, e mal se notará (realmente, nas portas do sol não se notará; agora no Poço do Bispo...).

Vivamos todos para ver


PS em 2010-06-07  - Segundo o sítio da RAVE, em  http://www.rave.pt/tabid/347/Default.aspx  a altura do tabuleiro à água será de 62m. Duvido que seja a altura livre ao nível médio das águas, que julgo ser da ordem de 47m, não tendo enconttrado no sítio da RAVE elementos suficientes. Pessoalmente penso que deveria ter uma altura livre um pouco maior.



_______________________________

Sem comentários:

Enviar um comentário