terça-feira, 10 de abril de 2012

Manuel Alegre, de Nambuangongo à Balada dos Aflitos


Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas - dizeis - e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais valia.


Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo e outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.


Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.

Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos

em nós mesmos perdidos e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.


                    Manuel Alegre, em  "Nada está escrito", ed. D.Quixote, e em
                                    http://www manuelalegre.com/301000/1/002679,000014/index.htm



Apreciei muito este poema.
Dedicado aos aflitos, ao povo português que os senhores da troica acham que tem salários superiores ao valor do que produzem e que por isso devem ser baixados, os salários, ou simplesmente lançados, os portugueses, no desemprego, para reduzir a procura, as importações e o custo de vida.
Que droga, os  mercados, as  mais valias, a mão invisível e o não termos valor acrescentado nas coisas que fazemos (mentira, temos, mas não há interesse de quem teria de o pagar em reconhecê-lo).
"Que mundo tão diferente do que se queria..."

Acho que fica, menos mal, ilustrar o poema com a foto de Nossa Senhora da República
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/search?q=nossa+senhora+da+rep%C3%BAblica

´

Recordo também o tempo longínquo em que utilizei um poema de Manuel Alegre, ou melhor, uma parte do poema, para testar os circuitos audio do primeiro gravador multicanal de comunicações, ainda de fita magnética, agora são de disco rígido,  na sala de controle das circulações de comboios do metropolitano de Lisboa.
Um dos técnicos de eletrónica, afeto ao MRPP no ano quente de 1975, vociferava que estávamos a querer controlar os trabalhadores, a oprimi-los numa perspetiva revisionista.
Não estávamos, estávamos a equipar o sistema de gestão da exploração do metro com um meio de segurança e de registo para esclarecimento de situações de perigo ou de mau funcionamento.
Uma espécie de caixa negra, para recolha de elementos para corrigir deficiencias e evitar a sua repetição.
O poema foi "Nambuangongo, meu amor", uma esperança de acabarmos com a ideia da guerra:



Em Nambuangongo tu não viste nada
não viste nada nesse dia longo longo
a cabeça cortada
e a flor bombardeada
não tu não viste nada em Nambuangongo


Falavas de Hiroxima tu que nunca viste
em cada homem um morto que não morre.
Sim nós sabemos Hiroxima é triste
mas ouve em Nambuangongo existe
em cada homem um rio que não corre.


Em Nambuangongo o tempo cabe num minuto
em Nambuangongo a gente lembra a gente esquece
em Nambuangongo olhei a morte e fiquei nu. Tu
não sabes mas eu digo-te: dói muito.
Em Nambuangongo há gente que apodrece.


Em Nambuangongo a gente pensa que não volta
cada carta é um adeus em cada carta se morre
cada carta é um silêncio e uma revolta.
Em Lisboa na mesma isto é a vida corre.
E em Nambuangongo a gente pensa que não volta.


É justo que me fales de Hiroxima.
Porém tu nada sabes deste tempo longo longo
tempo exactamente em cima
do nosso tempo. Ai tempo onde a palavra vida rima
com a palavra morte em Nambuangongo.




É, nunca se sabe, a canção pode ser uma arma.






















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