terça-feira, 25 de outubro de 2016

O NPIU, núcleo de preservação da identidade urbanística

Espera este blogue não ser processado, dado que o que segue é pura ficção.


Vila Nova de Santa Silvana é uma cidadezinha como as outras.
As pessoas movem-se segundo os padrões da sociologia e da antropologia, sem grandes particularismos. Talvez as mudanças do 25 de abril de 1974 tenham alterado alguns comportamentos, mas isso também aconteceu nas outras cidadezinhas.
Pessoas que foram crescendo integradas nos seus grupos de interesse. Algumas que se foram deslocando de uns grupos sociais para outros, denotando atividade intensa, como movimentos moleculares em busca de estados de maior estabilidade. Fazendo-me recordar as animações dos filmes que vi quando miúdo, nos terrenos então abandonados à beira do rio, onde os exibidores ambulantes passavam filmes no verão. Lembro-me de ver, como documentários antes dos filmes da Disney, animações com movimentações de grandes manchas azuladas, representando as bactérias, enquanto outras manchas, de glóbulos vermelhos e de leucócitos, se engolfavam   umas nas outras.
As mudanças do 25 de abril deram oportunidade a alguns de intervir na coisa pública. A cidadezinha encheu-se de construções novas. Apartamentos para residencia permanente na periferia, apartamentos para aluguer na marginal, blocos disformes plantados no meio dos bairros antigos, ofuscando os modestos mas graciosos edifícios, uns do tempo da alternancia entre regeneradores e progressistas, do tempo da bancarrota do fim do século XIX, outros do tempo da I grande guerra e da belle epoque, quase todos mantendo vestígios de algum requinte com pormenores arquitetónicos que lá foram deixados; apesar das limitações financeiras da época e graças às promessas do crescimento da economia, já em globalização nessa altura, antes da grande depressão.
Cresceram pois, à medida que as estruturas municipais foram ganhando a força da democracia  local, os blocos inestéticos, enquanto se agilizavam os mecanismos de ligação entre empreiteiros e decisores e licenciadores autárquicos.
Mas precisamente por causa dessa agilização e dos seus resultados era patente a necessidade de moderar a fúria construtiva.
Formou-se assim o núcleo. Um núcleo de preservação do charme antigo da cidadezinha, dos seus pormenores mimosos, o núcleo de preservação da identidade urbanística de Vila Nova de Santa Silvana, o NPIU. Em sintonia com os princípios do controle de qualidade das grandes empresas e da supervisão pelas entidades públicas da conformidade com os padrões da legalidade urbana e do equilíbrio estético. Associado o núcleo, em interpenetração como nos desenhos animados os glóbulos e as bactérias, às forças de geração da construção civil interligadas, por sua vez, com os decisores camarários. Controlando por um lado a barbárie da destruição dos vestígios, mas ao mesmo tempo dissimulando a barbárie do ofuscamento desses vestígios pelas novas construções e pelo novo urbanismo, e legitimando a assunção do poder pelos membros do núcleo.
Foi o aproveitamento de uma oportunidade, porque nenhum dos grupos mais ou menos maçónicos, que cresceram na cidadezinha com a República como cogumelos, o podia fazer. Além de que sempre foram pouco recetivos aos recem-chegados, quer os que vinham de fora de Vila Nova de Santa Silvana, quer os que, nascidos santasilvanenses, vinham dos extratos sociais mais humildes, menos preponderantes.
Assim foram percorridos pelos entusiastas do núcleo as ruas da cidadezinha. Feito o levantamento das maravilhas dos azulejos decorativos nas pequenas fachadas, rocócó uns, art deco outros, devidamente reportados em paineis na via pública. Mas feito também o levantamento dos edificios abandonados e deixados a apodrecer com a morte dos moradores, cujos descendentes emigraram para a Europa ou para Lisboa.
Como recuperá-los? interrogaram-se no núcleo. E a resposta foi dada. Os herdeiros absentistas que não conseguiam vender os desprezados edificios, ou que apenas não tinham dinheiro para pagar sequer a pintura exterior, porque as paredes se encontravam em estado avançado de degradação, ou porque o telhado já tinha deixado entrar água suficiente para corroer os sobrados, começaram a receber intimações da câmara para fazer as obras. Caso o não fizessem, a taxa de IMI seria aumentada astronomicamente, ou teriam de pagar obras coercivas. De nada serviu aos pobres pedir apoio à câmara na obtenção de fundos comunitários para rentabilização dos seus imóveis, nem reivindicar um mercado de remodelação de edifícios com preços controlados oficialmente, ou a negociação de um seguro de bom fim para as obras, quanto mais não fosse para prevenir a fuga do empreiteiro a meio da obra.
Ao contrário, o núcleo coordenou com um empreiteiro conhecido, já com amplos negócios com a câmara a apresentação aos herdeiros proprietários de proposta de aquisição por preços francamente abaixo dos valores patrimoniais atualizados.
E assim foram sendo vendidos, à medida que os anos passavam e os IMIs subiam para quem não vendia, ao mesmo tempo que todos os anos a proposta de compra baixava de valor, afastando-se a eventual concorrência com a garantia de não aprovação dos projetos que apresentassem por não cumprirem os requisitos de preservação do núcleo.
Tendo vários empreiteiros devidamente selecionados integrado este movimento de renovação urbanística, a coisa chegou ao ponto do núcleo promover o embargo de obras de remodelação de edifícios, normalmente de acrescento de andares para aluguer a turistas, ou construção de garagens,que estivessem a cargo de empreiteiros estranhos aos seus movimentos. Por não cumprimento, claro, dos requisitos.
E mais se lembrou o núcleo de nova forma para afirmar o seu poder. O presidente da câmara e a sua vereadora do urbanismo concordaram. E na próxima assembleia municipal fizeram aprovar o novo regulamento com a atualização da tabela dos valores patrimoniais. Aqueles terrenos ali, na zona urbanizada e urbanizável onde já pululavam moradias uni-familiares de alto nível e blocos residenciais para a classe média-alta, tiveram uma subida vertiginosa do seu valor patrimonial.
Bem protestaram, mas inutilmente, os proprietários, que almejavam vender os terrenos com lucro depois de aprovado um projeto de construção. Não tiveram sorte porque os avaliadores da arbitragem estavam por demais ligados ao núcleo.  De modo que não tardaram em começar a vender os seus lotes a preços de cerca de um terço do valor patrimonial. Por coincidência, a maior parte dos compradores estava ligada ao núcleo, aguardando a aprovação de novo plano de urbanização, convenientemente compatível com novo plano municipal diretor e nova atualização, mais modesta, do valor patrimonial.
Coisa semelhante, aliás, ao que se passara anos antes, quando os terrenos junto da ETAR foram vendidos barato, e comprados pelo núcleo, para mais tarde serem vendidos com lucro, depois da mudança de local da ETAR.
Vila Nova de Santa Silvana prossegue a sua auspiciosa caminhada. Ainda recentemente o seu presidente da câmara anunciou, no auditório do palácio dos congressos da cidadezinha, a realização do próximo concurso mundial de uma modalidade desportiva ligada ao mar, mas que não tem nada que ver com o NPIU. Será uma nova oportunidade, na diversidade.

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