sábado, 20 de abril de 2019

De Notre Dame ao convento de S.Francisco de Setubal

Gosto de pensar que os poetas, mesmo sem conhecimentos técnicos sobre aquilo de que falam, conseguem muitas vezes atingir a essencia da questão, enquanto nós, técnicos, nos perdemos a tentar compreender como as coisas funcionam, como os acidentes acontecem, como as probabilidades de uma coisa ou outra poderão estimar-se.
Foi o caso de um comentário do poeta Manuel Alegre numa entrevista ao DN sobre o desastre da Notre Dame: "o incendio é uma metáfora de uma certa desatenção".
É verdade que se referia à insignificancia da verba do ministério da cultura francês para todo o património : mil milhões de euros. E isso é de facto uma desatenção, e um desvio (enviesamento como os economistas gostam de dizer) que desconsidera a geração de valor económico da cultura. E que diremos nós, portugueses... Tudo o que for menos de 1% do PIB (do PIB, não do orçamento do Estado) é pouco. Em Portugal, 1% seria à volta de 2 mil milhões.
Mas também podemos interpretar de forma mais brusca, uma certa desatenção significa negligencia.
Como de costume, as vozes sensatas dizem para se aguardar o resultado do inquérito, embora as também outras vozes sensatas vão dizendo que só se podem recolher as provas das causas do incendio depois de se garantir que não haverá derrocadas.
Existirá durante muito tempo esse risco, mas já que não podem determinar-se as causas, podem ao menos pôr-se hipóteses, e algumas hipóteses podem conter perguntas que se podem responder desde já. Por exemplo, e coloco as hipóteses por no metropolitano de Lisboa termos tido a experiencia de um incendio com algumas analogias - obras da Alameda, 1997, ardeu a abóbada em betonagem e o interior da obra, incendio com origem provável no sobreaquecimento de um projetor, plásticos, latas de tinta e outros materiais combustíveis como a cofragem de pinho verde da abóbada; chamados os bombeiros ao primeiro sinal de chamas detetadas pelos maquinistas à passagem pelos paineis da obra, chegaram à Alameda D.Afonso Henriques, e não vendo chamas, regressaram aos quarteis):
-  os barrotes do telhado e as peças metálicas das uniões (chumbo, zinco) estavam pintadas com tinta intumescente?
- estava alguém em obra, onde e com que funções?
- quais as caraterísticas dos projetores? (devem ser interditos projetores de halogéneo em obras)
- quais as caraterísticas dos detetores de incendio (fumos?infravermelhos/temperatura? pontuais?cabo sensível/temperatura? ) e sua localização na obra?
- qual o nível de proteção diferencial dos quadros das instalações elétricas da obra e nível de estanquidade (iluminação, elevadores, ferramentas de rebarbamento, corte e furação)?

As respostas a estas questões poderão confirmar se houve negligencia, que até pode ser imputável, no mesmo espírito do comentário de Manuel Alegre, não aos executantes, mas aos planeadores ou aos decisores. A obra decorria há já algum tempo, e manter equipas de vigilancia 24 horas por dia custa muito caro, além de se cair na rotina que induz desatenção. É do interesse público saber se foi assim, ou se foi causa acidental como curto circuito (tal como a PJ portuguesa insistia no caso do incendio da Alameda, ilibando o empreiteiro de negligencia e o pobre vigilante que morreu no incendio, que o incendio tinha começado num cabo de retorno da corrente de tração- cuja tensão por sinal era inferior a 60 volt e cuja intensidade de corrente era baixa devida ao pouco movimento noturno de comboios; quando há um incendio, o isolamento dos cabos arde e os condutores entram em curto circuito; também em França se diz isso, isentando de desatenção ou de negligencia; o curto circuito pode ser consequencia e não causa, embora também possa sê-lo) .

Escondida pelo mediatismo do incendio de Notre Dame, e muito longe em importancia cultural, mas para mim muito, muito importante, veio também nos jornais a notícia do anúncio de venda do convento de S.Francisco em Setúbal, na ladeira de acesso à fortaleza de S.Filipe. São 62.000 m2, umas ruinas de um convento do século XV mas já muito modificado e 5 (cinco) moradias de autor, como se costuma dizer, com formas paralelipédicas sobranceiras à estrada e com alguma vista para o estuário. Pede a Estamo 5 milhões de euros e eu acho que é pouco (200 mil euros por cada moradia já era pouco, muito pouco). Se se vendem os anéis devem vender-se por preço muito elevado. Embora melhor seria rentabilizar a quinta e a exploração das 5 moradias. Se o Estado não tem vocação (ou não quer ter, ou acha que não precisa de investir em infraestruturas de saúde, de cultura ou educação), então faça uma concessão. Mas vender não, para que não se possa dizer depois que houve uma certa desatenção ao valor daquilo que era de todos, ou negligência... Não é um incendio, é apenas uma perda... para a redução do défice.

http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=10257

https://eco.sapo.pt/2019/04/17/convento-de-sao-francisco-em-setubal-esta-a-venda-estado-pede-cinco-milhoes/


















https://www.youtube.com/watch?v=Ilze8jpCkeY

https://www.youtube.com/watch?v=2qvISJsaMpo

PS em 2 de maio de 2019 - Segundo esta notícia:
https://observador.pt/2019/04/29/notre-dame-mais-de-mil-especialistas-pedem-tempo-para-uma-boa-reconstrucao/

um grupo de especialistas pediu ao presidente Macron para ouvir os especialistas antes de definir o prazo de reconstrução da Notre Dame. A fixação do prazo pelo presidente francês foi mais um exemplo do alheamento dos decisores das questões técnicas, o que não admirará por não terem experiencia de construção ou de produção. Ou como diziam os gregos antigos, têm o complexo de hubris, de humilharem quem deles depende. E este complexo de Macron espalha-se por quase todos os cargos diigentes. É uma pena, e um obstáculo à tomada de decisões de forma coletiva.

barra do Sado vista da fortaleza de S.Filipe

vizinho do convento do lado norte



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