segunda-feira, 17 de junho de 2019

Ópera e greves

aviso afixado nas portas do S.Carlos
Senhora ministra

Sou apenas um dos compradores de título de acesso à programada quinta récita da ópera La Boheme. E que, tal como os restantes espetadores, viu gorada a sua expetativa.
Não será caso grave. se nivelarmos por baixo e dissermos que nós, portugueses, não gostamos de ópera.
Talvez, mas eu recordo-me de ver o Coliseu cheio de pessoas de todos os níveis de rendimento para verem ópera.
Não será caso grave, se omitirmos o canto do coro dos escravos do Nabuco, Va pensiero su l' ala dorata,  à presença no Scala de Berlusconi e as palavras que Ricardo Muti pronunciou sobre os cortes na Cultura.


A ópera pode ser subversiva, já têm caído governos por causa dela.
Não será caso grave se omitirmos o programa de ontem, na RTP2 sobre os cortes sofridos pelo teatro de La Monnaie, em Bruxelas. Veja-se o extraordinário documentário:
https://www.rtp.pt/play/p5934/atras-do-palco

E evidentemente, não será caso grave se desprezarmos o trabalho de quem torna possíveis os espetáculos, das senhoras da limpeza, das senhoras costureiras, de todos os técnicos e, claro, o trabalho das disciplinas artísticas. Numa perspetiva elitista, desprezando também o que o compositor e o libretista quiseram dizer (ai as encenações do D.Giovanni com segadeiras erguidas como sombras chinesas para ceifar nobres... , as óperas interventivas de Verdi, a Kovantchina de Mussorgsky...), dir-se-á que estão ao serviço dos tradicionalistas apreciadores de ópera e portanto que façam o seu trabalho.

Não escrevo para a culpar  ou tentar convencê-la seja do que for. A senhora faz parte de um grupo coeso, em que cada membro tem uma confiança cega nos outros membros, que estão primeiro, sempre primeiro, do que qualquer cidadão. E cada membro desenvolveu uma capacidade de justificação das suas ações, aproveitando aquela caraterística da natureza, umas vezes indeterminista outras dual, que permite que qualquer opinião, por mais errada que seja, tenha sempre algo de positivo ou certo. Outros diriam que em tal grupo se prefere dar a prioridade à posição oficial do decisor principal do grupo, ou do decisor de serviço, sempre estribada no referendo dos poucos técnicos afins que foram eleitos para assessorar o grupo na respetiva especialidade, ainda que em clara oposição ou alheamento da realidade, logo batizada de incómoda quando alguém diz "o rei vai nu" (impressionante a sabedoria das multidões, ao diagnosticar há séculos as falhas dos decisores). Inútil aduzir argumentos técnicos e demonstrações físicas, porque são rejeitados liminarmente, sem discussão, sem querer saber como as coisas funcionam.
Qualquer amador de psicologia concluiria que é impossível fazer um membro do grupo mudar de opinião ou sequer reconhecer um pingo de responsabilidade pelo insucesso (que neste caso não é pequeno, uma ópera programa-se com 2 a 3 anos de antecedencia, trabalha-se para a sua produção, e depois, cancelam-se 5 récitas...), talvez porque receie sair da norma se pensar pela sua cabeça. Opor-se à opinião geral do grupo da coesão, como explicaria Freud, estaria associado à incerteza das razões e à insegurança do elemento do grupo, e é essa insegurança que reforça a coesão.
Por isso não serei eu quem contrariará o psicólogo.

Mas sinto-me na obrigação de explicar então  porque escrevo, pese embora nunca se ser bom em introspeção.
Simples desabafo de quem tem a imodéstia ou ilusão de pensar que entendeu alguma coisa, pequena parte da realidade que tenha sido.
Penso saber do que falo. Por  ter tido uma atividade profissional numa empresa pública, sei que os ministérios que tutelam têm como regra geral nomear e considerar  os administradores como comissários políticos  que estão ali para cumprirem os objetivos definidos top-down. Toda ou qualquer semelhança com princípios democráticos é pura coincidencia. Noto que há exceções, e
provavelmente os dois vogais que a senhora demitiu terão decidido pelas suas cabeças, no uso da autonomia que deve presidir à gestão de qualquer empresa pública, mas que o grupo coeso que referi considera uma heresia. Porque o mantra é o cumprimento do défice, e para isso existem as cativações, encanar a pata à rã até chegarmos ao fim  do exercício e conseguir assim o melhor indicador . Sei do que falo, Esteve um terço dos comboios parados no metropolitano porque o ministério das finanças não deixava comprar os rodados necessários para substituir os desgastados. Conseguiu-se recuperar no metro. Mas na CP não, nos barcos do Tejo não. E é impossível cumprir o serviço público de transporte, como impossível é cunprir os objetivos da saúde pública se não se paga aos hospitais privados as cirurgias porque não vem o visto do ministério das finanças.
No seu artigo no Público de 16 de junho, a senhora ministra alinha as suas razões. São razões de um formalismo impecável face às peripécias das negociações, que ao "resolver problemas de décadas com soluções de futuro" (o grupo coeso é fértil neste raciocínio, os comboios podem faltar, as pessoas não são  convenientemente servidas, mas nunca se investiu tanto na ferrovia...) faz lembrar a frase de Lao Tse na parede da estação de metro do Parque: "Quem renuncia ao presente ganha o que está longe". Mas que são uma manobra de diversão digna de Sun Tzu, porque a questão que o sindicato dos trabalhadores e artistas do S.Carlos disse simplesmente, foi que queria a autorização escrita do ministério das finanças para as verbas já orçamentadas para 2019, e que sem essa autorização escrita haveria greve. Cativações não. Paralisam o país.
Lamenta a senhora ministra que os melómanos tenham ficado sem a sua ópera, e que os trabalhadores não tenham  compreendido que "tudo fizemos para isso (para que houvesse récitas). Identificámos problemas e criámos soluções" (?!), que não tenham compreendido que a senhora ministra está a fazer um trabalho "estrutural".
Eu lamento que desde março os decisores tenham ignorado, com a exceção dos dois vogais demitidos, o que os técnicos e artistas pediam, a autorização escrita do ministério das finanças, que tenham ignorado os pedidos de audiencia. Será que à aproximação do Festival ao Largo, que tem impacto turístico (e contudo, as récitas de ópera também o têm, que terão ficado a pensar os melómanos das colónias estrangeiras ?), algum decisor de topo aparecerá na televisão a resolver o problema?
Eu lamento o desinteresse deste governo. O outro não era melhor, se nos lembrarmos das caras de enfado com que os membros do XIX governo se sentaram na plateia improvisada no Palácio da Ajuda no concerto comemorativo da sua entrada em funções e nas peripécias da demissão do seu primeiro secretário de Estado da Cultura. É sintomático o camarote presidencial ser utilizado normalmente como apoio técnico, raramente por senhores governantes.
Os senhores governantes acham que a ópera é um serviço para  privilegiados, desocupados e improdutivos.
Negarão, claro, em estado de negação. É preciso cumprir o défice.

Termino evocando a lei da greve e os mecanismos dos serviços mínimos. A enumeração na lei da greve dos setores em que devem organizar-se serviços mínimos não é exclusivista nem exaustiva, é apenas exemplificativa. Nada impediria a DGERT e o Conselho Económico e Social de promover serviços mínimos, reduzindo por exemplo o àmbito da produção, tipo versão de concerto ou cortando partes da ópera. Dirão os puristas que isso desvirtuaria a ópera. Quem não quisesse assistir solicitaria o reembolso. Eu diria que não, que é a lei, e que podia ter-se transformado um insucesso total em 5 encontros em que se ouviriam trechos da Boheme, e se pudesse dialogar com os cantores, os técnicos, os artistas, alternando a música com a discussão da cultura em Portugal (La Monnaie, 33 milhões de euros; Paris, 140 milhões; Staatsopera de Munique, 100 milhões...a ópera é um espetáculo caro, requer coproduções, planificação a prazo de vários anos ... e subversivo).
Mas será talvez a minha parte de utopia a falar.

PS em 17 de junho :




https://www.publico.pt/2019/06/16/culturaipsilon/noticia/tres-milhoes-euros-sao-carlos-nao-pacificam-trabalhadores-salvam-opera-ficou-estrear-1876563

Posição da ministra da Cultura:
https://www.publico.pt/2019/06/16/culturaipsilon/opiniao/resolver-problemas-decadas-solucoes-futuro-sao-carlos-cnb-orquestra-sinfonica-1876547

Posição do Cena-STE e representantes sindicais do Opart :
https://www.publico.pt/2019/06/17/culturaipsilon/opiniao/resolver-presente-futuro-opart-1876618

PS em 21 de junho de 2019, fim da Primavera - de manhã, o sindicalista manifestou esperanças na conversa que ia ter com a senhora secretária de Estado. Terá pensado que o senhor primeiro ministro teria estado muito ocupado no agri-doce conselho da Europa e que não gostará de ópera e por isso teria delegado na senhora ministra da Cultura, que também terá andado muito ocupada com a transcendente pasta que sobraça e que possivelmente, por dar mais importancia ao formalismo das coisas do que à representação da Boheme, não apreciará ópera, pelo que delegou na senhora secretária de Estado.
À tarde a voz do sindicalista era de desilusão. Por mais que tivesse explicado que o problema era quando pagavam a harmonização que está no orçamento mas cativada, a senhora secretária de Estado não saiu da sua estratégia, obviamente cheia de razão, como não poderia deixar de ser num grupo tão coeso como é o XIX governo, estratégia essa que segue os critérios de Sun Tzu como manobra de diversão. Não era isso que se discutia. Descobriu-se no ministério que a decisão de passar os bailarinos para 35 horas em 2017 tinha sido ilegítima, logo havia que criar um banco de horas para "harmonizar".  Consta até que a senhora ministra já não tem confiança no próprio presidente da Opart, mas pode ser só um rumor. Parafraseando o senhor ministro dos Transportes urbanos/Ambiente, eu diria harmonizar coisissima nenhuma, dissonancia, dissonancia é o que é. Perante tal manobra de diversão, comento que é mais uma manifestação de desrespeito por técnicos e artistas, mais uma imposição das cativações, mais uma indignidade. Mas pode ser que arranjem uns serviços mínimos para o Festival do Largo. Entretanto o senhor ministro das Finanças foi muito cumprimentado por ter sido mandatado para encontrar financiamento para 17 mil milhões da União Europeia para investir (para ver se a inflação anima, penso eu). Conhecido o seu pensamento sobre investimentos em infraestruturas, é capaz de ser o mesmo que pedir ao raposo para comprar vedações resistentes para o galinheiro.

PS em 27 de junho de 2019 - A notícia do Público de 26 de junho diz que o diretor artístico do S.Carlos não quer renovar o contrato. Se fosse um treinador de futebol encher-se-iam os noticiários com comentários de entendidos. Não admira, só 45 mil pessoas asssistiram a espetáculos de ópera em 2018:




Mas não se culpem as pessoas. A desistencia de Patrick Dickie é apenas consequencia da política cultural deste e dos anteriores governos. Os senhores governantes não acham que se deva investir neste tipo de cultura. Não sabem o que perdem, mas sabem que vão privar pessoas do prazer de ver e ouvir ópera. 
É impressionante a postura da senhora ministra e da senhora secretária de Estado. Lembraram-se da manobra de diversão de Sun Tzu , capítulo VII da arte da guerra - as manobras, ação 4: "tome um caminho indireto e distraia o inimigo", vulgo manobra de diversão, distrair o inimigo, enganar todos com falinhas mansas, do tipo: passar de 40 para 35 horas semanais em  2017 foi ilegal, logo acaba-se com isso. Salvo melhor opinião, seria necessário uma decisão de tribunal para tal, mas o XXI governo está acima disso. Uma análise psicilógica diria que se um detentor de poder ouve uma coisa (o que estava em causa era o pagamento de uma igualização salarial que estava no orçamento de 2019 mas cativada, à espera da autorização do senhor dos excedentes ou defices pequenos) e responde outra diferente para centrar a discussão nesse tema é porque se sente inseguro. Desde Freud que se sabe isso. Mao dizia que o poder corrompe, e ele sabia do que falava, e etimologicamente é isso mesmo, corrupção significa enfraquecimento. Uma ministra da cultura fraca, seguindo a tradição dos governantes anteriores . Jose Manuel Viegas desistiu de lutar contra as quintinhas e por isso não sei se seguiria a tradição desses governantes, como aliás os seus sucessores seguiram; por exemplo , Gabriela Canavilhas demitiu abusivamente Cristopher Dammon, que tinha uma estratégia inteligente de coproduções com teatros de ópera de segunda linha da Europa; vi produções de grande valia, mas a senhora ministra achou que não eram o que os espetadores tradicionalistas queriam; será uma senhora culta, não tenho as duvidas que tenho relativamente à atual, não era portanto fraca, mas o seu problema foi hubris, o achar, sem humildade, que estava acima dos governados e ao lado das quintinhas, ignorando o mérito da estratégia de Dammon. Que pensará Patrick Dickie dos excelsos decisores portugueses?
Ver na pãgina 69 desta revista da imprensa a notícia sobre Patrick Dickie:
http://fesete.pt/portal/docs/pdf/NOIM2019/Revista_Imprensa_26_Junho_2019.pdf





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