terça-feira, 30 de agosto de 2022

Depois da leitura da crónica "Aos ziguezagues" de Henrique Monteiro

 Depois da leitura dos ziguezagues

https://leitor.expresso.pt/semanario/semanario2600/html/primeiro-caderno/opiniao/aos-ziguezagues-sem-rumo-certo-nem-onde-aportar 

enviei ao seu autor este email:


Caro Henrique Monteiro

 

Da leitura do seu artigo fiquei com a ideia de que o escreveu com uma serena nostalgia da sua juventude mais remota. E talvez por isso tenha deixado algumas ideias que possam ser mal interpretadas. Por exemplo, na minha ainda mais remota juventude, porque sou mais idoso, partilhei as suas esperanças e os seus objetivos, mas passados estes anos todos, sinto que o Henrique Monteiro se afastou desses ideais, enquanto eu continuo agarrado aos ditos ideais, ultrapassadíssimos pelos novos tempos … ou estarei a interpretar mal. Por exemplo também, quando escreve o adeus à “irreversibilidade das nacionalizações” logo a seguir afirma que o país perdeu o rumo. Deduz-se que mais ou menos pela mesma altura. Não digo que seja uma relação de causa e efeito, será apenas uma hipótese, e o método científico  diz que as hipóteses devem ser analisadas, ou testadas, melhor dizendo, coisa que os nossos comentadores mais brilhantes não gostam de fazer, preferem chamar ignorante, ou falho de informação, a quem as põe. Ou ainda melhor dizendo, nacionalizar ou privatizar não tem nada de programa prévio, numas circunstancias é melhor nacionalizar, noutras é melhor privatizar, depende, e os critérios a utilizar escapam muitas vezes não “às pessoas simples”, mas aos brilhantes comentadores, e quando digo brilhantes é porque os vejo a pronunciar-se sobre tudo, chocando-me mais, por formação própria, ou deformação, quando falam de energia, de transportes, sem habilitações para isso. Mas não me interprete mal, não me refiro a si. Talvez por ligação minha a uma associação profissional de engenharia, ou como diz o diretor do Público, a uma “guilda medieval”, refiro-me, repito, a quem não tem conhecimentos para se pronunciar sobre assuntos de engenharia e flutuando a espuma das notícias, aproveita para convencer os leitores para conquistar “adeptos”. É verdade que é um problema de difícil solução, um ministro formado em direito, ou em economia, ter de  decidir o traçado de uma linha de metro, de uma linha de alta velocidade, ou a localização de uma plataforma logística, a segurança da circulação rodoviária ou a localização de um evento em função da afluência, ou em que condições se deve construir uma barragem com bombagem, ou uma rede de centrais de dessalinização, ou de produção de hidrogénio, ou de localização de centrais eólicas e fotovoltaicas, ou de exportação do excesso das intermitentes renováveis nas horas de menos consumo (citei vários temas que tive oportunidade de enviar nas consultas públicas sobre o Plano Ferroviário Nacional, sobre o PNI2030, sobre o PRR, sempre com soberana indiferença dos destinatários, pelos vistos merecida de acordo com os padrões vigentes).

É impossível perceber de tudo e decidir bem. Especialmente quando  a tendência que predominou foi a dos ideais  de mercado terem levado à ocupação progressiva por grandes fornecedores, invocando os benefícios da concorrência, das funções de decisão estratégica dos incumbentes. Como diz o diretor do Público, quando o mercado deixa crescer demais as mais valias dos fornecedores do leilão marginal pelo preço mais alto, então “o Estado pode fazer uma ingerência”. Finalmente, a senhora presidente da CE reconheceu que o “mercado” da eletricidade  tem de ter reformas estruturais. Lá está, leilões concorrenciais e ainda por cima hora a hora, adjudicando pelo preço mais alto (?!), sem possibilidade de,  contrariando os próprios termos do Tratado de Funcionamento da EU, os Estados membros poderem gerir uma produção elétrica própria, poderá funcionar bem em certas circunstâncias, noutras não, não é um caso de concorrência, devia ser um caso de cooperação. Assim, a rotura das cadeias de abastecimento ainda antes da pandemia, os ciclos de Kondraief, a pandemia e a barbárie da guerra convenceram a senhora a propor reformas, sem ser preciso vir uma criança dizer que o rei vai nu, que o problema não é a ingerência do Estado, é o cronycapitalismo e o amiguismo dos seus servidores.

 Dirá que  para evitar desvios existem os reguladores. Talvez fosse um excelente tema para uma reportagem , a análise da eficiência dos reguladores, ou para uma  tese de mestrado. Quando dificilmente o regulador terá poder para impor a sua discordância ou, pior, quando dificilmente poderá ser independente, pela simples existência das portas giratórias, ou, pior ainda, quando o regulador está privado de exercer um negócio, como pode compreender os seus mecanismos internos? Qualquer manual de sistemas de qualidade empresarial explica que que quem fiscaliza não pode estra na mesma cadeia hierárquica. Mas divago, porque há engenheiros que dizem ámen às decisões sem conteúdo técnico válido dos ministros? Porque os assessoram acriticamente? Porque mudam de opinião conforme o poder politico do momento? Já respondeu, porque o país ficou sem rumo e as cabeças dos ministros também se desorientaram.

Não é surpreendente, um país fica sem rumo quando as engenharias são desprezadas ou os seus executantes esqueceram o que aprenderam. Eu lembro-me, colegas meus que compravam os projetos de anos anteriores (importante fonte de rendimento para o contínuo que guardava os relatórios para venda), que se baldavam às aulas teóricas em que os professores falavam do papel da engenharia na solução dos problemas da humanidade (de que o maior, já nos anos 60 se sabia e isso era dito nas aulas teóricas de frequência não obrigatória, era a energia), que estavam mais interessados no canudo para obter as suas mais valias do que no conhecimento. Como podem os ministros jurídicos e economistas distinguir?

Solução?

Difícil, em Portugal. Já passou na ponte Vasco da Gama no sentido da entrada em Lisboa durante as obras de manutenção dos tirantes? Repare que à aproximação do tabuleiro há um aviso para 100 km/h, mais à frente para 80 km/h e finalmente 60 km/h. O normal é passar calmamente a velocidades superiores. Como adolescentes sem disciplina, os condutores acham que estão a limitar a sua liberdade quando podem conduzir a velocidades superiores. Já reparou como os incondicionais das duas rodas, das trotinetas às scooters, acham muito bem ultrapassar os automóveis pela direita e a menos de 1,5m como diz o código da estrada? Que foi alterado por iniciativa dum secretário de Estado que proibiu a policia de multar quem andasse sem capacete de segurança e suprimiu o respetivo artigo do código (?!). São talvez as “pessoas simples”, como diz, que votam como votam e que acham que se pode continuar a discutir tudo e mais alguma coisa sem discutir a essência das coisas, sem analisar os cálculos (basta os decisores dizerem, “estudos que foram feitos provam …”, ou magíster dixit ).

Como muito bem escreveu, geram-se “adeptos” para cada grupo de propostas nos temas que referi e nada avança, ninguém se lembra dois meses depois, ou avança de acordo com ministros iluminados e seus assessores. São adeptos na verdadeira aceção futebolística, não poderemos extirpar esta cultura? Sem sangue, claro, falei metaforicamente. Já reparou na notícia recente que a CE quer ligar Portugal e Espanha em bitola europeia à rede ferroviária europeia até 2030? São regulamentos comunitários, de cumprimento obrigatório pelos Estados membros, mas alegremente o senhor ministro das infraestruturas, seus assessores e seus executivos (enternecedora a notícia de que a IP e a CP são praticamente autónomas, livrando o senhor ministro dos disparates) já vieram dizer que há exceções (sim, a Irlanda, é uma ilha) e que é preciso fazer análises de custos benefícios favoráveis (faça aí uma ACB para provar o que eu quero, senão não lhe pago a consultoria), quando o que a proposta de regulamento o que diz é que se quiser fazer uma linha em bitola ibérica tem de fazer uma ACB que a favoreça, quando já há ACBs que justificam a bitola UIC (e não me venham com a cantiga da ACB desfavorável para Aveiro-Mangualde porque ninguém quer uma linha dupla UIC de Aveiro para Mangualde, o que se quer é o que vem nos regulamentos, uma linha dupla em bitola UIC  e ERTMS de Aveiro para Salamanca, integrada no corredor atlântico que compete a Portugal executar até 2030 e sem passar pela Pampilhosa ou pela Guarda. Impressionante o senhor ministro das infraestruturas e a senhora ministra da coesão (a coesão da EU não deveria prevalecer sobre a coesão do Minho?) insistirem que a prioridade é Lisboa-Porto-Vigo em bitola ibérica, quando a proposta de regulamento manda dar prioridade em bitola UIC e ERTMS a Lisboa/Sines-Madrid-Vitoria-Irun até 2030. Por favor, não diga que não há dinheiro, com o financiamento pela EU até 70% num país em que se gastam 5.000 milhões de euros em 6 meses em jogo on line, para não falar na compra de automóveis e na exportação de capitais para contas off shore. Não querem simplesmente cumprir os regulamentos, sentem-se acima e a comunicação social omite. Como omite por exemplo uma questão muito simples. Está previsto um evento com mais de um milhão de participantes na foz do Trancão (sobre o depósito de Beirolas e na faixa ribeirinha adjacente ao IC2. A lei da segurança em espetáculos (portaria 135/2020) diz, e bem, que devem ser deixados caminhos de evacuação de largura total igual a 0,6 m x nº de participantes /300 , o que para o caso de 1 milhão dá cerca de 2.000 m, numa área limitada pelo rio, pelo IC2 e caminho de ferro, por arruamentos a sul e uma estação de tratamento de águas. Por outro lado a ponte passadiço sobre o Trancão tem 5 m de largura. A mesma lei diz que pode escoar em segurança 2400 pessoas (em 160 segundos). Tive oportunidade de enviar e de comunicar pessoalmente a algumas das entidades responsáveis pelo evento estas preocupações pela segurança dos participantes. Responderam-me que tudo estava  a ser estudado (que mais poderiam responder sem atraiçoar o politiquês?), mas não explicaram como analisaram nem como calcularam os valores de segurança. Os esmagamentos em multidões não são consequência de pânico, este é uma consequência, sendo a origem movimentos aleatórios da multidão geradores de fenómenos de ressonância, com força exagerada exercida sobre as primeiras vítimas (são questões do foro da matemática estatística, da física e da medicina). Mas claro que as pessoas ajuizadas dirão que lá estão as cassandras e no limite, que Nossa Senhora estará vigilante, nada que ver com os acidentes de Duisburg, passadiço de Kashi, Mount Meron, Houston, estádio de Yaunde, vedação de Melila. Entretanto a comunicação social entoa loas, finalmente a população vai poder usufruir da beira rio graças à expulsão do terminal de contentores da Bobadela. Qualquer técnico poderia informar os decisores que não era preciso liquidar a totalidade do terminal da Bobadela, RCM 45/2021, que movimenta mais de 4.000 comboios e 200.000 TEUs por ano e que é uma peça essencial na logística marítimo-rodo-ferroviária, e seria impossível arranjar melhor exemplo dum festival de cigarras, neste caso comemorativo com muita unção da metamorfose regressiva dos participantes, em detrimento dum local de trabalho rentável das formigas. Mas a comunicação social já considera ultrapassadas as fábulas de Esopo a La Fontaine.

E os aeroportos? Senhor, porque permitis?

Não vou cair na tentação de lhe expor as vantagens e inconvenientes técnicos das várias localizações (também não fiz a comparação, segundo critérios técnicos, económicos e ambientais para todas as localizações, não tenho tanto tempo disponível, mas ainda analisei algumas), apenas refiro a deselegância de muitos opinadores. Desde os 60 km do campo de tiro de Alcochete a Lisboa (34 km pelo IC3 até ao km 0 da saída norte de Lisboa/Moscavide), à comparação do CTA completo (12.000 milhões !!) com a primeira fase do Montijo (1,1 milhões !!) incluindo os custos da terceira travessia nos custos do aeroporto (a TTT é necessária enquanto peça dos transportes da AML e da ligação Lisboa-Madrid, haja aeroporto ou não), ocultação de custos na versão de que se é “adepto” e empolamento na que se abomina, repristinação da Ota porque na margem sul é uma “ideia saloia”, pistas em áreas de proteção especial, endeusamento da solução Montijo quando o presidente da ANA, já lá vão uns anos, se descaiu a dizer que não esperaria mais de 8 movimentos/hora,  vamos vendo o filme, sem sabermos se os comentadores leram o contrato de concessão de dezembro de 2012 (a concessionária obrigava-se a arranjar ao concedente um plano de financiamento, para liquidação parcial pelas taxas aeroportuárias, tendo até ficado definido no contrato um esquema de participação nas receitas brutas (não lucros, receitas, desde 1% a partir de 2023 até 10% de 2053 a 2062 inclusive) enquanto a comunicação social se diverte com as peripécias das novas localizações, vai mais ou menos aplaudindo a aquisição do TopSky e as obras interiores da Vinci na Portela, esquecendo uma coisa tão simples, mas difícil de explicar: o objetivo de 48 movimentos por hora na Portela, compatível com os almejados 40 milhões de passageiros por ano é possível com o referido TopSky e com a construção de um taxiway (não prevista no contrato de concessão nem na adenda que não foi incorporada no contrato) no lado norte e nascente da pista 21 com saída evidentemente do Figo Maduro e respetiva base aérea. A segurança do aeroporto melhoraria e o nível de ruido diminuiria (deixava de haver cruzamentos da pista principal), e permitiria manter o aeroporto na Portela até 2030, elaborando-se o projeto de novo aeroporto imediatamente e monitorizando a evolução da procura. A Vinci sabe e já tem o projeto do prolongamento do taxiway (custos não incluidos nos 1,1 milhões), mas ninguém fala nisso, provavelmente por ser uma boa solução que ninguém contestaria, mas devia falar.

E o gasoduto? Claro que podemos ajudar, mas falta o troço de Celorico da Beira a Vale de Frades (Trás os Montes, a caminho de Zamora) e de Barcelona a Carcassone (lá terá a CE de explicar ao senhor Macron que a coesão da EU se sobrepõe à coesão da Aquitânia). Em todo o caso, há limitações em Sines, mas podemos ajudar.

E o hidrogénio? Senhores, como é fácil acreditar em fadas. Estão por resolver os problemas do transporte em gasoduto. E se a ideia é aproveitar o excesso de produção das intermitentes renováveis quando não há consumo (outra proposta, cabos submarinos de muito alta tensão contínua entre o Minho e a França para exportarmos esse excesso ocasional, olimpicamente ignorada) então é mais eficiente exportarmos a energia pra o país de destino onde eletrolisadores espalhados pelo país produzirão hidrogénio mesmo ao lado dos locais de consumo (tração, aquecimento com pilhas de combustível, por exemplo). Mas ai como já há tantos grupos económicos e lobies a fazer força pela produção maciça de hidrogénio para exportação por via marítima (pode fazer-se, desde que se construam os respetivos barcos que depois se sujeitarão ao congestionamento dos portos europeus) ou por gasoduto (como referido, estão por resolver questões técnicas).

Nem vale a pena insistir nos disparates do fecho da refinaria de Matosinhos e das duas centrais de carvão (claro, claro, os ambientalistas aplaudiram, desde que não lhes falte a gasolina ou os kWh elétricos da central espanhola de carvão para os seus carrinhos, isto é NIMBY, not in my backyard), nem no triste caso do governo, PR e TdC se terem marimbado para a lei da AR 2/2020 (uma lei, não uma recomendação) que mandava o metro suspender a construção da linha circular.

Como pois, arranjar solução, para a perda de rumo do país e para o rumo certo da assessoria dos decisores?

Solução só possível se posta em prática a CRP (art.48.1 - Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos) , o que não parece ser grande preocupação dos próprios deputados (talvez por disciplina partidária, a disciplina às vezes tem uma faceta negativa), e para o que a sociedade civil teria de se organizar, e eu confesso que não consigo, embora tente ajudar.

Que fazer?

Talvez a comunicação social insistir, abrir fóruns de debate com participação não de convidados mas de inscrição livre. É conhecido o método, na Islândia foi  praticado a seguir à bancarrota de 2008 … dividem-se os participantes em grupos limitados, cada qual com um coordenador que ficam obrigados a reportar as conclusões num plenário final. As conclusões seguem para as comissões da AR que lá terão de convidar técnicos para as assessorar (conselho económico e social, CSOP, associações profissionais, empresariais e comerciais, imprensa técnica especializada … ). A própria CE já faz isso nas suas consultas públicas, tão discretas e pouco participadas… e hipóteses de ação estão em livros como a Sabedoria das Multidões, de James Surowiecky, ou Governar o mundo, de Mark Mazower, ou A revolução sem lideres (é isso, discordo quando diz, “temos ideias e pessoas mas falta liderança”, porque basta as pessoas, desde que se coordenem e organizem, líderes iluminados são um perigo), de Carne Ross, ou as serenas e nostálgicas divagações de Noam Chomsky para Mudar o mundo.

Talvez as minhas divagações tenham ultrapassado o limite das pessoas ajuizadas, mas devo agradecer-lhe ter-me levado a escrever. Toda e qualquer ideia referida não tem direitos de autor nem barreiras ao seu uso.

 

Com os melhores cumprimentos





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