quinta-feira, 21 de abril de 2022

As travessas da companhia das Índias

Este é um texto de memórias que, por razões que pacientes leitores verão se o lerem, só agora posso escrever.

Nos anos "de brasa" como dizem os argelinos dos seus anos, e nós "quentes", de 1974 e 1975, viveram-se no metropolitano de Lisboa os confrontos próprios da época, em movimentações que felizmente sem episódios graves, foram levando quem lá trabalhava a adaptarem-se aos novos tempos.

Apesar da exaltação de uns, libertos da repressão da censura, e de outros, saudosos dos valores do antigo regime, foi possível evitar os "saneamentos", simplesmente alocando os colegas mais ligados a esse antigo regime a funções essenciais mas distantes dos mais exaltados.

Muitos anos depois, apreciei muito a série televisiva "Un village français"), que evocava as histórias mais dramáticas e sangrentas do período da segunda guerra mundial, mas em que predominava a vontade de ultrapassar as diferenças e de poder contar com todos em paz.

Foi o que tentámos e talvez o tenhamos conseguido.

Silveira Cavaleiro tinha tido um cargo importante numa organização do antigo regime e desde sempre demonstrara nas suas funções operacionais no metropolitano a eficácia e a meticulosidade que honravam o serviço público. Foi poupado ao confronto direto com os mais contestatários e aproveitadas as suas qualidades num escalão superior  administrativo da empresa. Sem prejuízo de, nas reuniões de coordenação interdisciplinares (era, na altura havia uma conceção horizontal, de interação entre orgãos de responsabilidades distintas, bem longe do que se evoluiu depois para a conceção atual  vertical e "top-down" que afasta quem trabalha em disciplinas diferentes, não honrando em consequência o serviço público).

Nos breves momentos ditos de aquecimento, antes do começo da reunião de coordenação de objetivos pluridisciplinares, enquanto não chegavam os retardatários, lamentava os avanços revolucionários, enquanto eu tentava tranquilizá-lo, que já tinha saído a Constituição, e que os partidos não estavam a fazer nada de ilegal, até os militantes do partido comunista apelavam aos trabalhadores agrícolas para não ocuparem nada sem o conhecimentos dos parlamentares, e que a Constituição ainda podia ser mudada, mas enquanto não fosse... Mas ele exaltava-se e eu, apesar de mais novo, lá o convencia a  dar início à reunião. 

O facto é que eu me dava muito melhor a trabalhar com ele do que com alguns colegas progressistas, mas de difícil concentração nos objetivos técnicos acordados com a empresa. Num belo dia, com ar desanimado e desesperançoso,  Silveira Cavaleiro confidenciou-me que um familiar tinha ido ao Alentejo, que tinha visto muitas movimentações por essas herdades fora, e que à beira da estrada tinha visto travessas da companhia das Índias a serem vendidas ao desbarato, fruto da pilhagem das casas dos proprietários das herdades ocupadas.

Embora também tivesse dado umas voltas pelo Alentejo e visto algumas movimentações, a verdade é que eu nunca tinha visto travessas da companhia das Índias à venda à beira da estrada, mas também por elementar evocação do método científico não podia dizer que não tinham sido vendidas aqui ou ali, pelo simples facto de eu não ser omnisciente. Por isso aceitei o testemunho e tive o prazer de ainda por muitos anos ter colaborado com Silveira Cavaleiro, esfumadas as ilusões de se poder fazer uma reforma agrária. É possível, e devíamos institucionalizá-lo, trabalhar em conjunto quaisquer que sejam as ideias económico-políticas de cada um.

E eis que, passados 48 anos, leio no meu jornal a entrevista de um jovem militante do MDLP nos anos "quentes" e agora ideólogo de um partido com algum sucesso nas eleições de janeiro de 2022, não necessariamente pelas melhores razões. E eis que, percorrendo algo penosamente os primeiros parágrafos, com protestos do entrevistado de que nunca tinha posto bombas nem sabia de quem o tivesse feito, leio que a entrevistadora recorda a confissão não do entrevistado, mas do comandante Alpoim Galvão , cujas ações me abstenho de classificar. E eis que, leio melhor e vejo esta frase deliciosa de como viviam em Madrid, quando lá exilados nos anos "quentes" para se prepararem para "combater o comunismo": 

"No início, viviam com o apoio de empresários e das receitas das vendas de serviços de loiça da Companhia das Índias e outros bens fáceis de transportar".

Extraordinário, finalmente esclarecido o mistério e o encaminhamento das travessas da companhia das Índias, e talvez de outros bens extraviados das mansões alentejanas. Ou de como o melhor acusador é aquele que pratica aquilo de que acusa o outro, porque sabe como funcionam as coisas em causa. Não acusemos nem menosprezemos o outro, não "joguem pedra na Geni".


fonte:  https://www.publico.pt/2022/02/27/politica/perfil/diogo-pacheco-amorim-deputado-traz-fantasmas-ditadura-1996811




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