segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Comentário a uma afirmação de Fernando Alexandre, da CTI para o novo aeroporto, em maio de 2023

 

Os comboios não servem para atravessar os Pirineus

https://www.rtp.pt/play/p11163/e690725/e-ou-nao-e-o-grande-debate

 

Faço um pequeno comentário às palavras do economista Fernando Alexandre, pedindo desculpa por não juntar as ligações para os fundamentos do meu comentário, o que talvez faça noutra oportunidade se tiver tempo e paciência.

1 – À primeira impressão, a frase “os comboios não servem para atravessar os Pirineus” poderia constituir uma afirmação do tipo do jovem que chega a uma empresa e acha que os mais velhos são todos os incapazes de inovar e enfrentar os desafios do futuro. Repare-se no ar de superioridade intelectual com que diz que “há pessoas que dizem isso”. De facto Fernando Alexandre é jovem, mas não devemos retirar as frases do contexto e, como ele explicou, o contexto em que se move é o de ser “essencial aumentar a conetividade do nosso país periférico,  concentrando-nos na dimensão atlântica”.

Nesta perspetiva, F.Alexandre tem razão, não há comboios de Lisboa para o Funchal, não é rentável uma ponte nem um túnel para a Madeira. Mas também podemos dizer que há cadeias de transporte intermodal que ligam portos noruegueses ou portos irlandeses a outros portos da Europa central onde camiões ou semirreboques que foram transportados por barco são transferidos para comboios de longa distancia  e é ver as sucessivas críticas do ECA – European Court of Auditors à insuficiência de investimentos pelos Estados membros da União na sua rede única ferroviária

2 – O entusiasmo de F.Alexandre terá também que ver com a sua formação. Normalmente os economistas esquecem alguns princípios básicos da Física que lhes foram ensinados na formação secundária, por exemplo, o cálculo da energia necessária para mover um veículo carregado de mercadorias. Simplificando, se queremos longas distancias, a prioridade é o marítimo, depois ferroviário, rodoviário e por último o aéreo, este devido à sua velocidade (a resistência ao movimento aumenta com o quadrado da velocidade) e aos custos da elevação da carga em altitude. A energia necessária para transportar uma tonelada de carga útil por km pode, no avião, ser 30 vezes maior do que por barco ou comboio. E é exatamente no inconveniente  do modo aéreo que está a sua vantagem, a rapidez, ideal para os bens perecíveis. Mas para isso também o modo marítimo e o ferroviário/rodoviário desenvolveram o transporte refrigerado e os  contentores refrigerados. Talvez F.Alexandre não tenha tido informação sobre os serviços refrigerados desde os campos da comunidade valenciana para Barking no UK ou para Betembourg no Luxemburgo, por comboio, através dos Pirineus … nem, no caso dos passageiros, talvez por este vídeo datar de maio de 2023 quando os serviços de Madrid e de Barcelona para Marselha e Lyon só arrancaram em julho de 2023 através dos Pirinéus. Os comboios e os carris não são um capricho num investimento elevado, a ideia é apenas usufruir de um transporte mais eficiente energeticamente, porque, como se ensina nas aulas de Física do ensino secundário, a resistência ao movimento da roda de ferro contra o carril é menor do que a do pneu contra o asfalto.

3 -  Evidentemente que o transporte aéreo de carga deve crescer nos segmentos para que é vocacionado, e tanto o relatório da CTI como a maioria das participações saúdam por exemplo o desenvolvimento da carga aérea no aeroporto de Beja e o que for possível no AHD. Aceita-se o objetivo de concentrar esforços na dimensão atlântica, mas não deverá esquecer-se o resto e a sua  contribuição para a economia nacional. Objetivamente a quota de repartição modal das exportações portuguesas para o mundo, foi em 2022:

por todos os modos   78.220 M€                  (39,50 Mton) 

por modo aéreo            5.033 M€ ou 6,43%  (1,39 Mton)

por modo marítimo   23.755 M€                   (18,47 Mton)

por modo rodo            45.696 M€                  (17,76 Mton)

por modo ferro                593 M€                   (  0,16 Mton)                          fonte - INE

 

Ter presente que o volume total de carga aérea no planeta, por todos os países, estima-se em 61 milhões de toneladas em 2023 (0,25% em 2015).

4 – F.Alexandre referiu que cerca de 76% das exportações portuguesas são para a União Europeia. Por seu lado o apresentador do programa afirmou  que o turismo contribui com 18% para o PIB e que Lisboa contribui com 35% para o PIB nacional. É sempre difícil fixar este tipo de valores, mas supondo que as exportações correspondiam a bens, o INE informa que de janeiro a outubro de 2023 as exportações de bens para  a EU relativamente ao total foram 66,7% em peso e 70,5% em valor, o que para quem defende os modos aéreo e ferroviário reforça a ideia de que têm de ser desenvolvidos. Para o PIB da Área Metropolitana de Lisboa, o INE indica, para 2021,  35,6% do PIB nacional, muito próximo do valor no programa. Quanto às viagens e turismo, segundo o BP o seu valor em 2022 foi de 21.141 M€, o que representará 8,7% para um PIB de 242.300 milhões. Não pretendo com isto desvalorizar a contribuição do turismo e muito menos contrariar os objetivos de construção faseada de novo aeroporto nem a disponibilização de slots no AHD corrigindo as deficiências operacionais do aeroporto com a execução das obras previstas no anexo 9 e que incluam o taxiway na sua máxima extensão no lado norte e nascente da pista (as previstas obras de ampliação do pier 1 com construção de 11 mangas facilitam a operação mas não aumentam a capacidade). Além de permitir o aumento da capacidade evitando o cruzamento da pista pelos widebodies, permite o alívio do ruído devido a descolagens mais cedo quando vento de sudoeste (observo ainda que o incidente grave referido no video por Fátima Vivian se deveu à inscrição pelo copiloto da extremidade norte da pista 20 como ponto de partida  quando o avião se encontrava no ponto de interseção da antiga 17/35 com a pista principal, reduzindo assim o comprimento da corrida e descolando com passagem na avenida do Brasil a pouco mais de 10 m de altura.

5 – os números das exportações indicados em 3 devem ser completados com o volume de exportações por modos rodo (maioritário) e ferroviário (irrelevante) para a Europa além Pirinéus e para Espanha para se entender a necessidade de concentração nos mercados da Europa além Pirinéus e da transferência da carga rodo para a ferrovia, numa primeira fase através do transporte de camiões, semirreboques ou caixas móveis por comboio segundo a norma de gabari P400 , e logo depois com a disponibilização das ligações por Salamanca e Badajoz na fronteira luso espanhola e por Irun e Figueres na fronteira hispano-francesa, segundo as normas de interoperabilidade definidas no regulamento 1315 e substituto, incluindo bitola UIC e sistema ERTMS, para passageiros e mercadorias. Considerando o estado de atraso nestas ligações e o demorado tempo de execução que compromete o objetivo regulamentar 2030 (2040 para o objetivo Porto-Vigo), é premente desbloquear o avanço do planeamento e arranque das obras. As afirmações de F.Alexandre sobre a travessia dos Pirinéus por comboios não parecem compatíveis com estes objetivos comunitários de integração na rede única ferroviária europeia.

exportações por modos terrestres em 2022:

para Espanha                   16.882 M€     e    11,35 Mton

para o resto da União     25.767 M€     e      5,93 Mton





PS em 19dez2023 - Através dum press release do Conselho Europeu de 18dez2023 temos notícia que, graças à presidencia espanhola, foi obtido um acordo com o Parlamento Europeu para a próxima aprovação da revisão e substituição do regulamento TEN-T  1315/2013, incluindo as ligações ferroviárias entre Espanha e França e com a preocupação de que se possa circular na rede única ferroviária europeia em bitola UIC e ERTMS nos prazos 2030 (rede básica), 2040 (básica ampliada) e 2050 (global). Esperemos que a rejeição de muitos aos objetivos das redes TEN-T se vá esbatendo.

Trans-European transport network (TEN-T): Council and Parliament strike a deal to ensure sustainable connectivity in Europe - Consilium (europa.eu)

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