Há alguns anos houve uma série satírica na televisão em que Armando Cortês e Francisco Nicholson interpretaram bem a tendencia portuguesa na organização do trabalho de uma equipa e no planeamento dos objetivos. Cada episódio da série relatava sucessivamente as reuniões da comissão de festas de uma povoação do interior. Francisco Nicholson era o coordenador e esforçava-se por arranjar trabalho concreto para cada participante em função do objetivo final. Armando Cortês deixava-se ficar a observar para no fim sentenciar "o que era bom era que a televisão transmitisse". Todos sabemos criticar e temos uma vaga ideia do que seria bom, mas não sabemos responder concretamente. Que a televisão transmitisse seria bom, mas o quê? se o pobre Nicholson não conseguia organizar o plano de ação para os seus colaboradores.
Lembrei-me de escrever isto depois de ler numa carta ao diretor do meu jornal o desabafo de um cidadão recordando a capacidade organizativa das instituições no tempo em que, antes de 25 de abril, se planearam grandes investimentos como Sines e Alqueva, contrastando com a desorganização em termos de planeamento que se foi agravando com a democracia https://www.publico.pt/2023/12/10/opiniao/opiniao/cartas-director-2073092
De facto, ficou nos anais da incapacidade e insensibilidade dos nossos decisores o caso da regularização do baixo Mondego. Pouco depois do 25 de abril o consórcio alemão que tinha concluído a obra convidou o respetivo ministro para a cerimónia de inauguração. A primeira reação do ministro foi de indignação e de proibição de qualquer obra do género porque não tinha autorizado a realização de nada. Há registos do tempo de D.Maria I, antes de ter ensandecido, relatando os graves inconvenientes das cheias do Mondego, mas o ministro permitiu-se reagir assim. E ainda hoje, apesar do espelho de água onde, ao largo de Montemor o Velho, canoístas treinam para os seus sucessos internacionais, estão por realizar obras de regularização de caudais , por exemplo nos rios Ceira e Arunca, e de vez em quando há cortes da linha do Norte por abatimento ou submersão do leito de via.
Também me levou a escrever isto a notícia recente de mais adiamentos das datas objetivo dos grandes investimentos na ferrovia https://www.dn.pt/dinheiro/cascais-vai-esperar-quase-10-anos-para-se-ligar-a-gare-do-oriente-17473417.html
São razoáveis os motivos invocados, desde a carência de recursos humanos e materiais para a elaboração dos projetos e controle dos concursos subsequentes, até às condições internacionais desfavoráveis. Mas isso não impede que uma das principais causas da falta de controle sobre o planeamento seja justamente a incapacidade organizativa ilustrada por Armando Cortês e Francisco Nicholson.
Outra história ilustrativa deste problema, mais concretamente de que a equipa que tem um projeto a seu cargo tem de saber quantificar as variáveis envolvidas, passou-se comigo, há muitos anos, quando, jovem, tive de organizar uma festa de jovens e achei que o amplificador de som de 2W, numa montagem experimental era suficiente para o baile. Claro que não era, para organizar qualquer coisa é preciso conhecer um mínimo das especificações necessárias para o equipamento, especialmente se, como naquele tempo, não havia grande oferta de equipamento.
Quer seja uma instalação sonora quer seja uma linha ferroviária de alta velocidade, quer seja um aeroporto, é necessário conhecer a tecnologia disponível. Como não podemos exigir aos decisores institucionais esse conhecimento, são necessários procedimentos participativos que incluam quem o tenha. E não é um técnico "especialista", do conhecimento pessoal do decisor institucional que deve decidir soprando ao ouvido do decisor qualquer ideia feita.
Infelizmente, confirmando a análise negativa do leitor referida acima, ao longo do processo de democratização do país fomos observando o assalto aos lugares de decisão, nos governos, nos reguladores e na administração das empresas públicas de transportes, de políticos sem formação técnica, o que é desculpável, ou de técnicos hipotecados a soluções tradicionais, nos dois casos como critério principal a pertença aos partidos do poder, mas sem sensibilidade para dinamizar um grupo de técnicos aberto a soluções associadas ao futuro e às diretivas da Comissão Europeia, com honrosas e poucas exceções.
Com algumas limitações, é possível dizer que o processo adotado para a Comissão Técnica Independente para o estudo da localização do novo aeroporto foi um bom método. Talvez os decisores institucionais aceitem que o método, se possível melhorado com o processo participativo mais alargado (com webinars, por exemplo, com apresentação pelos técnicos da comissão e discussão progressiva com os interessados dos estudos em execução) seja aplicado à questão da ferrovia.
Parece importante fazê-lo, numa altura em que foi anunciado o adiamento dos investimentos na ferrovia acima referido.
A coordenação de investimentos em infraestruturas exige a reunião periódica dos técnicos de todas as especialidades envolvidas, sem exceções porque um pequeno pormenor de uma especialidade pode interferir ou sofrer interferências que afetem o desenvolvimento do investimento. A gestão das reuniões deverá ser dual, por um lado um coordenador que domine minimamente as questões técnicas e por outro um especialista de planeamento utilizando por exemplo os programas Microsoft Project e Teams. Avaliado o ponto de situação de cada especialidade, é necessário distribuir por todos os participantes esse ponto de situação, o que cada um deve fazer e o prazo para o fazer.
Infelizmente, os decisores institucionais, nos ministérios da tutela, nos reguladores ou nas administrações das empresas, acham-se no direito de interferir e de "dar instruções" independentemente dos coordenadores. É uma receita para o desastre, para a perda do controle sobre o desenvolvimento do investimento, quer se trate da "modernização" da linha da Beira Alta, quer se trate da linha nova Porto-Lisboa. A evolução da obra deveria ser periodicamente apresentada em seminários ou webinars com a divisão da assistência ou dos participantes em grupos de discussão com coordenadores previamente escolhidos para apresentação e integração das conclusões de cada grupo. São métodos conhecidos, não é preciso inventar.
Tomemos o exemplo da linha de Alta Velocidade Porto-Lisboa. Durante anos a sociedade civil tentou mostrar aos decisores institucionais (secretaria de Estado, IP) , nomeadamente através de entrevistas na comunicação social e em conferências na Ordem dos Engenheiros (fev2018, set2023), na participação nas consultas do PRR (fev2021) e do PFN (jul2021), no congresso no LNEC do CRP (jul2022), a imperiosidade de compatibilizar a estratégia ferroviária nacional com a regulamentação vinculativa europeia. Quanto mais não fosse, para até 2030 criar condições de estímulo das exportações para a Europa além Pirineus, através da transferência de carga rodoviária para a ferrovia (por contentores ou por transporte de semirreboques por comboio).
Foi inútil, os decisores preferiram pressionar a DG MOVE para concessão de adiamentos ou de isenções de cumprimento da construção em bitola europeia, por exemplo (desconhece-se como pensam resolver a questão do ERTMS se o STM falhar). Chegou-se ao ponto de eurodeputados portugueses questionarem a comissária dos Transportes sobre a viabilidade de financiamento pelo CEF no caso de incumprimento da bitola.
A comissária respondeu que nada a objetar que a linha fosse construída em bitola ibérica, desde que em 2030, conforme o regulamento 1315 e a sua proposta de substituição ainda em fase de aprovação, mudasse na linha a bitola de ibérica para europeia. Só que nessa altura o planeamento oficial dava Porto-Soure em 2028 e Soure-Carregado em 2030, com a ligação a Lisboa a fazer-se pela quadruplicação da linha Alverca-Castanheira do Ribatejo, prevista então para 2025, e os prazos comunicados em 9dez2023 foram 2030 para Porto-Soure e quadruplicação da linha, e sem data para Soure-Carregado e, por maioria de razão sem data para Carregado-Lisboa nem decisão se pela margem direita se pela margem esquerda (neste caso com penalização do comprimento do percurso Porto-Lisboa de mais de 50 km e do seu tempo em mais de 20 minutos).
Isto é, entra-se em pleno incumprimento do regulamento criando-se a situação de conflito de terminar a linha em bitola ibérica depois da obrigatoriedade de a ter em bitola europeia em 2030 e de se decidir a bitola ibérica antes da entrada em vigor do regulamento que substitui o 1315 https://1drv.ms/p/s!Al9_rthOlbwex3pJGwtVk1FU7SUH?e=mL3seL
Ao contrário do 1315, a proposta de alteração determina que qualquer linha nova integrada na rede TEN-T possa ser em bitola ibérica se já autorizado pelo Estado membro depois da entrada em vigor do regulamento alterado. Mas a proposta de alteração não foi ainda aprovada pelo Parlamento europeu e o que o 1315 diz é que linhas novas é bitola europeia. A menos que se faça vingar a nova cláusula das isenções temporárias, como consta da resposta da comissária (ver as ligações no powerpoint acima).
Receia-se também por isso pelo financiamento através de candidatura ao CEF até ao fim de jan2024, a qual deverá ser acompanhada de uma análise de custos benefícios que julgo, se considerar as mais valias da transferência da carga rodoviária exportada e da maior eficiência energética para passageiros na linha Porto-Lisboa-Madrid será positiva em termos económicos de VAL (valor atual líquido) e de TIR (taxa interna de rentabilidade).
Em resumo, em vez de aderir às redes transeuropeias, os decisores preferem jogos de bastidores e decisões políticas sobrepostas aos estudos técnicos. Não posso concordar, como técnico e como cidadão. Fontes Pereira de Melo também não tinha dinheiro para pagar a pronto a sua rede ferroviária.
Ressalva (disclaimer) 1 - uma leitura apressada do que escrevi poderia induzir a conclusão de que violei o princípio deontológico de respeitar o trabalho dos colegas, chamando-lhes incompetentes. Serve esta ressalva para afirmar claramente que não é assim. O que critiquei foi a submissão dos critérios técnicos aos critérios partidários, e a submissão das propostas técnicas ao critério de exclusividade da rede de bitola ibérica, em vez de cumprir o regulamento 1315 e substituto, e os planos de financiamento comunitários. Não tem que ver com a competência técnica de cada um.
Ressalva 2 - a inclusão da ligação para o DN de adiamento dos investimentos com o título "Cascais vai ter de esperar quase dez anos para se ligar à gare do Oriente" não significa concordância com essa ligação à linha de cintura. Não se contesta a fiabilidade dessa ligação, inspirada no conceito de ligações diametrais nas redes de Paris, Londres e Moscovo que seduziu os autores do PFN no capítulo das áreas metropolitanas, apenas se contesta dar-se prioridade a esse conceito quando ainda falta fazer tanto nas redes metropolitanas e, neste caso concreto de elevada complexidade e custo de construção devido à natureza dos terrenos e à proximidade do caneiro de Alcântara. A linha de Cascais tem caraterísticas de metropolitano, e deveria ser integrada num plano abrangente da expansão da rede de metropolitano do PROTAML.
Informação da IP em:
artigo de Pedro Norton
https://www.publico.pt/2023/12/12/opiniao/opiniao/decidir-democracia-2073291
artigo de Ricardo Pais Mamede
https://www.publico.pt/2023/12/18/economia/opiniao/portugal-estrategia-economica-so-nao-sabemos-funciona-2074013
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