quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A argumentação do secretário de Estado das infraestruturas sobre a ferrovia

 Um dos resultados das peripécias que conduziram à entrada em gestão do XXIII governo e à dissolução da AR foi a subida do secretário de Estado a figura principal nos processos em curso no ministério das infraestruturas, dada a coincidência da titularidade do ministro das infraestruturas com a de primeiro ministro e a manifesta pouca apetência deste para o planeamento dos transportes (por, a propósito de sucessivas cimeiras luso-espanholas, ir anunciando sucessivas datas para se começar a pensar na rede de alta velocidade, apesar de se saber que o período entre a decisão e a entrada em exploração pode ser de 10 anos).

Tem assim o secretário de Estado aparecido recorrentemente nos meios de comunicação social, ora defendendo o PFN (Plano  ferroviário nacional), ora colaborando com o vice presidente da IP na apresentação pública e na argumentação contra os críticos do processo da linha de alta velocidade Porto-Lisboa. 

O discurso na sessão da apresentação pública do concurso do troço Porto-Oiã contem a principal argumentação do secretário de Estado contra os proponentes do cumprimento da regulamentação comunitária, que é vinculativa para os estados membros, e que para Portugal prevê a linha Porto-Lisboa integrada nas redes transeuropeias de transporte com os padrões de interoperabilidade até 2030              ( ver  https://www.noticiasaominuto.com/economia/2479136/mudanca-de-bitola-argumentos-assentam-em-equivocos-diz-sec-de-estado  ).

O padrão de interoperabilidade mais notório tem sido a bitola (distancia entre carris: ibérica 1668mm, europeia, padrão ou UIC 1435mm) . Outro padrão mas que não é muito falado é o do sistema de controle da velocidade e da sinalização, o ERTMS ou European railway traffic management system,  que não é compatível com o sistema da IP, o CONVEL, cuja desativação é exigida pela Comissão europeia até 2040, encontrando-se em desenvolvimento um módulo de interligação CONVEL-ERTMS, mas sem se conhecer a data de conclusão dos ensaios, sem a qual as novas locomotivas da MEDWAY  e da Captrain não poderão circular em Portugal.

A intervenção do secretário de Estado aqui comentada subordina-se ao tema "Os argumentos para a mudança de bitola assentam em 3 equívocos".

Antes de comentar os 3 equívocos, apresentando primeiro cada um dos correspondentes argumentos do secretário de Estado, esclareço que não se pretende mudar nem "migrar" a bitola. Pretende-se que nas linhas novas a integrar nas redes TEN-T elas sejam de raiz em bitola 1435mm para cumprir os regulamentos comunitários e para evitar os inconvenientes de perturbação da exploração na posterior mudança de 1668mm para 1435mm. O governo e a IP argumentam, para fugir ao cumprimento dos regulamentos, que têm negociado com a Comissão europeia sucessivas isenções em determinadas condições que lhes permitem ir mantendo a bitola 1668mm.

Tendo o secretário de Estado dito que não se deve perder mais tempo com esta polémica, peço desculpa por insistir nela precisamente porque o senhor secretário é diferente dos seus antecessores, tem uma formação técnica e uma capacidade tecnico-profissional que o habilitam a aprofundar a natureza técnica do problema, que não se resume à escolha de uma bitola, mas ao conjunto do sistema ferroviário nacional, a sua compatibilização com Espanha e a sua integração na Europa. Tal conjunto de questões, pela sua natureza e complexidade, impõe a aplicação do conceito de normalização e dos seus padrões. A normalização é um dos primeiros ensinamentos nas escolas de engenharia, não é evidentemente acrítica (encontradas deficiências ou evoluindo a tecnologia a comunidade tecnico-científica produz nova norma) e não se compadece com pedidos sistemáticos de isenções. A regulamentação comunitária relativa aos processos de financiamento limita-os em caso de não cumprimento por comparação do mérito do projeto em comparação com os projetos dos outros Estados membros.

Equívoco 1 - "Não é verdade que a bitola ibérica seja o principal obstáculo ao transporte de mercadorias entre Portugal e o resto da Europa porque o problema é de capacidade, não de bitola."

Posto assim o problema, concordamos em termos lógicos. Mas fisicamente, a capacidade de um modo de transporte  depende da capacidade do veículo e da velocidade de escoamento dos veículos. Ora, a mudança de bitola na fronteira (e o regulamento insiste em que numa passagem por uma fronteira o comboio de mercadorias não deve demorar mais de 15 minutos) ou o transbordo com guindaste móvel (reach stacker) introduzem um atraso estimado em 6 horas e dificuldades de coordenação dos canais do outro lado da fronteira. 

Sobre a mudança de bitola, ela pode ser feita com mudança de bogies ou de rodados ou ainda com a  tecnologia de eixos variáveis com intercambiadores já disponíveis para mercadorias (inconvenientes dos eixos variáveis: mais caros, dificuldades  se avaria longe da manutenção). Desde a publicação do "Manifesto Portugal uma ilha ferroviária?" em 2017, que a IP nos vem dizendo que a bitola não é um problema, mas perante a hipótese de um troço da linha de alta velocidade Porto-Lisboa em bitola 1435mm e a necessidade de concluir a viagem pela linha existente de bitola ibérica, diz agora que é um problema. Concordamos, mais uma razão para construir rapidamente toda a linha.

Como afirmou publicamente o presidente da MEDWAY, por quem temos consideração apesar de nos considerar ignorantes do mercado, é incomportável na fronteira processar o transbordo de mais de 2 comboios por dia. Daí o objetivo de ter a bitola 1435mm em 2025 desde Hendaye (França) até à plataforma logística de Vitoria onde se faria o transbordo sem problemas de sincronização com o segundo comboio, mas com os respetivos custos e a penalização do tempo de transbordo, sendo o tempo total do transporte inversamente proporcional à capacidade do modo de transporte.

Mas concordamos, atualmente não há capacidade para assegurar por modo ferroviário as exportações para além dos Pirineus. Por modos terrestres foi exportado para o resto da Europa além Espanha em 2022   6,37Mton no valor 28951M€, enquanto em percentagem da totalidade de importações e exportações para Espanha  foi, por modos terrestres, de 67,24% em peso e 40, 67% em valor relativamente à totalidade de importações e exportações para toda a Europa.

 É necessário planear novos troços de alta velocidade para tráfego misto (isto é, a integração dos novos troços das mercadorias nos corredores internacionais TEN-T, mais uma exigencia regulamentar da Comissão europeia ao arrepio da orientação do PFN para a exclusividade da linha Porto-Lisboa para passageiros) em Portugal e em Espanha para ser possível a transferencia da carga rodoviária para a ferrovia (já devia ter sido lançado um plano para o transporte de semirreboques por comboio).

E também concordamos que não vale a pena perder muito tempo com esta polémica quando desde 2015 que a IP tem o estudo do agrupamento europeu de interesse económico do corredor ferroviário de mercadorias CFM4 ou RFC4 (que gere a operação do corredor atlântico de mercadorias sendo composto por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB)  que  avaliou o peso dos padrões da interoperabilidade na redução de custos do transporte de mercadorias entre Leixões e Madrid e entre Leixões e Paris nos troços em que estivessem em falta. A viabilização dos comboios de 740m induziria uma economia de 12% e 13%, mas a bitola 1435mm que para Leixões-Madrid seria 0, para Leixões-Paris seria 6%, isto é, superior à economia devida à normalização dos 25kVAC (2%). Isto é, a utilização de bitola 1435mm é, numa lógica matemática ou física, um fator competitivo, não o principal, mas importante. Note-se que são custos de operação, não de investimento.


Equívoco 2 - "Também não é verdade que existam planos do lado de Espanha para fazer a migração para a bitola 1435mm. Espanha tem um conjunto pequeno de linhas em bitola europeia, todas elas de alta velocidade, apontadas mais a França do que a Portugal. Do ponto de vista do transporte de mercadorias, a quase totalidade em Espanha continuará a ser feita em bitola ibérica durante pelo menos as próximas duas décadas"

Para debater este tema deverá ter-se presente que foi o governo português em 2012 que desistiu do projeto Poceirão-Caia em bitola 1435mm integrado na linha Lisboa-Madrid acordada na cimeira da Figueira da Foz em 2003, não foi o governo espanhol. No seguimento dessa decisão foi dada prioridade em Espanha à rede de alta velocidade para passageiros em bitola 1435mm que atinge 3000 km neste momento, e ao Y basco e ao corredor mediterrânico para tráfego misto também em bitola 1435mm com previsão de entrada em exploração do troço França-Barcelona-Valencia em 2025 e de Valencia-Algeciras em 2030.

Consultando os sites da ADIF e do MITMA (ministério dos transportes espanhol) comprova-se que afinal existem planos para o crescimento da rede 1435mm para os referidos Y basco e o corredor mediterrânico e também para o corredor atlântico. Para o corredor atlântico o comissário para a gestão da sua construção, nomeado pelo MITMA  em janeiro de 2023, declarou que conta com um orçamento de 16.000 milhões de euros manifestando ao mesmo tempo preocupação que  no próximo campeonato mundial de futebol, em Portugal e Espanha, a linha de alta velocidade interoperável Lisboa-Madrid não esteja completamente operacional (ver minutos 21 a 23 em  https://www.youtube.com/watch?v=Kz955UNXnL8 ).

Concordamos com o secretário de Estado que as linhas de alta velocidade de bitola 1435mm estão viradas a Espanha, assim o comprovam as novas ligações Madrid-Lyon e Barcelona-Marselha. Enquanto as ligações de mercadorias através da fronteira franco-espanhola pelo túnel El Perthus têm de esperar pelo prolongamento do corredor mediterrânico até Valencia para ultrapassar o volume de tráfego atual: 28 serviços semanais por sentido para passageiros e 21 serviços semanais por sentido para mercadorias, estimando-se a capacidade do túnel em 50 comboios por dia e sentido (ver o site do gestor do túnel LFP
https://www.lfpperthus.com/servicios-comerciales#single/0 ).

Destacam-se os 5 serviços de ida e volta semanais do operador VIIA (grupo SNCF) de transporte de semirreboques por comboio entre o porto de Can Tunis/Barcelona e Bettembourg/Luxemburgo para sublinhar a urgência de preparar em Portugal esse tipo de transporte de modo a viabilizar a transferência para a ferrovia da carga rodoviária de exportação para a Europa além Pirineus (6,37 Mton segundo o INE no ano de 2022). 

Sublinha-se ainda a urgência de um plano coordenado entre Portugal e Espanha para a aproximação progressiva da bitola 1435mm dos portos nacionais, até porque é longo o prazo para elaboração dos projetos, obtenção do financiamento, concurso, construção e colocação em serviço. 

Sugestão de planeamento coordenado com Espanha para aproximação progressiva desde a fronteira francesa da bitola 1435mm até aos portos nacionais


Equívoco 3 - "O argumento de que a atual bitola constitui um obstáculo à concorrência está desfeito a partir do momento em que todos os grandes operadores europeus já atuam na Península Ibérica".

Passageiros: É conhecida a presença na rede de alta velocidade de passageiros espanhola, para além da RENFE, de grandes operadores europeus como a Ouigo/SNCF ou a Iryo/Trenitalia, mas que operam nas ligações para cidades como Alicante e Murcia mas apenas em bitola 1435mm. Mesmo após a conclusão do troço de alta velocidade Évora-Caia, em bitola ibérica, estes operadores não poderiam atingir Lisboa devido à bitola e à ausência do ERTMS. A RENFE disporá de 14 comboios S-730 de eixos variáveis e híbridos e 30 comboios S-130 de eixos variáveis para explorar a linha da Estremadura, pelo que seria possível  destinar dois  S-730  para 1 comboio por dia e sentido na ligação Madrid-Lisboa (se no troço até Lisboa fosse instalado o equipamento de via ERTMS, uma vez que não será expetável que se instale o equipamento CONVEL ou STM a bordo dos comboios espanhois) . 

Mercadorias: desconhece-se a presença de grandes operadores nos serviços de mercadorias na rede de bitola ibérica para além da MEDWAY/MSC e da Captrain/SNCF. Ser diferente a bitola ibérica da rede de 11.000 km espanhola  relativamente à rede europeia significa que na península ibérica o mercado é assimétrico, isto é, coloca os operadores europeus que não tenham adquirido empresas locais (como o fez a MEDWAY comprando a CP Carga ou a Captrain comprando a Takargo) em situação de desigualdade, contrariando assim o princípio da concorrência e suscitando a concentração como comprova a aproximação entre a MEDWAY  e a RENFE Mercancias (previamente 67% da quota do mercado espanhol).

Conforme reconhece o próprio MITMA, a baixa quota modal do transporte de mercadorias em Espanha (4%) tem como causas a demografia e a desadequação da rede de bitola ibérica, com troços de via única sem cruzamentos para comboios de 740m, não eletrificados, não equipados com ERTMS, sem terminais intermodais eficientes, sem caraterísticas de atração dos operadores estrangeiros como a DB Cargo, cujo grupo integra a Transfesa,  reconhece no seu site  ( ver https://network.dbcargo.com/network-en ) :  "With the expansion of the european standard gauge to Barcelona, it is no longer necessary to change axles at the spanish border. In this way, trains can travel directly to the mediterranean metropolis and easily reach the only spanish port facility in the standard gauge network"  o que implica, enquanto a bitola 1435mm não for prolongada até Valencia, a necessidade de transporte para "various spanish economic centers by means of reloading, axle relocation or truck on-carriage".

Em resumo, não parece desfeito o argumento, a bitola não é o único obstáculo, mas é um obstáculo. 

Para sairmos desta situação e aumentar a quota modal da ferrovia, é essencial espanhois e portugueses desenvolverem em sintonia com o regulamento TEN-T e de forma coordenada o plano referido acima de aproximação da bitola 1435mm dos portos atlânticos, revendo simultaneamente o PFN para assumir o que está inscrito no próprio PFN: "A criação de ligações ferroviárias em bitola padrão (1435 mm) teria inegáveis vantagens no transporte de mercadorias internacional de longa distância, contribuindo para melhorar a competitividade das exportações portuguesas".


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