quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Comentário à entrevista de Carlos Vasconcelos na revista Negócios e empresas de dez2023 da Associação Industrial Portuguesa

 

Comentário à entrevista de Carlos Vasconcelos na revista Negócios e empresas de dez2023 da Associação Industrial Portuguesa  (  ver  https://heyzine.com/flip-book/73ab3a95a2.html#page/7   )

 

  

O presidente da MEDWAY é um excelente gestor do operador de mercadorias pela ferrovia estando a ganhar quota de mercado na península ibérica. Nesta entrevista analisa os fatores que dificultam o crescimento do negócio, desde o estado de degradação e obsolescência das redes à desigualdade de tratamento em relação ao transporte rodoviário.

Partilhamos da validade dessas queixas. É inadmissível, especialmente se lembrarmos os protestos sistemáticos dos governos português e espanhol de promover a descarbonização.

Mas continuamos a discordar de Carlos Vasconcelos sobre o cumprimento da regulamentação comunitária das redes TEN-T com todos os requisitos da interoperabilidade (25kVAC, pendentes máximas 1,2%, cruzamento de comboios de 740m, controle de velocidade e sinalização ERTMS, bitola UIC 1435mm) a incluir nas novas linhas para tráfego misto (alta velocidade e mercadorias) com ligação à Europa além Pirineus.

Temos objetivos comuns, o desenvolvimento da economia, não só através do crescimento da quota modal nas redes de Portugal e Espanha, mas também do crescimento das exportações para além de Espanha.

Seria pois vantajosa uma frente comum que reivindicasse dos dois governos a elaboração e a execução coordenada de um plano com fases bem definidas no tempo e na exigência de financiamento (parte da União Europeia a fundo perdido), plano esse com sucessivas aproximações aos portos nacionais das novas linhas do corredor atlântico com todos os componentes da interoperabilidade, incluindo a bitola 1435mm.   Esse é aliás o procedimento seguido em Espanha especialmente no corredor mediterrânico,  em que a associação de empresários de Valencia dinamizou um movimento reivindicativo da aceleração das obras do corredor em bitola 1435mmm prevendo-se a chegada desta a Valencia em 2025.

Apresentam-se a seguir os comentários aos argumentos utilizados na entrevista por Carlos Vasconcelos, começando-se por resumir cada um deles, seguindo-se a nossa contra-argumentação.

1 – “As redes de Portugal e Espanha  têm a mesma bitola ibérica de 1668mm e a quota modal é de cerca de 6% [1]  , logo a bitola normalizada não é um fator de competitividade por não contribuir para o aumento da quota”.

Perdoará o Dr Carlos Vasconcelos a nossa dificuldade em aceitar uma lógica que nos parece longe da Física ou da Matemática em termos de correlação de causa e efeito. Recupero um estudo de 2015 promovido pelo agrupamento europeu de interesse económico do corredor ferroviário de mercadorias CFM4 ou RFC4 que gere a operação do corredor atlântico de mercadorias composto por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB. O estudo avaliou a redução de custos do transporte de mercadorias entre Leixões e Madrid e entre Leixões e Paris em função da aplicação dos componentes da interoperabilidade nos troços em que estivessem em falta. A viabilização dos comboios de 740m induziria uma economia de 12% e 13%, mas a bitola 1435mm que para Leixões-Madrid seria 0, para Leixões-Paris seria 6%, isto é, superior à economia devida à normalização dos 25kVAC (2%). Isto é, a utilização de bitola 1435mm é, numa lógica matemática ou física, um fator competitivo. Note-se que são custos de operação, não de investimento. A avaliação dos investimentos requer, tal como definido na regulamentação comunitária (reg. 2020/1056), uma análise de custos benefícios a prazo suficientemente longo e contabilizando os efeitos multiplicadores na economia como estímulo do emprego, e os custos das externalidades incluindo as emissões de gases com efeito de estufa, os congestionamentos rodoviários, a sinistralidade. Não sendo investimentos para os operadores, justifica-se a referida frente comum para que os governos executem o plano das redes TEN-T.

Relativamente à quota modal insignificante de 6% , para a aumentar deverá cumprir-se a proposta de diretiva COM(2023) 702 e anexo[2]  , para revisão da diretiva 92/106/EEC para desenvolvimento do transporte intermodal (transporte de semirreboques por comboio, por exemplo).

Em relação à quota de 6%, temos ainda um problema de concorrência com a rodovia, como o dr Carlos Vasconcelos tem denunciado, a proteção fiscal dada à rodovia e respetivos combustíveis, agravado pela inércia e pela força do lobby rodoviário, apostado em aumentar a capacidade de transporte por camião (propondo por exemplo o aumento das dimensões dos camiões). No entanto, temos de considerar o problema da bitola ibérica como fator de afastamento de operadores estrangeiros, não interessados em investir em material circulante de bitola ibérica ou com a condicionante, no fabrico, de bogies  com a possibilidade de mudar de eixos em oficina. A não evoluir a extensão da bitola 1435mm na península continuará o processo de concentração em 2 ou 3 operadores e no desinteresse doutros operadores nas mercadorias numa rede de bitola ibérica, ao contrário do que se passa na alta velocidade espanhola para passageiros.

 

2 – “Espanha representa cerca de 60% do nosso comércio externo” com toda a Europa.

Este argumento serve para fundamentar uma concentração dos investimentos da MEDWAY (a Captrain/Takargo utilizá-lo-á também) nas redes ibéricas, embora as recentes aquisições de locomotivas de bitola 1435mm para serviço além Pirineus mostrem que também é oportuno investir no tráfego de exportações além Europa. Sendo verdade  a quota de cerca de 60% relativamente à Europa, convirá esclarecer a sua natureza. Assim, com recurso aos números do INE de 2022, considerando a totalidade das importações e exportações de e para todo o mundo, a percentagem do comércio com Espanha relativamente ao comércio com todo o mundo foi de 33,94% em peso e 29,55% em valor   (Espanha 34,16Mton/55525M€;  mundo 100,64Mton/187889M£). Numa perspetiva mais próxima de nós, as exportações por modos terrestres (cerca de 99% das quais por rodovia) para Espanha foram 11,349Mton no valor de 16822M€ enquanto para o resto da EU foram 5,93Mton mas no valor de 25767M€.  Isto é, para um operador ferroviário, é compreensível a concentração dos seus esforços na península ibérica, mas numa perspetiva de crescimento da economia nacional, deve dar-se atenção aos investimentos  que contribuam para o crescimento das exportações. Não só a viabilização dos comboios de 740m, das pendentes inferiores a 1,2%, dos 25kVAC, mas também da bitola 1435mm, como mostrou o estudo referido do RFC4.

 

3 – “Espanha não tem bitola 1435mm para mercadorias”

O dr Carlos Vasconcelos corrigiu esta afirmação reconhecendo que já existe transporte de mercadorias do terminal intermodal de Can Tunis (porto de Barcelona) para França mas desvalorizando o volume desse tráfego.  Consultando o site da LFP (Linha Figueres-Perpignan, associação da ADIF e SNCF para gestão das infraestruturas do túnel El Perthus) contabilizam-se 21 serviços semanais por sentido para mercadorias e 28 serviços semanais por sentido para passageiros. Está longe da saturação (50 comboios por dia por sentido), mas a expetativa é a extensão da bitola 1435mm a Valencia no final de 2025 e o consequente aumento do tráfego.

Na outra extremidade dos Pirineus aguarda-se para 2025 a ligação por terceiro carril (bitola mista 1435 e 1668mm) entre Irun e a plataforma logística de Vitoria. Como já afirmado pelo dr Carlos Vasconcelos, mais de 2 comboios diários com bitola ibérica para atravessamento dos Pirineus com mudança de bitola é incomportável, pelo que o recurso à plataforma de Vitoria poderia, com o custo respetivo,  atenuar o problema do transbordo por motivo da bitola ibérica. A solução dos eixos variáveis para vagões de mercadorias tem os graves inconvenientes do custo de fabrico, e dos riscos de imobilização por avaria em local distante da manutenção. Como repetido pelo coordenador do corredor atlântico Carlo Secchi, as soluções de compatibilização das bitolas devem ser temporárias.

Entretanto destacam-se os novos serviços de passageiros Barcelona-Lyon e Madrid-Marselha e a retomada do serviço de transporte por comboio de semirreboques Barcelona-Bettembourg pelo operador VIIA (5 serviços de ida e volta semanais) .  Ou de como uma quase verdade dita hoje (Espanha não tem bitola 1435mm para mercadorias) pode não ter nada de verdade dentro em pouco. Mas sublinha-se a urgência de um plano coordenado entre Portugal e Espanha para a aproximação progressiva da bitola 1435mm dos portos nacionais, até porque é longo o prazo para elaboração dos projetos, obtenção do financiamento, concurso, construção e colocação em serviço.


assina um subscritor do manifesto Portugal uma ilha ferroviária?

 

 


[1] Nota minha: em 1995 a quota era 10%, comprovando o aumento de eficiência do transporte rodoviário e, se estivessemos numa discussão escolástica, que a quota baixa porque não se desenvolveu a rede de mercadorias em bitola 1435mm

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