Comentário à entrevista de Carlos Vasconcelos na revista
Negócios e empresas de dez2023 da Associação Industrial Portuguesa ( ver https://heyzine.com/flip-book/73ab3a95a2.html#page/7 )
O presidente da MEDWAY é um excelente gestor do operador de
mercadorias pela ferrovia estando a ganhar quota de mercado na península
ibérica. Nesta entrevista analisa os fatores que dificultam o crescimento do
negócio, desde o estado de degradação e obsolescência das redes à desigualdade
de tratamento em relação ao transporte rodoviário.
Partilhamos da validade dessas queixas. É inadmissível,
especialmente se lembrarmos os protestos sistemáticos dos governos português e
espanhol de promover a descarbonização.
Mas continuamos a discordar de Carlos Vasconcelos sobre o
cumprimento da regulamentação comunitária das redes TEN-T com todos os
requisitos da interoperabilidade (25kVAC, pendentes máximas 1,2%, cruzamento de
comboios de 740m, controle de velocidade e sinalização ERTMS, bitola UIC
1435mm) a incluir nas novas linhas para tráfego misto (alta velocidade e
mercadorias) com ligação à Europa além Pirineus.
Temos objetivos comuns, o desenvolvimento da economia, não
só através do crescimento da quota modal nas redes de Portugal e Espanha, mas
também do crescimento das exportações para além de Espanha.
Seria pois vantajosa uma frente comum que reivindicasse dos
dois governos a elaboração e a execução coordenada de um plano com fases bem
definidas no tempo e na exigência de financiamento (parte da União Europeia a
fundo perdido), plano esse com sucessivas aproximações aos portos nacionais das
novas linhas do corredor atlântico com todos os componentes da
interoperabilidade, incluindo a bitola 1435mm. Esse é aliás o procedimento seguido em
Espanha especialmente no corredor mediterrânico, em que a associação de empresários de
Valencia dinamizou um movimento reivindicativo da aceleração das obras do
corredor em bitola 1435mmm prevendo-se a chegada desta a Valencia em 2025.
Apresentam-se a seguir os comentários aos argumentos
utilizados na entrevista por Carlos Vasconcelos, começando-se por resumir cada
um deles, seguindo-se a nossa contra-argumentação.
1 – “As redes de Portugal e Espanha têm a mesma bitola ibérica de 1668mm e a quota
modal é de cerca de 6% [1] ,
logo a bitola normalizada não é um fator de competitividade por não contribuir
para o aumento da quota”.
Perdoará o Dr Carlos Vasconcelos a nossa dificuldade em
aceitar uma lógica que nos parece longe da Física ou da Matemática em termos de
correlação de causa e efeito. Recupero um estudo de 2015 promovido pelo
agrupamento europeu de interesse económico do corredor ferroviário de
mercadorias CFM4 ou RFC4 que gere a operação do corredor atlântico de
mercadorias composto por representantes da IP, ADIF, SNCF e DB. O estudo
avaliou a redução de custos do transporte de mercadorias entre Leixões e Madrid
e entre Leixões e Paris em função da aplicação dos componentes da
interoperabilidade nos troços em que estivessem em falta. A viabilização dos
comboios de 740m induziria uma economia de 12% e 13%, mas a bitola 1435mm que
para Leixões-Madrid seria 0, para Leixões-Paris seria 6%, isto é, superior à
economia devida à normalização dos 25kVAC (2%). Isto é, a utilização de bitola
1435mm é, numa lógica matemática ou física, um fator competitivo. Note-se que
são custos de operação, não de investimento. A avaliação dos investimentos
requer, tal como definido na regulamentação comunitária (reg. 2020/1056), uma
análise de custos benefícios a prazo suficientemente longo e contabilizando os
efeitos multiplicadores na economia como estímulo do emprego, e os custos das
externalidades incluindo as emissões de gases com efeito de estufa, os
congestionamentos rodoviários, a sinistralidade. Não sendo investimentos para
os operadores, justifica-se a referida frente comum para que os governos
executem o plano das redes TEN-T.
Relativamente à quota modal insignificante de 6% , para a
aumentar deverá cumprir-se a proposta de diretiva COM(2023) 702 e anexo[2] ,
para revisão da diretiva 92/106/EEC para desenvolvimento do transporte
intermodal (transporte de semirreboques por comboio, por exemplo).
Em relação à quota de 6%, temos ainda um problema de
concorrência com a rodovia, como o dr Carlos Vasconcelos tem denunciado, a
proteção fiscal dada à rodovia e respetivos combustíveis, agravado pela inércia
e pela força do lobby rodoviário, apostado em aumentar a capacidade de
transporte por camião (propondo por exemplo o aumento das dimensões dos camiões). No entanto, temos de considerar o problema da bitola
ibérica como fator de afastamento de operadores estrangeiros, não interessados
em investir em material circulante de bitola ibérica ou com a condicionante, no
fabrico, de bogies com a possibilidade
de mudar de eixos em oficina. A não evoluir a extensão da bitola 1435mm na
península continuará o processo de concentração em 2 ou 3 operadores e no
desinteresse doutros operadores nas mercadorias numa rede de bitola ibérica, ao contrário do que se passa na alta velocidade espanhola para passageiros.
2 – “Espanha representa cerca de 60% do nosso comércio
externo” com toda a Europa.
Este argumento serve para fundamentar uma concentração dos
investimentos da MEDWAY (a Captrain/Takargo utilizá-lo-á também) nas redes
ibéricas, embora as recentes aquisições de locomotivas de bitola 1435mm para
serviço além Pirineus mostrem que também é oportuno investir no tráfego de
exportações além Europa. Sendo verdade a
quota de cerca de 60% relativamente à Europa, convirá esclarecer a sua
natureza. Assim, com recurso aos números do INE de 2022, considerando a
totalidade das importações e exportações de e para todo o mundo, a percentagem
do comércio com Espanha relativamente ao comércio com todo o mundo foi de
33,94% em peso e 29,55% em valor
(Espanha 34,16Mton/55525M€; mundo
100,64Mton/187889M£). Numa perspetiva mais próxima de nós, as exportações por
modos terrestres (cerca de 99% das quais por rodovia) para Espanha foram
11,349Mton no valor de 16822M€ enquanto para o resto da EU foram 5,93Mton mas
no valor de 25767M€. Isto é, para um
operador ferroviário, é compreensível a concentração dos seus esforços na
península ibérica, mas numa perspetiva de crescimento da economia nacional,
deve dar-se atenção aos investimentos
que contribuam para o crescimento das exportações. Não só a viabilização
dos comboios de 740m, das pendentes inferiores a 1,2%, dos 25kVAC, mas também
da bitola 1435mm, como mostrou o estudo referido do RFC4.
3 – “Espanha não tem bitola 1435mm para mercadorias”
O dr Carlos Vasconcelos corrigiu esta afirmação reconhecendo
que já existe transporte de mercadorias do terminal intermodal de Can Tunis (porto
de Barcelona) para França mas desvalorizando o volume desse tráfego. Consultando o site da LFP (Linha
Figueres-Perpignan, associação da ADIF e SNCF para gestão das infraestruturas
do túnel El Perthus) contabilizam-se 21 serviços semanais por sentido para
mercadorias e 28 serviços semanais por sentido para passageiros. Está longe da
saturação (50 comboios por dia por sentido), mas a expetativa é a extensão da
bitola 1435mm a Valencia no final de 2025 e o consequente aumento do tráfego.
Na outra extremidade dos Pirineus aguarda-se para 2025 a
ligação por terceiro carril (bitola mista 1435 e 1668mm) entre Irun e a
plataforma logística de Vitoria. Como já afirmado pelo dr Carlos Vasconcelos,
mais de 2 comboios diários com bitola ibérica para atravessamento dos Pirineus
com mudança de bitola é incomportável, pelo que o recurso à plataforma de
Vitoria poderia, com o custo respetivo,
atenuar o problema do transbordo por motivo da bitola ibérica. A solução
dos eixos variáveis para vagões de mercadorias tem os graves inconvenientes do
custo de fabrico, e dos riscos de imobilização por avaria em local distante da
manutenção. Como repetido pelo coordenador do corredor atlântico Carlo Secchi,
as soluções de compatibilização das bitolas devem ser temporárias.
Entretanto destacam-se os novos serviços de passageiros
Barcelona-Lyon e Madrid-Marselha e a retomada do serviço de transporte por
comboio de semirreboques Barcelona-Bettembourg pelo operador VIIA (5 serviços
de ida e volta semanais) . Ou de como
uma quase verdade dita hoje (Espanha não tem bitola 1435mm para mercadorias)
pode não ter nada de verdade dentro em pouco. Mas sublinha-se a urgência de um
plano coordenado entre Portugal e Espanha para a aproximação progressiva da
bitola 1435mm dos portos nacionais, até porque é longo o prazo para elaboração
dos projetos, obtenção do financiamento, concurso, construção e colocação em
serviço.
assina um subscritor do manifesto Portugal uma ilha ferroviária?
[1] Nota
minha: em 1995 a quota era 10%, comprovando o aumento de eficiência do
transporte rodoviário e, se estivessemos numa discussão escolástica, que a quota baixa porque não se desenvolveu a rede de mercadorias em bitola 1435mm
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