domingo, 25 de julho de 2010

Almoço na esplanada da Gulbenkian, 5 – o país nu

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Desta vez o meu amigo estava bem disposto. Não sei se seria por já ter entregue os papeis da reforma, mas a verdade é que comia com gosto a sua salada de alface temperada com azeite com aroma natural de estragão, os espargos verdes cortados curtos com molho de cocktail e as beterrabas em vinagrette.
- Há dias estava a arrumar os papeis quando dei com um texto que mandei à comissão sindical, aqui há uns 3 anos. Tinha havido um partido na Polónia que concorreu às eleições apresentando os candidatos e as candidatas nus. A ideia era partir de um país nu para se ir vestindo aos poucos. 
(ver em:
http://fcsseratostenes.blogspot.com/2010/01/ladies-godiva-no-metropolitano.html ).

Não ganharam as eleições, mas deram-me a ideia de fazer umas manifestações por cá, especialmente em empresas em que os trabalhadores estão melhor colocados do que os seus próprios clientes, ou a maioria da população. O facto é que na Ucrânia a ideia pegou e há um grupo de raparigas que se revezam em manifestações numa das praças principais de Kiev.
- E que respondeu a comissão sindical?
- Nada, como seria de esperar em Portugal. Por um lado, era retomar o espírito e a nudez de Lady Godiva. Protestar por serem os trabalhadores que têm de pagar as crises (e isto foi antes do Lehman Bros no Outono de 2008, antes dos especuladores financeiros e as “off-shores” terem ficado com a calvície à mostra). Por outro, chamar a atenção para que as reivindicações dos trabalhadores não devem limitar-se à questão salarial, devendo alargar-se aos aspetos organizacionais da comunidade e, especialmente, à integração dos assuntos sindicais das empresas com os problemas dos clientes das empresas, que são os cidadãos da comunidade onde funcionam as empresas.
- E tens aí o texto?
- Não , mas posso mandar-to por e-mail.

E aqui está o email que recebi:

Por aqueles anos, os economistas mais inspiradores das políticas restritivas dos governos já tinham coragem para, nos meios de comunicação social, explicar que os melhores indicadores de funcionamento da economia e a contenção dos preços só são possíveis com uma taxa de desemprego elevada.

Havendo desemprego, há o estímulo para que as pessoas trabalhem por própria conta, inventando sempre que possível novas necessidades de consumo para os outros cidadãos. E aqueles que não tiverem sucesso nessa competição pela inventiva, conter-se-ão na procura e aquisição de bens, especialmente importados.
E reduzindo a procura, podem manter-se os preços.

Ao mesmo tempo apela-se ao consumo porque importa manter a produção elevada e satisfazer os parceiros do exterior, importando os seus produtos, para a que a oferta seja superior à procura e assim continuarem a manter-se os preços e as taxas de juro baixas.
Objectivo supremo: manter as prateleiras das lojas sempre cheias (no fundo, a definição mais simples de crise, oposta à de inflação), sem que a procura, embora estimulada e elevada, alcance a oferta, de modo a conter os preços.

Continham-se por outro lado as tendencias para a inflação subindo as taxas de juro (mas se a estabilidade é ter taxas de juro baixas, porque subimos as taxas para alcançar a estabilidade?).
E apregoavam-se as vantagens de uma economia cujos indicadores eram tanto melhores quanto pior vivessem os beneficiários dessa economia (é como aquelas empresas em que os indicadores são tanto melhores quanto menos satisfeitos andam os seus trabalhadores).

As pessoas comuns, vivendo do seu trabalho, tinham dificuldade em aceitar tão santos princípios, e ingenuamente insistiam que a prioridade devia ser o emprego.

Pregavam os políticos que os portugueses deviam aumentar a sua produtividade e a sua competitividade…apelavam à desistência dos sistemas de protecção social, ao aumento da idade de reforma.

Nas empresas eram distribuídos gratuitamente jornais com artigos e crónicas de doutrinação naquele sentido, para que todos se habituassem à ideia de que os empregos certos, para toda a vida, iam desaparecer.

Foi assim que, no metropolitano de Lisboa, ao aproximar-se o termo da vigência dos acordos colectivos de trabalho, começaram a aparecer entrevistas em que as gerências das principais empresas de transporte justificavam a política de redução dos quadros de pessoal, a prática de contratação com vínculo precário (com os célebres recibos verdes), o recurso sistemático a empresas de prestação de serviços e de fornecimento de mão de obra, as mais das vezes não qualificada para as tarefas técnicas antigamente desempenhadas por profissionais do quadro de efectivos.

Em qualquer intervenção dos gestores ou dos ministros ressaltava sempre a injustiça dos empregados do Metropolitano terem um acordo colectivo, e os passageiros, que eram por eles transportados, terem empregos precários, sofrerem a incerteza na continuação do seu trabalho, sentirem a inutilidade dos protestos quando milhares de desempregados estariam prontos a aceitar um salário modesto e inseguro para os substituírem.

A doutora assessora da direcção de recursos humanos, que participava nas negociações com os sindicatos, via com preocupação crescente os maus caminhos tomados. Vinha-lhe essa preocupação também por ser casada com um dos sindicalistas.

Foi quando, do outro lado da Europa unida, na fria Polónia, ao aproximarem-se mais umas eleições, no meio dos mesmos problemas da nova economia que atormentavam os portugueses, uma escritora polaca teve a ideia de fundar um partido para concorrer ao Parlamento.
Um partido principalmente de mulheres, em que a metáfora de uma Polónia nua, porque despida do que as pessoas precisam para se sentirem bem consigo próprias e com a sociedade, apelava ao esforço nacional para que fosse vestida condignamente.
A doutora contemplou longamente a fotografia de propaganda do novo partido polaco. Aquela moça da frente fazia-lhe lembrar vagamente uma colega, de verbo fácil e riso espontâneo.

E das duas surgiu a ideia.

Iam defender os seus maridos e defender-se a elas próprias. Iam defender as cidadãs e cidadãos que todos os dias caminhavam para os seus empregos precários, ganhando menos que os empregados do metropolitano, sem a mesma segurança laboral e sem as mesmas regalias. Ninguém seria prejudicado por não ter comboios para o seu transporte diário.

Foram escolhidas as palavras de ordem: “Pela contratação colectiva”, “Acordos colectivos para quem trabalha, no Metro ou onde fôr”, “Trabalhadores do Metro podem ter menos regalias, mas os passageiros do Metro não podem ter menos”, “Queremos transportar passageiros com emprego, assistência na saúde e filhos na escola”, “Aplicação dos lucros dos bancos e das grandes empresas na criação de empregos”, “Criação de empregos em áreas competitivas para o País”, "Sim à Declaração Universal dos Direitos do Homem".

As empregadas de todos os departamentos do Metropolitano que se inscreveram na acção de protesto, e foram muitas, compareceram numa manhã de outono, bem cedo, na estação terminal de onde partia um dos comboios de inspecção (o comboio que no início do dia faz o percurso de toda a linha, ainda sem passageiros, para confirmara que nada ameaça a segurança da circulação). Tinham combinado com os seus colegas operacionais todos os pormenores. A colega da comunicação interna faria a cobertura fotográfica e de vídeo.
Primeiro tiraram uma fotografia de conjunto, à frente do comboio, com os seus vestidos coloridos. Outro grupo de colegas recolheu as roupas enquanto as manifestantes entravam nas carruagens da frente.
De alguma distancia, a colega da comunicação interna recolheu algumas imagens de vídeo, de modo que os corpos que se vislumbravam, alguns na verdade de uma elegância extrema, não pudessem ser identificados.
O grupo de fieis depositárias fez-se fotografar com as roupas dobradas, bem à vista, com a data e a hora da fotografia bem impressas. E entraram para as carruagens de trás.
Quando o comboio chegou à outra estação terminal, no fim da linha, repetiu-se o cerimonial por ordem inversa. Já havia passageiros na estação à espera. Conforme combinado, havia reporteres da imprensa e da televisão, a uma distancia respeitável e com interpostas colegas e alguns maridos para evitar a indiscrição das tele-objectivas.
Nos telejornais desse dia e na imprensa do dia seguinte a viagem das Ladies Godiva ocupou os lugares principais. Foi um exito de audiencia.

Um “Peeping Tom” [1], reporter de uma estação de TV que, disfarçado de empregado da limpeza, tinha conseguido umas imagens mais explícitas na estação de embarque, foi alvo de boicote, ao tentar passar as imagens na sua estação de televisão, pelas colegas entretanto avisadas.

O Ministério da Educação recebeu pouco depois o anúncio de que uma manifestação de professoras iria, por breves momentos numa determinada madrugada, usar a força do nu feminino para protestar contra a ignorancia dos decisores e a ineficácia das medidas do Ministério contra as deficiências em Português e em Matemática dos alunos.

Numa empresa do Rio Ave, as empregadas opuseram a sua força desnudada à retirada das máquinas que alguns accionistas queriam ver na Roménia.

Numa estação de televisão do norte, os trabalhadores a recibo verde (havia anos...) fizeram um protesto de nu, gravado com todos os cuidados para não identificar os donos dos corpos e para não chocar as almas piedosas.

Numa empresa do Alto Alentejo que pagava muito mal o esforço das suas funcionárias...
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[1] Peeping Tom é o nome do unico habitante de Coventry que, na lenda do século XI, violou o pacto de pudor de toda a população, que propositadamente se fechou em casa enquanto Lady Godiva fazia a sua travessia, nua e a cavalo, como forma de obter do senhor feudal, seu marido, o abaixamento de impostos que a todos beneficiaria

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