Comentário que enviei ao autor do artigo
Caro Carlos
Cipriano
Volto ao seu
contacto no seguimento deste seu artigo.
Como se
recordará da minha posição sobre a questão da interoperabilidade ferroviária,
espero que não estranhe os meus comentários nem os entenda como crítica
destrutiva, mas apenas como defesa duma estratégia baseada essencialmente em
dois argumentos: facilitar o crescimento das exportações portuguesas através da
transferência de carga rodoviária para a ferrovia com a consequente redução de
emissões, e redução das emissões devidas às ligações aéreas Lisboa-Madrid e
Lisboa-Porto através da transferência de passageiros para a alta
velocidade.
Andávamos um
pouco distraídos da evolução das redes TEN_T na CE talvez por causa da
resposta, às questões que lhes pusemos sobre o tema, da DG MOVE e da
Ombudswoman, alinhando incondicionalmente com a estratégia do governo
português, apesar das manifestações de intenção e dos protestos de apoio ao
desenvolvimento da ferrovia no ano internacional do Rail (ver o anexo TEN_T
revSS 1jun, pf).
Um artigo do
El Periodico de Espana/Catalunha de 9 de agosto, seguido da sua reprodução pela
T&N em 15, levou-nos a procurar no site da CE. E lá estava a proposta de
14dez2021 de revisão dos regulamentos 913, 1315 e 1153 (ex 1316) e a proposta
de emenda dessa proposta, espoletada pela invasão da Ucrania e sua diferença de
bitolas, datada de 27jul2022.
São estas propostas
de regulamento que confirmam que Bruxelas quer mesmo uniformizar (este verbo
amesquinha um pouco a ideia, talvez o termo mais correto seja “normalizar”, é
mais técnico) toda a rede única europeia (exceção para a Irlanda por ser ilha e
por a Inglaterra ser, agora, um país terceiro), o que nos surpreendeu pela
positiva, embora pessoalmente não tenha muita fé na disponibilidade da senhora
comissária Adina Valean para executar o programa das propostas (receio que os lóbis
da camionagem e das transportadoras romenas falem mais alto, mas na ausência de
provas, pode ser preconceito meu).
Passando aos
comentários ao seu artigo:
1 – Certo, as
propostas (de 14dez2021 e 27jul2022) não afetam a obra de Évora-Caia por já ter
arrancado, mas não será demais referir que uma via única (os viadutos só têm os
pilares de uma das vias!! Que critério de economia que mais tarde se revelará
mais dispendioso …)
2 – Atraso de
2 anos – eu sei que o jornalista não é obrigado a revelar as suas fontes, mas
também sei que a CRP garante aos cidadãos o direito a ser informado sobre
assuntos públicos. Se há um atraso de 2 anos ele tem de ser demonstrado, porque
tanto tempo leva a instalar travessas e carris de UIC como de ibérica. Se quem
o disse foi um técnico, ensinaram-lhe isso na escola por onde também passámos,
uma afirmação dessas demonstra-se. O seu artigo explica a seguir que a razão
será o atraso do “efeito de rede”. É verdade que o “marketing” do anúncio da
linha Lisboa-Porto de AV em ibérica destacava os ganhos de tempo por outros
destinos poderem utilizar os novos troços, Guarda-Porto seria mais rápido com a
conclusão do 1º troço da linha de AV, mas isso não iria atrasar a conclusão da
linha Lisboa-Porto. Aliás o anuncio dizia que a nova linha seria construída em
duas fases: 1ª Porto-Soure (que aliviaria o ramal de Alfarelos melhorando o
tráfego de mercadorias), e 2ª Soure-Lisboa. Além disso, como o teórico de
transportes australiano Paul Mees dizia, por vezes os transbordos são peças
essenciais na rede (depende da gestão da rede, claro, tempos de transbordo
curtos, despacho antecipado de bagagem, também economizam tempo total de
percurso). Não é uma situação cómoda, haver uma linha UIC ao lado da linha do Norte
em ibérica, mas é um constrangimento físico, não se pode mudar a bitola da rede
existente num tempo razoável (o grupo da ilha ferroviária, nunca por nunca
propôs isso, conviria que numa discussão técnica não se atribuam por uns intenções
a outros que não as têm)
3 – mudança radical
de estratégia – do nosso ponto de vista, seria extremamente positivo, mas a
mudança seria apenas do governo português, porque os regulamentos 1315/2013 e
1316/2013 são muito claros na definição do corredor atlântico com todos os
parâmetros de interoperabilidade (de que destacamos o ERTMS, os 25 kV e a
bitola UIC) e já lá estava, até 2030, a linha Lisboa/Sines-Porto/Leixões,
Aveiro-Viseu-Salamanca (sem passar por Pampilhosa) e Lisboa-Évora-Madrid. Acontece
que juridicamente os regulamentos comunitários são vinculativos, são de
cumprimento obrigatório pelos Estados membros.
Estamos em
2022 e ainda não há projeto para a maior parte do percurso (atrasos também em
Espanha, para mercadorias e passageiros, entre Plasencia e Toledo, o que só justiçaria
uma aceleração da coordenação com Espanha em função dos objetivos da rede TEN_T).
4 –
utilização da nova linha em construção faseada (em bitola ibérica) e da linha
do Norte à medida que cada troço for concluído – se a IP já fez o planeamento
da construção deste modo, poderá efetivamente perder-se esse trabalho, mas
nunca se perderá a mais valia de uma comparação com outro projeto. Não há
projetos únicos sem a comparação de estudos prévios de alternativas com um
mínimo de informação concreta. O planeamento foi comparado com a alternativa de
vários lotes em construção simultânea? Já há estudo prévio para Soure -Lisboa
com alternativas, incluindo comparação da margem direita do Tejo com a margem
esquerda?
Voltando à utilização
pelo mesmo comboio do troço construído da nova linha e da linha do Norte, claro
que é incómodo o transbordo (aceitável pela opinião pública se inferior a 1
ano?), como refere, há a hipótese de intercambiadores e de eixos variáveis, mas
tem razão, encarece e por alguma razão a CAF não vai nisso, apenas a Talgo (e o
consórcio com a Azvi). Mas há outra solução, para percursos inferiores a 100km,
o terceiro carril. Não recomendamos, mas se acham tão importante essa
interoperabilidade, é construir a nova linha com terceiro carril (com o
inconveniente de limitação a 250 km/h), mas não recomendamos, será preferível
ter vários lotes em construção simultânea.
5 – “travessas
polivalentes, antecipando a possibilidade de futura migração de bitola” - Também
não recomendamos as travessas polivalentes, não só pelas limitações de
velocidade, mas porque quando se fala em “futura migração” dizem as normas que se
deve mostrar o planeamento dessa “futura migração” para que não se diga que se
está a empurrar o problema com a barriga, especialmente quando os regulamentos
falam claramente em datas, 2030 para a rede “core” e 2050 para a rede “comprehensive”
(e agora com as propostas, a rede “extended core para 2040)
6 – “Governo
discorda” – Mais uma vez citamos a CRP, os cidadãos têm o direito de livre
expressão. Não podemos aceitar como razoável a posição do governo perante os
regulamentos comunitários que definem a data de 2030 para o corredor atlântico
interoperável, que são obrigatórios e que encontram da parte do governo português
esta posição, discordamos e não cumprimos. Não são os regulamentos e as novas
propostas que “colocam em causa os projetos da expansão da rede ferroviária já
em curdo e planeados” (no supremo segredo, acrescentamos), são estes que põem
em causa os regulamentos comunitários. Dará direito a um processo de infração,
diremos.
7 – “o objetivo da interoperabilidade
plena não deve prejudicar os objetivos da redução de emissões, promoção do
transporte coletivo e transferência modal para a ferrovia” - temos de tirar o chapéu à argumentação,
porque esta é precisamente a argumentação contida nos considerandos das
propostas da CE (“a seamless
TEN-T without physical gaps, integrating intelligent and innovative solutions
is key to facilitating the internal market, increasing cohesion and
contributing to the objectives of the European Green Deal.“). Por outras
palavras, parece que a comunicação do governo estruturou uma narrativa dissociada
da realidade para se proteger, ocultando aos cidadãos a estratégia da CE
8 – “é prematuro especular sobre que novas obrigações virão a ser
criadas aos Estados membros … a proposta será ainda discutida no Conselho e no
Parlamento” – sendo verdade que as propostas ainda terão de ser discutidas, não
se trata de novas obrigações, trata-se de velhas obrigações que as propostas vêm
esclarecer para quem ainda tinha dúvidas, que mantêm o corredor atlântico do
regulamento 1315 para 2030 [sim, um regulamento comunitário é obrigatório, por
mais que o governo de um Estado membro diga que não: considerando das
propostas: Legal basis –
The Treaty on the Functioning of the European Union (TFEU) (Articles 170-172)
stipulates the establishment and development of trans-European networks in the areas
of transport, telecommunications and energy infrastructures ].
9 –“a ideia de uniformização da bitola na Europa tem sido recorrente
mas deparam-se os pesados custos da ordem de muitos milhares de milhões de
euros dum investimento claramente pouco prioritário face a outras necessidades”
– claro que se nos fala da saúde, da educação e da habitação, não poderemos
discutir as prioridades, mas se argumentarmos que o corredor atlântico de
mercadorias em bitola UIC estimula as exportações e consequentemente a riqueza
que poderá contribuir para a saúde, a educação e a habitação. Quanto aos muitos
milhares de milhões de euros, estimámos o referido corredor atlântico de
mercadorias a preços de 2019 em 12.000 milhões de euros e ensaiámos uma análise
de custos benefícios de acordo com as normas comunitárias com os resultados que
referimos no texto em anexo apresentado no congresso rodoferroviário de 5 a 7
jul2022
10 – “a CE avançou com as propostas sem ter realizado um estudo sobre a
manutenção da bitola ibérica e o uso de
intercambiadores e eixos variáveis” – como já referido, é um pouco contra as
regras da concorrência estar a impor aos operadores estrangeiros (o TFUE manda
abrir a exploração aos operadores estrangeiros) a compra de material circulante
de eixos variáveis, será um pouco como aquela intervenção infeliz do ex
ministro Pedro Marques, a explicar que a bitola ibérica era uma proteção
natural contra a concorrência … No entanto, o que o art.18 da proposta de
revisão diz é que para os comboios de mercadorias há um limite de 15 minutos
para o tempo adicional de atravessamento dos postos transfronteiriços, o que
será muito difícil de compatibilizar com o uso dos intercambiadores e com o
tempo de mudança de locomotiva (também muito dificilmente os fabricantes irão
perder mais tempo a engendrar a tentar fabricar locomotivas de eixos telescópicos,
não é uma solução técnico-económica).
11 – “a Finlandia rejeita proposta de Bruxelas” – depois da experiência
com o senhor Oli Rehn, que nem o desfile organizado no padrão de Belém por
Rodrigo Moita de Deus mudou o humor mesquinho, e depois da brilhante análise em
2019 do grande consultor finlandês que concluiu que o gasoduto do leste dos
Pirinéus não era “economicamente viável”, temos pouca recetividade para a
conclusão do senhor ministro dos transportes da Finlandia que a mudança de
bitola não será “economicamente viável”. Provavelmente terá razão em termos financeiros,
mas conviria fundamentar com uma análise de custos benefícios feita de acordo
com as normas comunitárias, que contabilizasse os custos das externalidades do
não fazer a ligação à Finlandia em UIC (em 2015 o Instituto Freinhoffer
calculou essas externalidades para toda a rede TEN_T , superiores aos custos, e
o Tribunal de Contas Europeu ECA, de 2016 a 2020 tem criticado violentamente os
atrasos da rede). Provavelmente também o senhor ministro dos transportes
finlandês assustou-se com os custos do túnel de 80 km de Talin para Helsínquia,
ignorando por exemplo os progressos na técnica de construção de túneis
submersos, como o que Alemanha e Dinamarca estão construindo no estreito de Fehmarn,
e ignorando demasiado ostensivamente o próximo início da construção do Rail
Baltica, a nova linha de 870 km da Estónia à Polónia em bitola UIC, quando nos
países bálticos a bitola original é a russa de 1520 mm (curiosamente também
grupos de interesse se opuseram nos países bálticos ao Rail Baltica) .
Pedindo desculpa pela extensão do texto, junto as ligações para as
propostas de 14dez2021 e de 27jul2022 em que me baseei:
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:52021PC0812
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A52022PC0384
Com os melhores cumprimentos e votos de saúde
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