domingo, 4 de setembro de 2022

Bruxelas quer uniformizar ferrovia - comentário a um artigo do Público

 Comentário que enviei ao autor do artigo

https://www.publico.pt/2022/09/03/economia/noticia/bruxelas-quer-uniformizar-bitola-ferrovia-europeia-compromete-nova-linha-lisboaporto-2019177


Caro Carlos Cipriano

 

Volto ao seu contacto no seguimento deste seu artigo.

Como se recordará da minha posição sobre a questão da interoperabilidade ferroviária, espero que não estranhe os meus comentários nem os entenda como crítica destrutiva, mas apenas como defesa duma estratégia baseada essencialmente em dois argumentos: facilitar o crescimento das exportações portuguesas através da transferência de carga rodoviária para a ferrovia com a consequente redução de emissões, e redução das emissões devidas às ligações aéreas Lisboa-Madrid e Lisboa-Porto através da transferência de passageiros para a alta velocidade. 

Andávamos um pouco distraídos da evolução das redes TEN_T na CE talvez por causa da resposta, às questões que lhes pusemos sobre o tema, da DG MOVE e da Ombudswoman, alinhando incondicionalmente com a estratégia do governo português, apesar das manifestações de intenção e dos protestos de apoio ao desenvolvimento da ferrovia no ano internacional do Rail (ver o anexo TEN_T revSS 1jun, pf).

Um artigo do El Periodico de Espana/Catalunha de 9 de agosto, seguido da sua reprodução pela T&N em 15, levou-nos a procurar no site da CE. E lá estava a proposta de 14dez2021 de revisão dos regulamentos 913, 1315 e 1153 (ex 1316) e a proposta de emenda dessa proposta, espoletada pela invasão da Ucrania e sua diferença de bitolas, datada de 27jul2022. 

São estas propostas de regulamento que confirmam que Bruxelas quer mesmo uniformizar (este verbo amesquinha um pouco a ideia, talvez o termo mais correto seja “normalizar”, é mais técnico) toda a rede única europeia (exceção para a Irlanda por ser ilha e por a Inglaterra ser, agora, um país terceiro), o que nos surpreendeu pela positiva, embora pessoalmente não tenha muita fé na disponibilidade da senhora comissária Adina Valean para executar o programa das propostas (receio que os lóbis da camionagem e das transportadoras romenas falem mais alto, mas na ausência de provas, pode ser preconceito meu).

Passando aos comentários ao seu artigo:

1 – Certo, as propostas (de 14dez2021 e 27jul2022) não afetam a obra de Évora-Caia por já ter arrancado, mas não será demais referir que uma via única (os viadutos só têm os pilares de uma das vias!! Que critério de economia que mais tarde se revelará mais dispendioso …)

2 – Atraso de 2 anos – eu sei que o jornalista não é obrigado a revelar as suas fontes, mas também sei que a CRP garante aos cidadãos o direito a ser informado sobre assuntos públicos. Se há um atraso de 2 anos ele tem de ser demonstrado, porque tanto tempo leva a instalar travessas e carris de UIC como de ibérica. Se quem o disse foi um técnico, ensinaram-lhe isso na escola por onde também passámos, uma afirmação dessas demonstra-se. O seu artigo explica a seguir que a razão será o atraso do “efeito de rede”. É verdade que o “marketing” do anúncio da linha Lisboa-Porto de AV em ibérica destacava os ganhos de tempo por outros destinos poderem utilizar os novos troços, Guarda-Porto seria mais rápido com a conclusão do 1º troço da linha de AV, mas isso não iria atrasar a conclusão da linha Lisboa-Porto. Aliás o anuncio dizia que a nova linha seria construída em duas fases: 1ª Porto-Soure (que aliviaria o ramal de Alfarelos melhorando o tráfego de mercadorias), e 2ª Soure-Lisboa. Além disso, como o teórico de transportes australiano Paul Mees dizia, por vezes os transbordos são peças essenciais na rede (depende da gestão da rede, claro, tempos de transbordo curtos, despacho antecipado de bagagem, também economizam tempo total de percurso). Não é uma situação cómoda, haver uma linha UIC ao lado da linha do Norte em ibérica, mas é um constrangimento físico, não se pode mudar a bitola da rede existente num tempo razoável (o grupo da ilha ferroviária, nunca por nunca propôs isso, conviria que numa discussão técnica não se atribuam por uns intenções a outros que não as têm)

3 – mudança radical de estratégia – do nosso ponto de vista, seria extremamente positivo, mas a mudança seria apenas do governo português, porque os regulamentos 1315/2013 e 1316/2013 são muito claros na definição do corredor atlântico com todos os parâmetros de interoperabilidade (de que destacamos o ERTMS, os 25 kV e a bitola UIC) e já lá estava, até 2030, a linha Lisboa/Sines-Porto/Leixões, Aveiro-Viseu-Salamanca (sem passar por Pampilhosa) e Lisboa-Évora-Madrid. Acontece que juridicamente os regulamentos comunitários são vinculativos, são de cumprimento obrigatório pelos Estados membros.

Estamos em 2022 e ainda não há projeto para a maior parte do percurso (atrasos também em Espanha, para mercadorias e passageiros, entre Plasencia e Toledo, o que só justiçaria uma aceleração da coordenação com Espanha em função dos objetivos da rede TEN_T).

4 – utilização da nova linha em construção faseada (em bitola ibérica) e da linha do Norte à medida que cada troço for concluído – se a IP já fez o planeamento da construção deste modo, poderá efetivamente perder-se esse trabalho, mas nunca se perderá a mais valia de uma comparação com outro projeto. Não há projetos únicos sem a comparação de estudos prévios de alternativas com um mínimo de informação concreta. O planeamento foi comparado com a alternativa de vários lotes em construção simultânea? Já há estudo prévio para Soure -Lisboa com alternativas, incluindo comparação da margem direita do Tejo com a margem esquerda?

Voltando à utilização pelo mesmo comboio do troço construído da nova linha e da linha do Norte, claro que é incómodo o transbordo (aceitável pela opinião pública se inferior a 1 ano?), como refere, há a hipótese de intercambiadores e de eixos variáveis, mas tem razão, encarece e por alguma razão a CAF não vai nisso, apenas a Talgo (e o consórcio com a Azvi). Mas há outra solução, para percursos inferiores a 100km, o terceiro carril. Não recomendamos, mas se acham tão importante essa interoperabilidade, é construir a nova linha com terceiro carril (com o inconveniente de limitação a 250 km/h), mas não recomendamos, será preferível ter vários lotes em construção simultânea.

5 – “travessas polivalentes, antecipando a possibilidade de futura migração de bitola” - Também não recomendamos as travessas polivalentes, não só pelas limitações de velocidade, mas porque quando se fala em “futura migração” dizem as normas que se deve mostrar o planeamento dessa “futura migração” para que não se diga que se está a empurrar o problema com a barriga, especialmente quando os regulamentos falam claramente em datas, 2030 para a rede “core” e 2050 para a rede “comprehensive” (e agora com as propostas, a rede “extended core para 2040)

6 – “Governo discorda” – Mais uma vez citamos a CRP, os cidadãos têm o direito de livre expressão. Não podemos aceitar como razoável a posição do governo perante os regulamentos comunitários que definem a data de 2030 para o corredor atlântico interoperável, que são obrigatórios e que encontram da parte do governo português esta posição, discordamos e não cumprimos. Não são os regulamentos e as novas propostas que “colocam em causa os projetos da expansão da rede ferroviária já em curdo e planeados” (no supremo segredo, acrescentamos), são estes que põem em causa os regulamentos comunitários. Dará direito a um processo de infração, diremos.

7 – “o objetivo da interoperabilidade plena não deve prejudicar os objetivos da redução de emissões, promoção do transporte coletivo e transferência modal para a ferrovia” -  temos de tirar o chapéu à argumentação, porque esta é precisamente a argumentação contida nos considerandos das propostas da CE (“a seamless TEN-T without physical gaps, integrating intelligent and innovative solutions is key to facilitating the internal market, increasing cohesion and contributing to the objectives of the European Green Deal.“). Por outras palavras, parece que a comunicação do governo estruturou uma narrativa dissociada da realidade para se proteger, ocultando aos cidadãos a estratégia da CE

8 – “é prematuro especular sobre que novas obrigações virão a ser criadas aos Estados membros … a proposta será ainda discutida no Conselho e no Parlamento” – sendo verdade que as propostas ainda terão de ser discutidas, não se trata de novas obrigações, trata-se de velhas obrigações que as propostas vêm esclarecer para quem ainda tinha dúvidas, que mantêm o corredor atlântico do regulamento 1315 para 2030 [sim, um regulamento comunitário é obrigatório, por mais que o governo de um Estado membro diga que não: considerando das propostas: Legal basis – The Treaty on the Functioning of the European Union (TFEU) (Articles 170-172) stipulates the establishment and development of trans-European networks in the areas of transport, telecommunications and energy infrastructures ].

9 –“a ideia de uniformização da bitola na Europa tem sido recorrente mas deparam-se os pesados custos da ordem de muitos milhares de milhões de euros dum investimento claramente pouco prioritário face a outras necessidades” – claro que se nos fala da saúde, da educação e da habitação, não poderemos discutir as prioridades, mas se argumentarmos que o corredor atlântico de mercadorias em bitola UIC estimula as exportações e consequentemente a riqueza que poderá contribuir para a saúde, a educação e a habitação. Quanto aos muitos milhares de milhões de euros, estimámos o referido corredor atlântico de mercadorias a preços de 2019 em 12.000 milhões de euros e ensaiámos uma análise de custos benefícios de acordo com as normas comunitárias com os resultados que referimos no texto em anexo apresentado no congresso rodoferroviário de 5 a 7 jul2022

10 – “a CE avançou com as propostas sem ter realizado um estudo sobre a manutenção da bitola ibérica  e o uso de intercambiadores e eixos variáveis” – como já referido, é um pouco contra as regras da concorrência estar a impor aos operadores estrangeiros (o TFUE manda abrir a exploração aos operadores estrangeiros) a compra de material circulante de eixos variáveis, será um pouco como aquela intervenção infeliz do ex ministro Pedro Marques, a explicar que a bitola ibérica era uma proteção natural contra a concorrência … No entanto, o que o art.18 da proposta de revisão diz é que para os comboios de mercadorias há um limite de 15 minutos para o tempo adicional de atravessamento dos postos transfronteiriços, o que será muito difícil de compatibilizar com o uso dos intercambiadores e com o tempo de mudança de locomotiva (também muito dificilmente os fabricantes irão perder mais tempo a engendrar a tentar fabricar locomotivas de eixos telescópicos, não é uma solução técnico-económica).

11 – “a Finlandia rejeita proposta de Bruxelas” – depois da experiência com o senhor Oli Rehn, que nem o desfile organizado no padrão de Belém por Rodrigo Moita de Deus mudou o humor mesquinho, e depois da brilhante análise em 2019 do grande consultor finlandês que concluiu que o gasoduto do leste dos Pirinéus não era “economicamente viável”, temos pouca recetividade para a conclusão do senhor ministro dos transportes da Finlandia que a mudança de bitola não será “economicamente viável”. Provavelmente terá razão em termos financeiros, mas conviria fundamentar com uma análise de custos benefícios feita de acordo com as normas comunitárias, que contabilizasse os custos das externalidades do não fazer a ligação à Finlandia em UIC (em 2015 o Instituto Freinhoffer calculou essas externalidades para toda a rede TEN_T , superiores aos custos, e o Tribunal de Contas Europeu ECA, de 2016 a 2020 tem criticado violentamente os atrasos da rede). Provavelmente também o senhor ministro dos transportes finlandês assustou-se com os custos do túnel de 80 km de Talin para Helsínquia, ignorando por exemplo os progressos na técnica de construção de túneis submersos, como o que Alemanha e Dinamarca estão construindo no estreito de Fehmarn, e ignorando demasiado ostensivamente o próximo início da construção do Rail Baltica, a nova linha de 870 km da Estónia à Polónia em bitola UIC, quando nos países bálticos a bitola original é a russa de 1520 mm (curiosamente também grupos de interesse se opuseram nos países bálticos ao Rail Baltica) .

 

Pedindo desculpa pela extensão do texto, junto as ligações para as propostas de 14dez2021 e de 27jul2022 em que me baseei:

 

https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/HTML/?uri=CELEX:52021PC0812

https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=celex%3A52022PC0384 

 

Com os melhores cumprimentos e votos de saúde

 


 


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