terça-feira, 8 de setembro de 2009

Mais uma didáctica viagem ao Algarve - Let’s take the Pendolino train to Faro




Let’s take the Pendolino train to Faro
Assim poderá começar um pequeno vídeo de propaganda do serviço Alfa da CP. Juntam-se umas imagens dumas praias e dum turismo rural no Algarve, com turistas sorridentes a embarcar no Pendolino e a nele tomar uma refeição “nouvelle cuisine”.
A percepção de que é um serviço de qualidade infiltra-se no córtex cerebral de quem vê.
A conclusão sub-liminar chega rapidamente: para quê gastar dinheiro com o TGV se o que temos é tão bom?
Será? Comparando com os padrões dos países africanos, ou mesmo de alguns países europeus que há vinte anos eram províncias, será. E não tenho dúvidas de que, com os meios disponíveis, será impossível fazer melhor (a CP chega a colocar todos os 10 Pendolinos que possui em circulação, sem reserva imobilizada).
Let’s take the Pendolino train to Faro.
Façamo-lo. Verão que é mesmo didáctico.
O Pendolino entrou suavemente, como se fosse um comboio suíço, na estação de Entrecampos, três minutos antes da hora anunciada para a partida. Vinha do Porto, como de costume, e como de costume o painel de escrita variável dos salões de passageiros anunciou orgulhosamente: chegámos dentro do horário . E partiu à hora certa, pouco faltava para as 19 horas, 30% dos telemóveis da carruagem a retinir e 10% dos passageiros entretidíssimos com os seus computadores portáteis.
Porém, estranhamente vagaroso e hesitante. Vantagem para os apreciadores da paisagem, que da ponte se avista o jardim das Necessidades, o amontoado dos contentores de Alcântara, à espera do comboio para Madrid ou do barco para Angola, e o rio da minha aldeia.
E aí temos a primeira asserção didáctica: o Pendolino sai de Lisboa a passo de caracol porque vai atrás do comboio suburbano da FERTAGUS, e a lição 1 é que uma infra-estrutura deve estar vocacionada para o seu modo de transporte específico.
Querer que uma linha sirva vários modos de transporte é condená-la ao insucesso em termos de capacidade aproveitada. Tráfego inter-urbano de velocidade mais ou menos elevada é uma coisa, outra coisa e modo é o tráfego suburbano de passageiros, ou o de mercadorias… Tem de se disseminar o conceito de modo de transporte.
Mas em Portugal desceu uma maldição sobre os sistemas de transporte, que é a de os decisores serem muito poupadinhos (enquanto gerem as empresas, claro, porque na sua vida particular utilizam um modo de transporte para se deslocarem na estrada e outro se circulam fora da estrada) e quererem utilizar uma infra-estrutura até ao fim. Há uma analogia interessante com o hidro-avião: é um mau avião e é um mau barco. Uma infra-estrutura que suporta o modo suburbano e o inter-urbano simultaneamente presta um mau serviço inter-urbano e um mau serviço suburbano (comparativamente com a alocação específica).
E assim prosseguimos até Fogueteiro a velocidades próximas de 30 km/h, numa clara humilhação para uma máquina capaz de mais de 220 km/h de forma sustentável.
Na Quinta do Conde, uma pequena depressão no leito de via, sensível para os 80 km/h que já atingíamos. Sobe a velocidade a 100 km/h na zona de Penalva mas decai a 40 à aproximação de Pinhal Novo. Seria o suburbano à frente ou problemas de via no terreno arenoso da península de Setubal?
Mas já aceleramos após a paragem de horário em Pinhal Novo e atingimos 219 km/h , porém com alguns movimentos incómodos de lacete e de galope. Deixamos o Poceirão, fadado a altos destinos com a sua plataforma, centro gravítico suficiente para desviar o traçado rectilíneo do TGV para Lisboa, que assim fica com mais 5 km.
A velocidade baixa para 170 e atravessamos os campos de arroz do estuário.
Mas primeiro paramos 10 minutos, por alturas da Marateca, à espera do intercidades que vem do Algarve. Porque já estamos em via única (simples). A via única é outra maldição que se abateu sobre as nossas infraestruturas por serem tão poupadinhos os gestores. Querem tirar o máximo de proveito da via única, que tudo se resolve com cruzamentos espaçados e uma boa sinalização ferroviária.
Não, não se resolve. Qualquer desvio do horário é suficiente para desencadear uma cadeia de atrasos. E depois é preciso contar com as mercadorias e com os trabalhos nocturnos de manutenção de via. A nós tocou-nos 10 minutos, que vieram juntar-se aos atrasos da “perseguição” ao suburbano. Os decisores são muito capazes de nunca terem viajado na linha do Algarve…
Pelo que a lição 2 é a de que só, e só se, o tráfego fôr muito reduzido a via única poderá satisfazê-lo; por melhor que seja a sinalização ferroviária e a distribuição dos cruzamentos.
A paragem não prevista de 10 minutos permite-nos contemplar o crepúsculo nos arrozais do Sado. As cores são uma verdadeira maravilha. Chega do sul o intercidades. Esperá-lo-á, mais adiante para ele, uma perseguição a um suburbano da FERTAGUS, liquidando a esperança do maquinista de recuperar algum do atraso que traz das curvas das serranias algarvia e alentejana.
Vamos até Alcácer do Sal, bordejando o Sado, chegamos aos 170. Fica para trás um desvio e uma ponte metálica em construção, para uma futura linha de mercadorias Sines-Poceirão - e ainda mais além, a Madrid (irá sobrecarregar a pobre linha existente no troço para o Poceirão? Sobrecarregará, sim, se um gestor poupadinho quiser poupar 30 km de via dupla entre o estuário do Sado e o Poceirão; e limitará as suas condições de manutenção).
A travessia do Sado em Alcácer, pela ponte antiga, obriga a velocidades entre 80 e 120 km/h. Passamos por Grandola a 130, mas noto um ligeiro garrote (“bico” afectando o paralelismo dos carris). Subimos a 180 à aproximação de Canal Caveira, protegidos os seus restaurantes por barreiras acústicas. Ligeiro movimento de lacete. Continuamos a subir a velocidade, até 190, mas mais movimentos de lacete. Logo seguidos de abrandamento para 60 km/h. Não, não é nenhum suburbano. As condições de via entre Canal Caveira e Ermidas não são boas. Só por breves momentos atingimos 130, na altura em que a lua crescente se destaca aos 45º de declinação e às 2 horas relativamente ao movimento do comboio. E logo voltamos a descer a velocidade, enquanto a simpática empregada me põe à frente um tabuleirinho com um creme de alho francês e meia alheira frita com salada de grelos e fatiazinhas de batatas cozidas com casca, em clara exibição de “nouvelle cuisine” preocupada algo pretensiosamente com a gastronomia tradicional.
Depois de Ermidas conseguimos 200 km/h, mas à aproximação da Funcheira reduzimos para 30 km/h. Não pode ser só um retardamento para o cruzamento com o outro intercidades. Esta via férrea necessita de intervenção. A seguir a Funcheira, quando atingimos 100 km/h, noto movimentos de lacete e de galope. Ligeiros embora, mas reais (não tão graves como numa viagem que fiz há dois anos, à passagem pela zona de Grandola; na semana seguinte porém, notou-se que a manutenção da via férrea tinha entretanto intervindo). A região é de serranias, cheia de curvas (para isso ele é pendolino), e vamos variando a velocidade de 40 a 100, outra vez a 40, agora a 99, mas novamente a 40 para subir a 120, e descer outra vez a 40 até que à aproximação de S.Bartolomeu de Messines conseguimos 140 km/h.
Eu diria que se poderá falar em lição 3: o grande segredo duma linha de alta velocidade, ou de velocidade mais ou menos elevada, é o trabalho de manutenção e de correcção de via.
Não é possível explorar convenientemente uma linha com deficiências ou limitações de traçado ou de projecto, instalação ou manutenção da via férrea (por favor, não se lembrem de pôr passagens de nível nem partilhas ou cruzamentos com linhas de outros modos, nem curvas apertadas).
O que colide com a concepção “poupadinha” dos decisores (sim, a manutenção é cara e de muita responsabilidade): há que analisar muito bem se vale a pena “aproveitar” e remodelar a via férrea existente, até porque ela é única , ou se deverá projectar-se um novo traçado de via dupla, com recurso a viadutos e túneis para limitar as curvas verticais e horizontais (permitindo assim o aumento da velocidade de circulação).
Não conseguimos melhor que 150 km/h entre S.Bartolomeu e Tunes. Aqui, paragem de horário , para alimentar o ramal de Lagos. Um pequeno garrote á saída de Tunes e marcha entre 50 e 110 até Albufeira. Quase que se esvazia, o comboio, estamos no Verão. Pequenos movimentos de galope antes e depois de Loulé, mas também íamos a 150 km/h. E finalmente chegada a Faro, com a mensagem desanimada: “Pedimos desculpa pelo atraso”. Mas a indulgência é muita, e 11 minutos de atraso, com as condições de exploração da linha, é muito bom.
Esta poderia ser a lição 4: Não, 11 minutos de atraso não é muito bom, é medíocre; porque o horário já prevê muitos dos constrangimentos da linha, desde os atrasos nos cruzamentos às limitações de velocidade por deficiência da via.
Mas sim, também podemos dizer que 11 minutos é muito bom (enfim, entrámos em Faro 3 horas e 5 minutos depois de sairmos de Entrecampos, o que dá uma média de 91 km/h; tantas paragens de horário não ajudam nada a média, mas nós portugueses, gostamos que os comboios rápidos parem em muitas estações), se considerarmos que o trabalho dos profissionais envolvidos supre as limitações dos meios que lhes são postos à disposição. Se a nota final é baixa, não é por causa dos profissionais, mas devido às más decisões, ou à ausência de decisões, que de há muitos anos fustigaram a linha do Algarve.
E essa poderia ser a lição 5: importa que a percepção que se dissemina das coisas, neste caso do nível do serviço da linha do Algarve, não esconda os factos reais, que são o nível insuficiente do serviço prestado, apesar do brio dos seus profissionais. E que são urgentes decisões.
Não, o nível do serviço Lisboa-Faro não é satisfatório (o de Lisboa-Porto também não é, mas as condições também são outras, embora se possa dizer que ainda aqui o Pendolino não pode beneficiar da sua velocidade de ponta devido a limitações da via férrea e da exploração da linha, francamente saturada).
Se Portugal quiser usar a sua soberania e cumprir as boas regras de eficiência energética, terá de gastar dinheiro com as suas infraestruturas ferroviárias principais. Não será bom para os vendedores de veículos rodoviários, de transporte individual ou colectivo, nem para os vendedores de combustíveis fósseis, mas não parece haver alternativa, pese embora muitos economistas não concordarem com esta análise.
Mas também os economistas não são obrigados a aceitar argumentos técnicos, pois não? Além de que não somos obrigados a fazer tudo o que eles dizem…

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