quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Crítica de cinema - uma separação, filme iraniano


http://www.imdb.com/title/tt1832382/



O cinema iraniano é muito interessante.
A cultura iraniana está muito próxima da nossa cultura.
Aliás, os gregos antigos fizeram a síntese da cultura daquela zona.
Desde a matemática, às finanças, à escultura à arquitetura, à legislação, está lá o berço da nossa cultura.
Quando se vem do extremo oriente, Teerão faz lembrar Paris.
É uma cidade bonita, com gente simpática que mete conversa com os estrangeiros e lhes oferece chávenas de chá.
Os seus museus são interessantíssimos, vêem-se lá as gravuras dos nossos livros de história.
Por isso, independentemente do que nos separa, e o fundamentalismo religioso (Ahmadinjhad, ayatolas…) é uma coisa muito eficaz a separar as pessoas, tudo o que possa contribuir para aproximar os povos é bem vindo.
E o cinema iraniano tem esse valor.

A história de “uma separação” é curiosa, inclui uma investigação sobre um caso do quotidiano que obriga o espetador a pensar e a considerar as condicionantes religiosas e morais que oprimem o comportamento das mulheres, especialmente.
O interesse principal é mostrar a humanidade das personagens.
O que poderá ajudar os eleitores do ocidente a não apoiar os disparates da diplomacia, a qual amplia perigosamente os fatores de conflito em vez de os atenuar.

Mas tudo isto é pretexto para eu ir aos meus arquivos e repor a crónica que escrevi depois de ter estado em Teerão, na reunião de representantes de serviços técnicos de metropolitanos da UITP, em 2004

 

metro de Teerão, tecnologia francesa e chinesa
  
 
 
O TAPETE DE SHIRAZ OU RELATÓRIO DA VISITA AO METRO DE TEERÃO







Tenho, não ao cimo da escada como José Régio, mas debaixo da minha escada e com igual devoção, um tapete de Shiraz, de oração, que me foi oferecido pelo meu amigo Moamed Sandidzadé.
A mancha dominante é de vermelho vivo, dividida em duas figuras geométricas onde pontuam, estilizados, pavões, gansos e cordeirinhos, como se nos convidassem a ajoelhar no paraíso.
É um tapete persa, sem as restrições à representação de animais que outras confissões islâmicas impõem.
Sandidzadé é meu colega no Metropolitano de Teerão e foi nosso anfitrião numa das nossas reuniões do subcomité de Instalações Eléctricas.
O subcomité é uma espécie de clube de poetas mortos com representantes de uma dezena de metropolitanos de todo o mundo, onde discutimos as nossas questões técnicas, apresentamos os nossos relatórios, lamentamos a dificuldade em conseguir a aplicação das nossas soluções e onde de cada vez que nos encontramos confirmamos a insignificância das nossas diferenças.
O meu colega Jean Claude Clement, francês do Vietnam, casado com uma francesa do Vietnam que sempre o acompanhou, fez um discurso quando cessou as suas funções de secretário, por ter trocado Paris pelo Cairo, em missão de projecto.
Comovido (os engenheiros também se comovem) disse:

“Nós, técnicos, promovemos melhor do que os nossos políticos a compreensão e a paz entre os povos, porque trabalhamos para a resolução dos seus problemas de transporte, para que possam viver em zonas urbanas e possam deslocar-se para os locais onde produzem riqueza e são actores da prosperidade económica, porque nos encontramos e definimos as regras por que se regem os metropolitanos, para que todos os povos tenham ao seu dispor sistemas seguros”


Em 2003 o metropolitano de Teerão fez um esforço de abertura e enviou Sandidzadé às reuniões do subcomité. Fê-lo de pleno direito, dado que a sua rede é extensa, bem organizada, projectada com o apoio de técnicos franceses e incorporando em grande parte tecnologia chinesa (o Irão é um grande fornecedor de petróleo à China, a quem compra tecnologia).
A reunião em Teerão veio a verificar-se em 2004, ainda antes da malfadada crise do programa nuclear.
Só eu apareci acompanhado da esposa. Os restantes colegas deixaram-se impressionar pelas ideias feitas da imprensa ocidental sobre a república islâmica e acharam que não era seguro (mais tarde, vim a saber que, num dos casos, houve uma séria crise conjugal quando ficou provado que os iranianos são pessoas como qualquer pessoa deste planeta). Complexo de superioridade? Má informação?
Por razões de economia da tarifa aérea, fomos com dois dias de antecedência, o que nos permitiu percorrer alguns museus da cidade, bazares e ruas.
Sim, é verdade que muitas mulheres andam de chador negro e de saias negras até ao chão. Outras usam calças e casacos ou gabardinas até abaixo dos joelhos, sempre com lenços a cobrir a cabeça. Ao iniciar a manobra de aterragem, o comandante tinha informado que por decreto do governo, todas as passageiras deveriam cobrir a cabeça. E todas as passageiras, persas e estrangeiras, graciosamente e ruidosamente, abrindo as as suas bolsas, cumpriram o decretado.
Também não é agradável a ideia de que os principais dirigentes da sociedade são clérigos e que a república não é laica (o que a Humannidade já passou para se libertar disso...). Souberam entretanto rodear-se de técnicos que gerem bem a coisa pública. O metropolitano de Teerão é um exemplo.


Quando um amigo diz ou faz dois ou três disparates, deixamos de gostar dele, viramos-lhe as costas?


Retenho na memória:
o gesto afável com que o comerciante do bazar empurra a nota do troco,
a pergunta ansiosa do jovem empregado de outra loja: “o que pensam do meu país?”,
a solicitude com que em plena rua me estendem um copo de plástico com chá, num dia quente,
o discurso interminável do director do museu de artesanato quando vê dois ocidentais a olhar para as caixinhas de embutidos,
os sucessivos guardas de trânsito que acorrem depois de termos perguntado a um deles onde era o posto de turismo, cada um deles sugerindo um local ou perguntando aos passantes se falavam inglês para explicar melhor (não há posto de turismo em Teerão),
a conversa pela Avenida Vali Asr acima, (a antiga Palevi, 12 Km de comprimento, de sul a norte de Teerão) com um cidadão que se interessa pelo que fazemos e que nos conta o que faz e porque não vêm a minha casa?,
o trânsito insuportável nas ruas de Teerão (“Teeran, Teeran” ... dizia o motorista do táxi do hotel, situado na periferia, quando chegava ao início do engarrafamento – o preço da gazolina é muito baixo),
o movimento dos jovens à volta das universidades e das livrarias do bairro universitário,
os jardins de Teerão (paraíso é uma palavra persa)… num deles há um museu de arte contemporânea como se estivéssemos em Serralves…
a réplica do código de Hamurabi (o original está no Museu do Louvre) no museu nacional, juntamente com os alto-relevos, baixos-relevos e esculturas que eu tinha no meu livro de história do liceu, os altares de Zoroastro (a primeira religião que nos falou do paraíso e do inferno...) ; a nossa civilização começou aqui, à volta de Susa; estão aqui as nossas raízes...
os olhos bonitos e azuis, contrastando com o negro do chador, da jovem professora de inglês que vive em Shiraz e meteu conversa connosco na cafetaria do museu nacional,
o ar maroto da guia que acompanhou minha mulher no programa organizado pelo metropolitano de Teerão e que a levou a participar numa cerimónia religiosa numa mesquita; minha mulher, uma agnóstica confessa…


Sandidzadé tinha sofrido havia pouco a morte da mulher e de uma filha num acidente de automóvel, mas superou e recebeu-nos muito bem. A sua intervenção sobre os consumos energéticos em função do tipo de marcha do comboio foi correctíssima. A oferta de um tapete de oração a cada um de nós foi um gesto de amizade.
Infelizmente, na reunião seguinte, em Nova York, não nos foi possível rever Sandidzadé. Os políticos, mais uma vez, sobrepuseram-se aos técnicos e não houve visto.
Mas pudemos rever-nos em Lisboa no ano seguinte.
Espero que os versículos do Corão que apelavam à não amizade com os infiéis, por terem sido escritos em contexto completamente diferente e referindo-se apenas ao povo árabe e numa altura de guerras tribais, não sejam seguidos por Sandidzadé e pela confissão da republica islâmica do Irão.


E é por isto que debaixo da minha escada o tapete de Shiraz é objecto da mesma devoção que José Régio tinha pela sua Nossa Senhora de madeira. Devoção minha, eu, um agnóstico confesso...











Tenho ao cimo da escada, de maneira
Que, logo entrando, os olhos me dão nela,
Uma Nossa Senhora de madeira
Arrancada a um Calvário de capela.
Põe as mãos com fervor e angústia. O manto
Cobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;
E uma expressão de febre e espanto
Quase lhe afeia o fino rosto...
Mãe de Deus, seus olhos enevoados
Olham, chorosos, fixos, muito além...
E eu, ao passar, detenho os passos apressados,
Peço-lhe: “A tua benção, Mãe!”.
Sim, fazemo-nos boa companhia.
E não me assusta a sua dor, quase me apraz:
O Filho desta Mãe nunca mais morre. Aleluia!
Só isto bastaria a me dar paz!
“Porque choras, mulher?” – docemente a repreendo.
Mas à minha alma, então, chega de longe a sua voz
Que eu bem entendo:
“Não é por Ele...”. “Eu sei! Teus filhos somos nós.”


                                            José Régio, "Mas Deus É Grande"

























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