quinta-feira, 20 de abril de 2017

Investimentos em ferrovia, situação em abril de 2017, dois interessantes artigos e umas contas menos interessantes


Declarações do senhor primeiro ministro sobre a alta velocidade
Segundo as notícias, o senhor primeiro ministro não crê que se discuta a ligação ferroviária de alta velocidade antes de 2023. Ver
https://www.dinheirovivo.pt/empresas/costa-so-discute-comboios-de-alta-velocidade-apos-2023/

É curioso que estas afirmações tenham sido feitas em Espanha, quando tem sido deprimente ao longo dos anos o insucesso das participações portuguesas nas comissões técnicas luso-espanholas. Principalmente porque os técnicos participantes não estão autorizados a tomar decisões e os governantes não se decidem, provavelmente por simples ignorancia da problemática em causa. Desde o caso das águas, com estudos prévios e anteprojetos bem feitos do lado de cá, mas ausencia de decisões governamentais. E aproveitamento das águas em sucessivos planos do outro lado. Do lado de cá protesta-se, mas esquece-se que não se deu andamento às conclusões das reuniões luso-espanholas.
O mesmo para a energia, com um panorama miserável no domínio das interligações.
E também nas ligações ferroviárias. Do lado de lá avança-se lentamente em bitola UIC até à fronteira com Portugal, mais no interesse de Mérida, de Badajoz (plataforma logística) e de Vigo, Santiago, Zamora, e Salamanca (plataforma logística). Protestos do lado de cá, esquecendo-se, quem protesta, dos acordos de 2003 por Portugal esquecidos. E como dizia o embaixador de Filipe II, os portugueses são gente estranha, não se compreende nem o que eles fazem nem o que não fazem (afirmação que só poderá subscrever-se parcialmente, que o embaixador não devia ser lá muito boa pessoa).

Primeiro artigo, ponto de vista do lado espanhol
Veja-se a propósito este artigo da correspondente da Voz de Galicia em Lisboa, lamentando a falta da ligação de alta velocidade Lisboa-Madrid e Porto-Vigo. Não digam que não há dinheiro, não é preciso pagar tudo de uma vez, o empreendimento prolonga-se por vários anos, e se compararmos com os 5.000 milhões de euros gastos todos os anos com a importação de automóveis e os jogos na internet...
http://www.dn.pt/opiniao/opiniao-dn/convidados/interior/alta-velocidade-o-grande-assunto-pendente-6224610.html

Escreveu a jornalista que António Costa previa considerar a alta velocidade no programa comunitário de 2020. Infelizmente ele próprio desmentiu, só depois de 2023. Eu até concordaria, com a condição de se começar já a elaborar o projeto e o caderno de encargos. O senhor ministro do planeamento e infraestruturas não ajuda, mais preocupado com a aplicação dos fundos a pequenas empresas e a start-ups, coisa louvável em si, sem dúvida, mas esquecer os investimentos na ferrovia , entre outras coisas, é desrespeitar os compromissos internacionais de redução de emissões com efeito de estufa.
É verdade que nem o senhor primeiro ministro nem o senhor ministro das infraestruturas têm obrigação de conhecer os valores dos consumos energéticos e das emissões para cada modo de transporte, mas podemos tentar que cheguem até eles estas pequenas e aborrecidas contas.

Contas desinteressantes
Vamos ao artigo da wikipedia sobre os consumos energéticos:
https://es.wikipedia.org/wiki/Consumo_de_energ%C3%ADa_del_tren_y_de_otros_medios_de_transporte

Admitindo 550 km para a viagem aérea Lisboa-Madrid e 650 km  para a viagem ferroviária em alta velocidade (dado  que a parte portuguesa não quis saber, o traçado de alta velocidade percorre os catetos definidos por Badajoz-Merida e Merida-Caceres e entronca na linha Sevilha-Madrid), e considerando os consumos por passageiro.km resultantes da experiencia do AVE e dos voos entre Madrid e Barcelona com as taxas de ocupação referidas, temos:

AV   650km x 0,017 litros equiv./pass.km =  11,05 litros equiv/passageiro
voo  550km x 0,063 litros equiv/pass.km =  34,65 litros equiv/passageiro

fazendo 1 litro equivalente de gasolina no posto de combustivel igual a 11 kWh, e considerando que segundo a TAP e a Iberia temos 11 voos diários Lisboa-Madrid (aproximadamente 1500 passageiros por dia), teremos os seguintes consumos totais por dia:

AV       11,05 litro eq/pass  x 11 kWh/litro eq  x 1500 pass = 182325 kWh
voo      34,65 litro eq/pass  x 11 kWh/litro eq  x  1500 pass = 571725 kWh

ou, por ano:

AV      182325 x 365 =  66 548 625 kWh
voo     571725 x 365 = 208 679 625 kWh

Isto é, o consumo de energia anual para transportar 1500 passageiros por dia entre Lisboa e Madrid custa 67 GWh em alta velocidade ferroviária ou 209 GWh em avião.
Note-se, de acordo com o artigo da wikipédia, que os valores em litros equivalentes de gasolina se referem ao posto de combustível. O que quer dizer que, para considerar os consumos com a extração, refinaria e transporte, há que multiplicar por 1,3 . Enquanto no caso do AV há que multiplicar pelo fator de perdas de transporte de energia elétrica desde os centros produtores de energia renovável (eólicas, hídricas e solares), ou 1,1 . Mas vamos simplificar e desprezar os custos de manutenção e de operação (exceto energia já considerada) das infraestruturas de transporte, para não agravar a fatura das operadores de avião.
Temos assim que por ano gastamos atualmente em energia cerca de 209 GWh com a ligação aérea Lisboa-Madrid.
Imaginemos que o senhor primeiro ministro, confrontado com estes números, tinha uma inspiração como quando se lembrou da corrida burro-Maserati que esteve na origem do prolongamento do metro do Campo Grande para Odivelas. E salomonicamente (ou fiscalmente, conforme o ponto de vista, com taxas de carbono) decretava que metade do tráfego seria assegurado por avião e a outra metade, depois de, com os devidos projetos elaborados, obter os fundos comunitários necessários, quiçá do plano Juncker para infraestruturas.
Teriamos    33,5 GWh consumidos pelo AV  e   104,5 GWh consumidos pelos aviões.
Ou uma economia relativamente à situação atual de 104,5 - 33,5 = 71 GWh
Coisas de somenos, se supusermos o preço grossista do MWh a 50 euros (5 cêntimos o kWh), temos cerca de 3,5 milhões de euros. Realmente, o que é isto comparado com o que se gasta em automóveis de alta cilindrada alemães?

Quase tanto como o que consome o metropolitano de Lisboa. Com a vantagem adicional do AV consumir energia renovável e o avião o petróleo que não temos.

Mas o mais provável é que não se pense mesmo em mudar este estado de coisas. A economia está a funcionar tão bem, só os países ricos é que se lembrariam de poupar no AV. Nós não precisamos, era um gasto dispensável em infraestruturas.

Segundo artigo
O que se ajusta perfeitamente ao segundo artigo que referi no título. Um excelente artigo de Carlos Cipriano, no Público, sobre os males da rede ferroviária portuguesa, vítima de anos de desinvestimento e de cortes na manutenção, que se traduziram por descarrilamentos:
https://www.publico.pt/2017/04/16/economia/noticia/dezasseis-comboios-descarrilaram-em-portugal-nos-ultimos-tres-anos-1768692

Trata-se duma análise muito bem feita. Que permite estabelecer a correlação entre a falta de manutenção e de investimento e os descarrilamentos verificados, especialmente com comboios de mercadorias (em que estado andarão os vagões, a geometria dos seus rodados, a lubrificação dos seus rolamentos...). Apenas comento que o acidente de Alfarelos
(que o GISAF classificou como consequencia do mau tempo  http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2013/01/declaracao-de-interesses-o-comentario.html)
provavelmente teria ocorrido mesmo se a via tivesse sido renovada, uma vez que o material circulante circulava com deficientes condições de travagem e o CONVEL deslocalizou com a patinhagem não tratada das rodas .
Carlos Cipriano comenta o entusiasmo e auto-contentamento do senhor ministro das infraestruturas com a modernização de pequenos troços de via férrea. Bem esclarece que isso não é investimento, é manutenção, mas o senhor ministro fala de 2700 milhões de euros para a ferrovia, de 4,7 milhões de euros para renovar 4,3 km de linha entre Valadares e Gaia onde passam 190 comboios por dia, de 18,5 milhões para renovar o troço de 9 km entre Elvas e a fronteira do Caia pertencente à linha de Abrantes-Portalegre-fronteira do Caia, ou para construir linha nova, sempre em bitola ibérica (mas com a desculpa de que as travessas são de dupla fixação) entre Évora e o Caia , numa extensão de 92 km e com um custo de 476 milhões de euros. Será o mesmo traçado do fracassado projeto da linha de alta velocidade, que previa na mesma plataforma, entre Évora-Norte e o Caia, uma via única (em bitola ibérica) para mercadorias?
 A construção da linha do TGV Poceirão-caia foi anulada em 2012 pelo XIX governo, apesar do financiamento de 85% comunitário, graças a objeções jurídicas do tribunal de contas parcialmente fundadas num plano de financiamento com parcerias público-privadas de caraterísticas rentistas para o concessionário e desfavoráveis para o concedente, e em cláusulas de indemnização em caso de anulação do contrato pretensamente ilegais (não é uma petição de princípio e um juízo de intenção anular um contrato ou supor a sua adjudicação por causa de uma cláusula que só seria acionada se o contrato fosse resolvido? acresce que o próprio TC reconheceu que a CP e a REFER não responderam aos seus pedidos de esclarecimento, e com a ausencia de resposta se contentou; depois admiram-se do Estado ter sido condenado a indemnizar o consórcio).
O pretexto do XIX governo para anular o contrato do TGV era dar prioridade ao transporte de mercadorias de Sines para Badajoz , o que, como era de esperar, não passou de um saco cheio de ar. Passados 5 anos, temos um ministro de infraestruturas a fazer um anúncio, sem disfarçar o quanto aprecia a sua própria atuação, da forma como Carlos Cipriano termina o seu artigo: "o ministro Pedro Marques foi no dia 31 de Março a Elvas anunciar a modernização de ...11 quilómetros de via férrea. " (penso que são 9).
 













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