quarta-feira, 12 de abril de 2017

O metro em Alcântara, uma ficção em 2014

O texto seguinte foi publicado em 2014 integrado no livro "Crónicas de um metropolitano", da Chiado editora. Não é bonito eu estar a propagandear um texto meu, mas o texto, tão ficcional, é tão atual, quando o XXI governo e a CML ameaçam cometer o erro da ligação do Rato ao Cais do Sodré, que venho juntá-lo ao anterior powerpoint em
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2017/03/blog-post.html
e
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2017/02/expansao-da-linha-amarela-do-metro.html

o metro chega a Alcântara

Este texto é uma ficção. Os decisores do governo central e da cidade ao longo dos anos nunca compreenderam o papel estruturante da ligação de metropolitano de Alcântara ao centro de serviços de Lisboa.
 Não foi possível prolongar a linha que ficou no Rato, embora a galeria tenha sido construída até junto do jardim da Estrela, servindo como zona de inversão e de garagem.
Não foi possível prolongar a linha que ficou em S.Sebastião.
Mas este texto imagina que sim, que era para continuar até Campolide, que, sendo a construção da estação de Campolide muito cara por ser muito profunda, não se fez a estação e continuou-se até às Amoreiras, e por Campo de Ourique se chegou a Alcântara, compatibilizando, num exercício de pura ficção, o término do metro com o serviço dos terminais marítimos de cruzeiros e de mercadorias.
É no entanto provável que haja algumas concidências entre a realidade e a ficção, mas nem eu sei dizer quais, nem sequer se o terminal marítimo de Alcântara, com os seus painéis de Almada Negreiros e a memória trágica das partidas da tropa para África, ainda faz serviço de cruzeiros ou de contentores.


Quando estava no seu gabinete, Joana tomava uma atitude de muita concentração. Por isso mal deu por mim quando entrei e comecei a examinar uma coleção de fósseis, encontrados nas escavações da obra.
Recusou com secura quando lhe pedi que me deixasse levar uma turritela de dimensões razoáveis.
Disse que os fósseis já eram património do metropolitano, pegou no capacete e no colete de segurança e rapidamente saiu do gabinete.
– Vou à obra, queres vir?
Não respondi, mas fiz menção de a acompanhar, atrasando-me, apenas para poder vê-la afastar-se pelo corredor, deslizando compassadamente sobre as suas botas de ir à obra, e observar as diferenças do balanço das suas articulações em comparação com os saltos muito altos que gostava de usar.
Joana tinha o defeito de ser muito fechada no relacionamento que tinha com a administração. Não gostava de deixar transparecer nada do que tratava com ela.
As reuniões gerais de controle do planeamento da obra vinham rareando, e Joana não se sentia à vontade para tomar decisões ou dar andamento às nossas propostas.
Como diretora da obra de expansão até Alcântara, Joana reportava diretamente ao vice-presidente da administração e coordenava a intervenção dos projetistas de construção civil da afiliada FERCONSULT.
Eu intervinha como coordenador dos meus colegas responsáveis pelas especialidades caraterísticas de metropolitanos, como a sinalização ferroviária, a energia de tração, as telecomunicações aplicadas, a via férrea.
As reuniões serviam para a equipa de planeamento detetar as ameaças ao cumprimento do cronograma e para analisarmos propostas de solução.

Era aí que Joana revelava incomodidade. O administrador dava-lhe instruções, ou dizia-lhe para não seguir as nossas propostas, mas não escrevia as suas ordens.
Por mais de uma vez pedi a Joana que insistisse em ordens escritas, especialmente depois de ele ter recusado alterações importantes ao projeto das estações para facilitar o acesso de pessoas com mobilidade reduzida.
Joana era uma profissional responsável, já com provas dadas em anteriores empreendimentos, com as contas finais dentro do orçamento original.
Porém, o inicio da obra tinha sido penoso devido a dificuldades de expropriação e de elaboração do estudo ambiental, por motivo dos riscos de inundação da bacia de Alcântara. A zona é de terrenos aluvionares junto da ribeira entubada e da doca de aterro, e motivou cuidados especiais na elaboração do projeto do viaduto onde se situaria o término, com correspondência dos passageiros com a linha suburbana de Cascais e, através de um funicular, com a linha suburbana da ponte 25 de abril. A solução do viaduto foi relutantemente aceite pela Câmara de Lisboa, que invocava as interferências visuais no Palácio das Necessidades e na Fundação do Oriente. Porém, o argumento de poupança energética ao evitar-se o maior declive se o término fosse enterrado, e os menores custos de construção do viaduto, foram determinantes da aprovação.
As dificuldades construtivas foram sendo ultrapassadas aos poucos, caso a caso, complicando a evolução do cronograma contratual e suscitando dúvidas sobre o seu cumprimento.
Sobreveio ainda outro motivo de atraso, ao partir do próprio metro a iniciativa de alterar o projeto contratual da estação Maria Pia, na fronteira do bairro de Campo de Ourique, junto do flanco sul do cemitério dos Prazeres, construída já em viaduto, de modo a garantir a futura correspondência com o prolongamento da linha do Rato para Algés.
Foi ainda moroso o processo de aprovação do projeto de um grande parque de estacionamento junto do centro comercial das Amoreiras, integrado no plano de urbanização da zona norte de Campo de Ourique, para transferência para o metropolitano dos utilizadores da autoestrada de Cascais.
Tudo isto provocou atrasos, uns da responsabilidade do metropolitano, outros da responsabilidade do consórcio de empreiteiros.
A fiscalização demorou-se na análise.
Por essa altura tinha-se deteriorado gravemente o relacionamento entre o presidente e o vice-presidente da administração.
O presidente suspeitava de ligações do vice-presidente com o famoso gabinete que estivera na origem do túnel do Marquês e com grupos de interesses imobiliários que tinham comprado extensas porções de terrenos em Alcântara, com os restos da anterior vida industrial da zona, a preços baixos por motivo dos condicionamentos do plano diretor municipal, e que tinham pressionado a assembleia municipal até o alterarem. Presumiam-se elevadas mais valias ilícitas, quiçá com destino a cofres de partidos.
Sem conseguir provar nada, o presidente, como economista, julgou poder obter receitas que contrariassem os resultados negativos normais num metropolitano através da aplicação de uma multa ao consórcio construtor por não ter a obra pronta no prazo previsto e porque tinha revisto o cálculo de betão armado da placa de cobertura da estação Maria Pia, prolongando a execução da obra da estação.
O vice-presidente não transmitiu a ordem a Joana e, sempre sem ordens escritas, determinou a negociação com o consórcio da aceleração dos prazos de execução.

Quando 6 meses depois o presidente insistiu, a fiscalização elaborou à pressa um relatório por medida, que o presidente enviou ao diretor coordenador com ordem para aplicação da multa. Mas a ordem ficou esquecida na lista de documentos do sistema informático de gestão documental no computador do diretor coordenador.
Joana estava de férias, depois de ter deixado um memorando com o ponto da situação, também ofuscado no computador do diretor pela chuva de documentação do sistema.
No regresso de férias, tinha à sua espera um processo de inquérito com a acusação de favorecimento indevido dos empreiteiros. Como habitualmente, os auditores cingiramse a aspetos jurídicos e contabilísticos e fundamentaram à administração o despedimento com justa causa.
Felizmente, veio a repetir-se o episódio da resposta do pequeno agricultor a Frederico o Grande, “ainda há juízes em Berlim”.
Joana contestou em tribunal do trabalho o despedimento e ganhou a ação.
O empreendimento da extensão a Alcântara foi concluído sob a direção de outro colega, com respeito pelo orçamento inicialmente previsto, como era timbre de Joana.

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