sábado, 29 de dezembro de 2012

Em casa de Ary

Os velhos de pouco vão valendo, como se sabe pela simples observação.
Mas ainda podem ser úteis, como já se escreveu neste blogue, para quem gostar de fazer investigações do tipo de “a vida quotidiana no tempo de…”.
Poderá ser essa a única utilidade do texto que se segue, uma evocação de um tempo distante, visto como uma memória do trabalho no metropolitano de Lisboa.
Mas tenho de avisar o leitor: o texto contem uma discronia.
O espetáculo de canto livre do Coliseu dos Recreios aconteceu realmente pouco depois de eu ter começado a trabalhar no metropolitano, em 1974.
Mas o encontro em casa de Ary dos Santos tinha ocorrido 3 anos antes, por altura da preparação das suas canções para um festival da canção da Televisão.
Quanto ao resto, é possível e provável que falhas de memória tenham trocado ou omitido pormenores importantes.
Do que peço desculpa.





Em casa de Ary

Na última semana de Março de 1974, o metropolitano de Lisboa recebeu a visita de um técnico destacado do metropolitano  de S.Paulo, ou, como lá se diz, por influencia francesa,  do metrô.
Tinham tido conhecimento dos planos de expansão da rede de Lisboa e queriam conhecer pormenores.
Por essa altura, o metro era o anfitrião de uma firma de consultores alemães ligados à Siemens, a Deconsult, contratados para explicar como se elabora um plano de expansão de uma rede de metro e para o elaborar.
Tinham um gabinete ao fundo da Rua do Conde de Redondo, com especialistas das várias especialidades que se iam rendendo à medida do avanço do projeto e tinham contratado alguns portugueses exteriores ao metro como desenhadores e como técnicos para as traduções e revisão das traduções.
A  sua fama também tinha chegado ao Brasil e o técnico de S.Paulo queria saber a impressão que tínhamos dos consultores, para eventualmente  os convidarem a aumentar a sua participação no estudo da extensão do metro de S.Paulo cuja rede estava então no inicio, preparando o inicio da exploração comercial para o fim do ano.
O choque entre os técnicos de duas culturas era interessantíssimo. À vivacidade imaginativa dos portugueses respondiam os alemães com a citação rigorosa das normas de cálculo e de construção. Contavam-nos os nossos colegas da tradução que, depois de sairmos, os técnicos alemães ficavam a comentar as nossas propostas e por vezes descriam delas. Melhoraram, porém, quando ardilosamente  lhes apresentámos o projeto das linhas que saíam do lado norte da estação Rotunda (agora chamada Marquês de Pombal) como uma 2ª fase que não tinha chegado a ser construída. O parecer alemão foi de que não era possível construir as linhas daquela maneira, e na verdade teria ficado mais barato construir de inicio as linhas separadas. E ficaram muito surpreendidos quando os informámos que as linhas já estavam construídas, embora parte da construção tivesse de ser destruída para se fazer a chamada desconexão das duas linhas (os comboios que vinham de Alvalade_/Rossio para a Rotunda seguiam uns para SeteRios e outros para Entrecampos. O objetivo do novo plano de expansão era o de criar duas linhas independentes: uma de Alvalade/Rossio para Sete Rios e outras de Rato para Entrecampos).
Paulo Giannini, assim se chamava o técnico brasileiro, gostou de falar connosco, da volta que deu pelas estações de metro e dos contactos com os consultores alemães, numa altura em que a exploração do primeiro troço de 6 estações da rede de S.Paulo ainda estava em período experimental,. Alem do mais, informei-o que o meu quinto avô materno também era Giannini, adaptado em português para Janiny e perdido na transmissão de mães para filhos. Também ele, como os antepassados do brasileiro, de origem napolitana, fugido às perturbações de Garybaldi, apesar de ferveroso liberal, mas com horror às lutas, talvez também com horror às pastas e massas italianas.
Durante a visita de cortesia à administração, coube-me a mim, talvez por ser o mais novo ou pelas afinidades do apelido Giannini, a missão de acompanhar Paulo a um jantar oferecido pelo metropolitano.
Recomendou o presidente da administração o Gambrinus, que devia ser a época da famosa perdiz.
Receei que Paulo Giannini não achasse graça, quando lhe disse que não ia ser possível jantarmos num restaurante caro, apesar da generosidade do metropolitano, porque já tinha um compromisso para essa noite. Tinha de assistir ao espetáculo  no Coliseu dos Recreios, organizado pela Casa da Imprensa, “o primeiro encontro da canção portuguesa”.
Estávamos em 29 de março de 1974, 2 semanas depois do levantamento militar das Caldas da Rainha e 4 semanas antes da revolução de 25 de Abril. Que era importante eu ir porque minha mulher, um dos elementos do quarteto Intróito, ia cantar.
A canção de intervenção não era a arma decisiva contra a ditadura pós-salazarista e a guerra colonial, nenhuma revolução se faz com a guitarra na mão, mas era uma expressão de vontade de liberdade que ajudava a tomar consciência da necessidade de mudança para uma sociedade  democrática.
Paulo Giannini ficou entusiasmado. Também ele sentia dores de estômago pela situação politica na América do Sul, com a dependência da exploração das grandes empresas  norte americanas, com a experimentação obscena das teses económicas de Hayeck, Friedman e Halberger, os Chicago Boys, a quem ele chamava “the sickago boys”, com o golpe de Pinochet no Chile e a manutenção desde 1964 da ditadura dos generais brasileiros.
Jantámos então duas bifanas e dois pires de arroz doce numa das tasquinhas da rua das Portas de Santo Antão, até fazermos horas para nos encontrarmos com os artistas e entrarmos com eles para os bastidores.
Todos os artistas, a começar pelo decano José Afonso,  e nisso revelaram bom senso, evitaram provocar os agentes da PIDE destacados para o espetáculo, e que pareciam alheados, talvez por premonição.
Ary dos Santos destacou-se do grupo de cantores, depois de várias intervenções, para dizer SARL, SARL, SARL,

S.A.R.L. S.A.R.L S.A.R.L.
a pança do patrão não lhe cabe na pele
a mulher do gerente não lhe cabe na cama.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o cabedal estoira
e o capital derrama

O salário é sagrado
o direito é divino
mais o caso arrumado do poder que é bovino.

O papel é ao quilo
o cadáver ao metro
mais o isto e aquilo
com que se mata o preto.

O retrato é chapado
a moldura é antiga
para um homem armado
a catana é cantiga.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o respeito algemado
o sorriso fiel
do senhor cão pastor que tem coleira aos bicos
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
só salvamos a pele se formos cães de ricos:

A palhota de mágoa
a casota de medo
mais o pão e a água
que nos dão em segredo.

A gaveta arrumada
a miséria contida
mais a fome enfeitada
que há nun dia de vida.

O cachorro quieto
o prazer solitário
do filho predilecto
do doutor numerário.

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
a folha de serviços a folha de papel
o fabrico o penico o sono estuporado.
S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
o silêncio por escrito o silêncio ladrado:

A mensagem urgente
o envelope fechado
mais o rabo pendente
do animal escorraçado.

O contínuo presente
o contínuo passado
mais a fala deferente
do contínuo coitado:
Permite-me permite
Vossa Celebridade
o limite o limite
o limite de idade?

S.A.R.L. S.A.R.L. S.A.R.L.
Ai o sal deste mar ai o mel deste fel
o azeite o bagaço
o cagaço o aceite
deste lagar Tarzan traumatizado.
Ai a fase do leite
ai a crise do gado
neste curral sinónimo do homem
ANÓNIMO
RESPONSÁVEL
LIMITADO.

O quarteto Intróito cantou a sua doce canção “Um dia vestiremos de branco”, Adriano Correia de Oliveira “este parte, aquele parte”, o poema de Rosália de Castro,  e José Afonso “Grândola, vila morena”, com todos os outros abraçados em cante alentejano.
Na plateia, alguns jovens que eram capitães profissionais acharam,  que aquela canção poderia ser o emblema da revolução.
E nisso interpretaram bem a letra, a musica e a forma coletiva de a interpretar.
O Coliseu cheio, "um momento mágico que não se explica; os músicos que ali cantaram estavam habituados a palcos muito pequenos, em universidades, em associações..." como disse José Jorge Letria ; reportagem da Visão /História nº20 de maio 2013, com fotos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo

mesma fonte; da direita para a esquerda: Carlos Alberto Moniz, Maria do Amparo, parte do grupo Introito (, Pedro Sousa Faro, Isabel Pires, Nuno Gomes dos Santos), Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Fausto, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Ana do Introito, José Barata Moura)

Enquanto saiamos da grande sala, fui dizendo a Paulo Giannini que mal podia acreditar que tivesse sido possivel aquele espetáculo, que a PIDE se tivesse mantido alheada, e que se quisesse podia seguir para o hotel, mas que nós, com parte dos artistas, iamos para a casa de Ary.
Paulo Giannini tinha o avião cedo para o Brasil no dia seguinte, mas veio connosco.
A casa de Ary ficava na costa do Castelo, ao lado das ruínas do teatro romano. A sala grande tinha um desnível a meio a que se encostava por um enorme globo.
O quarteto Intróito cantou algumas das canções proibidas, claramente denunciadoras da guerra colonial, que teria sido arriscado cantar no Coliseu. Pedro Osório acompanhou ao piano Tonicha em canções de Nuno Nazaré Fernandes e  Ary dos Santos, compostas para os festivais da canção da televisão, então ainda com algum impacto. Samuel cantou solidário e romântico a balada da professora de português perseguida por ter tido um caso com um aluno, José Jorge Letria o esboço da “cantiga é uma arma contra a burguesia” e José Barata Moura  a sua “não vamos brincar à caridadezinha”. Ary recitou novamente SARL, SARL, SARL e depois “aos vindouros, se os houver”, do seu admirado colega publicitário O’Neill:
Vós, que trabalhais só duas horas a ver trabalhar a cibernética,
que não deixais o átomo a desoras na gandaia, pois tendes uma ética; que do amor sabeis o ponto e a vírgula e vos engalfinhais livres de medo,
sem peçários, calendários, Pílula, jaculatórias fora, tarde ou cedo;

computai, computai a nossa falha sem perfurar demais vossa memória,
que nós fomos pràqui uma gentalha a fazer passamanes com a história; que nós fomos (fatal necessidade!)
quadrúmanos da vossa humanidade.


Luis Stau Monteiro pediu a todos, de mão dada com ela, sentados no desnível,  que não faltassem à estreia de uma sua Matilde, valquíria imponente de nariz arrebitado e olhos muito azuis, que o fascinara e a quem queria com assinalável insucesso transformar em grande atriz. Matilde é a heroina da grande peça de Stau Monteiro, “Felizmente há luar”, e é uma verdadeira heroína, o ideal da mulher nas lutas contra o absolutismo.
Ary esteve a falar com Paulo Giannini do seu encontro com Vinicius, havia 5 anos, quando tinha participado no Zip-Zip, comparou as duas ditaduras e contou que pensava escrever um poema sobre a história de uma militante comunista que se tinha apaixonado pelo seu torturador. O brasileiro retribuiu recitando o soneto da fidelidade de Vinicius:

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Os anos passaram, morreu Adriano, morreu Ary, morreu José Afonso e voltei a encontrar Paulo Giannini nos finais dos anos 90, na reunião em Lisboa dos metros da associação Alamys, da América Latina e da Ibéria, que isto das reuniões internacionais de técnicos de transportes permite uma compreensão mútua muito melhor do que os congressos dos políticos.
Paulo Giannini havia 12 anos que tinha tido a alegria de ver cair a ditadura dos generais e de ter participado no crescimento do seu metro, então uma rede com cerca de 50 km e alta incorporação de tecnologia brasileira.
Discutimos com o eterno maldizer as burocracias paralizantes, a pressão enorme dos interesses dos grupos das grandes construtoras, as jogadas de promete e foge dos políticos quanto ao financiamento dos metropolitanos, as dificuldades dos projetistas perante a ignorância dos decisores.
Mas também possíveis melhorias, desde a marcha automática dos comboios com maquinista a bordo, já correntemente utilizado em S.Paulo e de que o metro de Lisboa se preparava para lancar o concurso internacional, até ao recurso sistemático a viadutos nos eixos das avenidas para poder combater-se legitimamente o tráfico automóvel, coisa mais fácil de entender pelos decisores brasileiros do que pelos portugueses.
E foi bom recordar o espetáculo de 29 de Março de 1974.




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