quinta-feira, 23 de junho de 2022

Carta a um diretor de jornal a propósito da polémica do novo aeroporto

 Caro Diretor

A guerra selvática (e algumas ocupações minhas, ocupações não invasivas, devo esclarecer) tem-me impedido de dar seguimento à ameaça que fiz em anteriores emails de lhe sugerir temas para publicação no seu jornal. 
Na minha perspetiva, a maior parte dos temas que considero importantes para melhorar a economia do país estão relacionados com a engenharia e não são de interesse mediático, até porque pedem que se pense e se façam contas. Perdoe-se-me o tique corporativo das "guildas medievais", mas a ordem dos engenheiros não é só corporativa, devia ser mais ouvida nas questões das energias, das infraestruturas e por aí fora. 
É um bocadinho a síndroma do "não olhem para cima". Estamos tão bem a discutir questõezinhas da moda, tão mediáticas, que não pensamos  no que nos pode vir a afetar. Por exemplo, há dias enviei para a sua secção de cartas ao diretor em comentário lamentando a fecho do terminal rodoferroviário da Bobadela (movimentação de 300.000 contentores por ano, não é um depósito). Os seus colaboradores acharam que não tinha interesse mediático e não publicaram. Mas parece-me que comentar um erro económico do governo tem interesse: quanto custa em termos diretos e indiretos deslocalizar o terminal? para onde? estão estudadas as medidas de segurança para um evento de mais de 1,5 milhões de pessoas como dizem os promotores? não se poderia compatibilizar o uso do terreno para atividades de lazer e para manter algumas valências como terminal rodoferroviário?
Mas este não é o tema que me levou a escrever-lhe, foi um seu editorial.
Tentemos usar a inteligência comum para desvendar alguns mistérios:
1 - bagunça por bagunça, há-a em Heatrow e em Schipol, por exemplo. As coisas e as organizações não puderam readaptar-se por passe de mágica, e como no nosso país o planeamento , mesmo da Vinci/Ana , não é coisa que seja apreciada, corremos o risco de, se se conseguir fazer um novo aeroporto, continuar a bagunça, mesmo com os passaportes eletrónicos, até porque quem lá trabalha dá-lhe tanto jeito ir de carrinho até à Portela, imaginem a chatice de ter de atravessar a ponte
2 - consenso sobre a localização - aqui um pequeno comentário às "décadas de intermináveis discussões". A primeira localização, Rio Frio, ainda no tempo de Marcelo Caetano, estava correta, haveria apenas de analisar bem o trajeto dum corredor primário de aves do estuário do Sado para o do Tejo, mas a coisa podia compor-se. Apoio penso que dos aeroportos franceses. Terrenos em grande parte públicos, poupava-se nas expropriações. Terá sido um erro do 5º governo provisório, por razões de economia financeira, não o ter incluído no relançamento dos grandes investimentos (foi, foi no 5º governo, Alqueva, Sines, a quem a mentalidade portuguesa, sempre avessa a coisas novas que seja preciso "olhar para cima" chamava "elefantes brancos"). A pressão turística também não era muito grande, até o aeroporto de Málaga movimentava mais passageiros do que o de Lisboa. 
Mas enfim, no tempo do senhor primeiro ministro que nunca tinha dúvidas, a Força Aérea, para racionalizar as suas bases, decidiu fechar uma. Os seus engenheiros aeronáuticos analisaram as condições aeronáuticas dos seus aeródromos e concluíram que a base da Ota era a pior e portanto era aquela a abater (realmente com aquele morro, com os ventos do Atlântico encanados pelo Montejunto, não dava jeito). E o senhor primeiro ministro, rápido e sagaz nas suas decisões disse logo, o novo aeroporto vai para a Ota, e uns senhores importantes nas administrações da CP imediatamente corroboraram, ótimo, faz-se uma estação da linha do Norte em pleno aeroporto. Alguns colegas da especialidade fizeram umas contas e concluíram que eram precisos 2 anos para terraplanar aqui, aterrar ali, desviar cursos de água acolá, desbastar o morro, gastar dinheiro em grande. Os colegas da CP  ou tiveram receio de explicar aos administradores que a linha do Norte já estava saturada e teria de se fazer uma linha nova e que deveria ser de bitola europeia, ou então limitaram-se a cumprir as ordens. Muda o governo e é preciso justificar a Ota com a valorização dos terrenos à volta a crescer. Já temos uma senhora ministra do ambiente, que ouvida diz que sim, que em Rio Frio haverá que tomar medidas para resolver problemas ambientais, e um prestigiado senior do partido já então no poder corrobora, não pode fazer-se um aeroporto na margem sul porque podem vir os terroristas e dinamitam a ponte. 
Mas deve conhecer a história melhor do que eu, depois o estudo do LNEC e a proposta do campo de tiro de Alcochete, por acaso com avaliação ambiental aprovada, parece que demasiado próximo da A13 e de Canha, mas com hipótese de ser puxado mais para o meio do CTA, junto da pista de 900m que lá está, onde uma vez o presidente Eanes se deixou ficar sentado enquanto o pessoal se atirava para o chão por ter havido uns percalços nos exercícios de tiro (a propósito, não acredite que a desminagem é complicada, os especialistas com os seus robôs, que devemos acreditar na inteligência artificial, e os seus bulldozers tratam do assunto). Só tem de se compatibilizar com a existência de um corredor secundário de aves (por acaso o mesmo que depois passa a norte da Portela) e são 36 km até à Gare do Oriente, embora os detratores digam que são 70 km (pela volta pela A13 são), esquecendo que da base aéreanº6, no Montijo são, pelas portagens da Vasco da Gama existentes, 30 km . E eis que do alto, mais precisamente do norte, pela voz da sua associação comercial, vem a ideia luminosa de pendurar na exploração da Portela, a exploração da BAnº6, um aeroporto complementar. Tudo se pode fazer, todas as ideias se podem discutir, acredito no "brain storming", mas há regras, nas tais "guildas medievais", que dão pelo nome de normalização. Por exemplo, numa pista com aquele comprimento (mesmo depois de prolongada 300m para sul para cima do braço de rio), em dia de verão com 40ºC, aviões muito usados pelas low cost não estão autorizados a descolar com o peso equivalente a estarem cheios de passageiros, carga e combustível (porque o ar quente é menos denso e oferece menos resistência à deslocação e portanto a sustentação exige uma corrida maior - take-off). 
Por outras palavras, pode fazer-se o Montijo, mas não é uma boa solução técnica, e os custos são muito superiores ao anunciado (necessidade de refazer toda a pista, por exemplo). A bancarrota suspendeu o processo e chegámos a 2012, abrem-se garrafas de champanhe e privatiza-se a ANA (3080 milhões de euros, não terá sido mau negócio para a concessão de um monopólio, mas...)
3 - "de resto a história começou bem" com António Costa a não desfazer a  opção de Passos Coelho pelo Montijo" - peço desculpa, isso não é começar bem. Bem ou mal, a ANA ante privatização preparou laboriosamente um contrato de concessão que foi assinado em 14 de dezembro de 2012 entre M.Luis Albuquerque com Sergio Monteiro e o presidente da ANA post privatização. Neste contrato não há uma palavra sobre a solução Portela+1 nem sobre o Montijo. O que havia era a obrigação do concessionário estudar um novo aeroporto com duas pistas e capacidade para 90 movimentos por hora (previsão para o Montijo: 24 movimentos por hora) e apresentar um plano de financiamento para o Estado. A ideia Portela+1 vem a ser proposta por um "grupo de missão" em 2013, seguindo a referida sugestão da Associação Comercial do Porto de 2007 (esta antes do estudo do LNEC de 2008 propondo a localização do CTA) e novamente proposta pelo"estudo" da Roland Berger de 2016.
Em janeiro de 2019 é assinado um acordo entre o XXI governo e a Vinci consagrando a solução Portela+1 com o aeroporto do Montijo como complementar e anunciando que a adenda ao contrato seria assinada com as autorizações ambientais. Não devem ter lido o contrato. Com a DIA com parecer favorável condicionado e a oposição de duas câmaras e a abstenção de outra em cinco, não terá sido assinada a adenda (pelo menos, o site da ANAC onde estão o contrato e os anexos é omisso).
Então, se for assim, é aplicável a cláusula 75.2 que diz que não são válidos quaisquer documentos ou acordos fora do clausulado do contrato. 
Não tenho formação jurídica, mas parece que o governo de António Costa é useiro e vezeiro em passar olimpicamente por cima da letra da lei (recordo o art.282 da lei 2/2020, lei do orçamento do Estado, que mandava, não recomendava como paternalisticamente opinou o senhor presidente da vichysoise).
Entre as obrigações contratuais do concessionário estava na cláusula 42.3 o estudo de alternativas ao novo aeroporto que fossem mais eficientes do que as especificações mínimas do anexo 16 e menos onerosas ("e", não "ou"). Recordo que a solução Portela+1 consegue 48+24 movimentos por hora, o que compara com os 90 movimentos por hora do anexo 16. Diz o sr bastonário da Ordem dos Engenheiros (ui, uma "guilda medieval") que o contrato tinha alçapões que permitiram à ANA impor a sua vontade para o Montijo. Ver p.f. o video da audição na CEOPPH de 21 de junho de 2022  . Serão alçapões mas vir o Estado dizer que a alternativa que quer é menos eficiente será que é um alçapão ou será um indício de gestão danosa por parte dos seus representantes que promoveram ou assinaram a alteração desfavorável do contrato? Mas evidentemente que o MP tem mais que fazer do que preocupar-se com estes indícios ... foi desrespeitada a lei 2/2020? e então?
https://canal.parlamento.pt/?cid=5991&title=audicao-da-ordem-dos-economistas
Mais estipulava o contrato (cl.51.1) que, caso o concessionário não apresentasse a sua proposta (candidatura) ao novo aeroporto com as especificações contratuais o concedente poderia contratar terceiros para prosseguir o estudo do novo aeroporto mesmo sem rescindir o contrato (que aliás abrange a exploração dos outros aeroportos nacionais).
Nestas circunstancias, se não há adenda o contrato de concessão mantem-se em vigor (o que houve no acordo de janeiro de 2019 foi uma intenção que não prevalecerá sobre o contrato), o concessionário ANA estará em incumprimento por ter arranjado uma alternativa menos onerosa mas menos eficiente, pelo que não parece a Vinci ter direito a indemnização por desistência pelo concedente do Montijo.
4 -"os cortes drásticos no investimento público" - Bem, as obras do Montijo teriam de ser pagas pela Vinci, era o que dizia a adenda frustrada de 2019, para isso cobra as taxas, competindo ao concedente os acessos (que por acaso podem beneficiar de fundos comunitários, CEF, por exemplo, que todos os aeroportos internacionais têm de estar ligados à rede ferroviária, se quisermos cumprir os regulamentos comunitários, e até do PRR) só que desde o principio foi propalada a ideia de que era muito barato construir o aeroporto do Montijo. Estimou a Vinci 500 milhões de euros, a que acrescem 650 milhões para melhorias no aeroporto Humberto Delgado (e que parece não incluirem o taxiway do lado norte/nascente, indispensável para os 48 movimentos por hora com segurança, assim como o novo sistema de controle aéreo, o famoso Topsky de aquisição anunciada pela ANAC ainda em 2022). 
E não se esquece, a Vinci, de falar nos inconvenientes da localização no campo de tiro de Alcochete, mas a renovação completa da pista do Montijo para suportar o movimento e as drenagens e o prolongamento da pista agravam os custos da sua proposta (segundo o mapa topográfico https://pt-br.topographic-map.com/maps/gnf2/Lisboa/,  a atual pista do Montijo, com 2,2 km de comprimento, tem nas extremidades as cotas de 10m e 1 m, ou declive de 0,5%, sabendo-se que a drenagem da sua superfície é essencial para combate ao aqua planning, ora sendo necessário o prolongamento de 300 m para sul, toda a pista terá de ser sobreelevada 5 m, o que encarece a obra, mas é uma medida indispensável) . E então se quiserem fazer a 2ª pista em pleno Tejo, na coroa da Aperta, estamos conversados e os nossos concidadãos ambientalistas terão uma crise a sério.

A Vinci comparou a solução Portela+1 ( 1150 milhões de euros sem contar as acessibilidades de conta do Estado e a indemnização à Força Aérea) com os 7,5 mil milhões pela boca do presidente da ANA para o aeroporto de Alcochete construido de raiz com 2 pistas, a que se adicionaria o custo da travessia ferroviária do Tejo (1500 milhões ) . O senhor presidente da ANA, para comover os contribuintes, costuma dizer que isso corresponderia a 15 hospitais e que a proposta da ANA é a que melhor serve o interesse público, o que na realidade é comovente pela coincidencia entre interesse público e interesse empresarial.

Passa-se assim ao lado da possibilidade de uma primeira fase do CTA, que com o ex bastonário da OE estimo em 2.000 milhões (o grupo de missão para a coordenação da capacidade aeroportuária estimou em 3.600 milhões), e do facto de que a nova travessia do Tejo é necessária por razões de coesão territorial com ou sem aeroporto (será razoável afetar um terço do seu custo ao novo aeroporto, e os outros dois terços ao transporte suburbano, de mercadorias e de alta velocidade para Madrid e para o Porto. Mas , de facto, o grande inconveniente da solução Alcochete é que a Vinci não quer investir nela, escudando-se no desdém pelas operadoras low cost,  mesmo apenas numa primeira fase e sem pagar a travessia ferroviária. 
E é difícil para o país fazer este investimento sem o contributo da Vinci, se se considerar que ela está a cumprir o contrato de dezembro de 2012, coisa que a minha falta de formação jurídica diz que não está.

Caro Diretor, com as audições da CEOPPH e este arrazoado penso que já tem matéria para uma série de reportagens no seu jornal sobre os mistérios do aeroporto do Montijo e ainda junto mais fontes de ruído no ficheiro que poderá ver na ligação abaixo. Fiz uma série de desenhos com as hipóteses possíveis. É assim que se discutem as coisas em engenharia (ai os corporativismos) mas parece que politicamente e jornalisticamente não é assim. É pena.



Com os melhores cumprimentos e votos de saúde

https://1drv.ms/w/s!Al9_rthOlbwewA7EEhsKmEdcqYXX?e=BGETgI



PS - Um colega meu, mais senior que eu, ao saber que estava a escrever este texto, pediu-me para lhe falar na hipótese de Beja. Está referida no ficheiro da ligação, mas resumo-a aqui. Pode ser que lhe interesse. Como fase 0 podia ser que funcionasse, a pista está feita, tem bom comprimento, há um edifício modesto e as melhorias ferroviárias de ligação podiam beneficiar dos fundos comunitários:

Estimativa de ligação ferroviária Beja-Aeroporto de Beja-Lisboa Entrecampos: 
  • Linha existente 160 km (via única Beja-Poceirão + dupla Poceirão-Entrecampos)+ linha nova via única 10km Beja-Aerop.Beja: 50 M€  - duração da viagem Beja-Entrecampos 2h10m
  • Linha existente 110 km (via única Casa Branca-Poceirão + dupla Poceirão-Entrecampos) + linha nova via dupla AV 60km Beja-Aerop.Beja-Casa Branca: 500 M€   -  duração 1h40m
  • Linha existente 40 km (via dupla Pinhal Novo-Entrecampos) + linha nova via dupla AV 130 km Beja-Aerop.Beja-Pinhal Novo: 1100 M€    -   duração 1h10m


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