sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Cenas da vida quotidiana

Cena 1A cena passa-se numa máquina ATM de multibanco. A senhora pequenina, de bengala e óculos com lentes muito grossas, demora-se. Parece ter dificuldades com o menu. Oiço-a a interrogar-se se a máquina estará boa. Diz que só faz pagamentos. Pede-me auxílio. Instintivamente lanço olhares furtivos à volta, não vá a senhora ter um cúmplice prestes a assaltar. Mas não, aliás o sítio é movimentado, com um engraxador e um quiosque de jornais ao lado. Pergunto-lhe se já verificou se a maquina está a fornecer dinheiro. Está, o ícone confirma. A senhora retira e volta a pôr o cartão. Digo-lhe que tem de marcar o código e ela marca, é uma pessoa confiante. Ela diz, vê? Só faz pagamentos. Não, não, digo eu, agora tem de carregar na tecla dos levantamentos; quer levantar dinheiro, não é? Sim, sim, então tem de carregar aqui, ao lado do ecran. Devia ser isso, a senhora devia estar habituada ao teclado horizontal com indicação em cada tecla do montante a levantar. E agora tem de carregar na tecla ao lado do ecran, correspondente ao montante que deseja. Quanto é? 20 euros, diz a senhora, e o seu dedo com artrite pressiona a tecla. O ecran ilumina-se de vermelho e afixa a informação: o saldo autorizado não permite o levantamento. Pronto, digo eu, tem de ir ao banco ver isso. Ah, pois é, concorda a senhora, enquanto retira o cartão.
Fico a pensar que pode ser significativa a percentagem de pessoas cuja conta não tem 20 euros. A senhora esperará ansiosa que chegue o dia de recebimento da sua reforma ou que um familiar mais remediado faça uma transferencia. Ansiará que o tempo passe depressa. Uma pessoa idosa deveria ter qualidade de vida, e ansiar por que o tempo passasse devagar.
Que poderíamos fazer para que as pessoas pudessem ter mais de 20 euros na sua conta?
Vejamos, dizem os senhores economistas que nos governam, que o problema é da dívida pública e que por isso têm de lançar impostos.
Então é simples, basta lançar uma taxa, vá lá, 50 centimos,  por cada operação do multibanco, a pagar pelos bancos diretamente ao Estado, sem a repercutirem nos clientes. Quanto daria por ano? 500 milhões de euros?

Cena 2A cena passa-se num pequeno supermercado. É hora de almoço, por isso está só uma caixa aberta. Chego à fila onde já se encontram 4 cidadãs e cidadãos, alinhados no corredor. Vejo um cidadão surgir junto da caixa, vindo do corredor adjacente. Acontece muito nos supermercados pequenos. Os expositores tiram a visão e quem vem do lado e nunca sabe como está a fila do corredor alinhado com a caixa aberta. O senhor, pequenino, de cabelo já ralo e com um bigode argentino, abana a cabeça desiludido. O ar de desilusão dá lugar a um ar de reprovação e de crítica por só estar uma caixa aberta. Desculpa-se em voz baixa que não se percebe. Recuo ligeiramente, dando-lhe a entender que podia pôr-se à minha frente; não sofro da necessidade de provar a minha importância.  Mas ele continua a abanar a cabeça. O conceito de fila organizada não lhe é caro. Sente que as coisas devem estar organizadas para ele não ter contrariedades. Pode ser um complexo psicológico que lhe ficou da infância, consequência de medos e inseguranças que só eram esquecidos quando as coisas corriam bem. Ou um condicionamento egocêntrico que o impede de identificar corretamente as leis do mundo exterior. Ou a consequência da divulgação do conceito de consumidor, como predomínio do individual sobre a organização coletiva. Já se juntaram três pessoas atrás de mim. E de repente, surge uma jovem funcionária que diz: pela mesma ordem podem vir para esta caixa. Imediatamente o senhor dá energicamente uma volta sobre si próprio e é o primeiro a ser atendido.
Fico a pensar no que dizia Francisco Pereira de Moura, que passar à frente numa fila é fascismo, e que isso não é um insulto, é apenas a verificação dum modo de pensar e atuar, de quem sente que os seus interesses egoístas devem ser atendidos independentemente da existência de outros cidadãos e cidadãs.
E que quem assim procede vota de acordo com o que pensa e faz.
E que os seus eleitos provavelmente aplicam na íntegra o seu conceito.
Independentemente do que possa pensar quem possa ser prejudicado com isso.
O partido nazi também foi o partido mais votado, nas eleições de 1929.

Cena 3  - A cena passa-se na barbearia. Os dois funcionários são brasileiros e por isso a televisão mostra sempre o canal dedicado aos brasileiros emigrantes. Notícias da cidade de Goiânia. Foi encontrada nas ruas uma égua abandonada, magra em extremo e maltratada. A polícia entregou-a aos cuidados de um veterinário e investigou até encontrar o dono. O pobre homem vive nos restos de uma antiga quinta absorvida pela expansão urbana. A égua recuperar-se-á mas a policia quer garantias de que o velho a alimentará e tratará bem. O homem, mal arranjado, com a barba por fazer e o cabelo muito branco desalinhado, não confessa, por pudor, que não tem dinheiro para alimentar a égua, que só a deixou fugir porque tinha estado adoentado.
Fico a pensar que o mesmo aconteceu há pouco em Lisboa, na zona da antiga quinta da Curraleira. O pobre cavalo andou fugido pela Avenida Almirante Reis. Mas no Brasil, um país com indicadores de crescimento tão firmes, ainda há equídeos que correm o risco de morrer porque os donos lhes vão reduzindo a ração, aos poucos, até ao limite?
Como dizia Karl Marx, a repetição da história é uma tragédia.


Sem comentários:

Enviar um comentário