segunda-feira, 23 de outubro de 2023

A metáfora dos dois bandidos e da ferrovia única europeia

 Vou tentar aproveitar uma metáfora que me enviaram (vício que tenho de olhar para o retrovisor, guardando distancia maior para o da frente, lá está, espaço para o bandido poder refugiar-se depois duma ultrapassagem chico-esperta). 

Temos aqui na ferrovia dois bandidos. Sem ofensa, claro, metaforicamente falando, sem qualquer conotação exegética mas por haver uma regulamentação comunitária para a rede única ferroviária europeia que por sinal é vinculativa, mas sendo lei não é cumprida pelos dois bandidos, pelo menos dentro dos prazos, em diferentes graus de incumprimento. 

O bandido menos mau, atuando na maior parte da Península e assim chamado por apesar de tudo ir cumprindo alguma regulamentação, devia fazer pela lei europeia, para mercadorias em bitola UIC,  cerca de 800 km de linhas novas ou aproveitamento de linhas existentes com mudança de bitola, para o corredor atlântico até 2050: 200km Plasencia-Madrid + 420km Madrid-Medina del Campo-Vitoria + 180km Medina del Campo-fronteira portuguesa  (bem, isto era no regulamento 1315 de 2013, agora com a revisão o dito corredor atlântico, a pedido de várias famílias galegas e asturianas, tem de aguentar com mais  230km na Galiza e outros 230km nas Asturias). Para complicar a coisa, está também injetada no corredor atlântico, em partilha  com o corredor mediterrânico, a ligação de mercadorias entre Algeciras e Madrid ou 620km, mas deixemos isso para o planeamento do mediterrânico.   
Entretanto, o dito bandido menos mau vai canalizando os seus recursos para desenvolver as redes de mercadorias em bitola UIC nas autonomias basca ("Y" basco ), catalã e valenciana (corredor mediterrânico), ao mesmo tempo, no corredor atlântico, vai aproveitando a rede em bitola ibérica, eletrificando os troços em falta e aproveitando as plataformas logísticas espalhadas por Espanha; isto é, para as mercadorias no corredor atlântico há uma fase 1 que consiste em levar com bitola ibérica  os contentores, os camiões, os semirreboques ou as caixas móveis até à plataforma de Vitoria, de onde se pode ir com bitola UIC para França; na fase 2 poderão levar-se as mercadorias em ibérica até à plataforma de Medina del Campo trazendo desde Vitoria até esta a bitola UIC mudando a bitola na rede de mercadorias existente entre Medina e Vitoria ou 280km (servindo Aveiro-Salamanca e Sines-Badajoz-Madrid); numa fase 3 linha parcialmente nova em UIC de Medina a Salamanca/Zaldesa-fronteira portuguesa enquanto do lado do bandido menos bom finalmente se construía a linha nova UIC Aveiro-fronteira, com uma plataforma logística para aí em Viseu, Mangualde ou Vila Franca das Naves.
Entretanto o bandido menos bom, no ocidente da Península e assim chamado por caprichar em incumprir a legislação comunitária relativa à rede única europeia ferroviária, já deveria ter sido obrigado a substituir as viagens aéreas para Madrid pela alta velocidade; seria uma fase 0 recuperando o projeto ELOS sem ter de pagar uma indemnização que o TdC acha que não deve ser paga mas que, salvo melhor e sem dúvida douta opinião, não é da competência do TdC decidir se deve ser paga ou não. Deveria então tratar-se já, enquanto os empreiteiros estão na obra (outra coisa difícil de aceitar pelo TdC), de montar a segunda via do troço Évora-Caia/Badajoz, incluindo os segundos tabuleiros dos viadutos, já em bitola UIC para poupar o custo futuro da mudança de bitola e perturbação do tráfego (90km). Idem para a duplicação do troço Évora-Poceirão (80km, essencial desenvolver a plataforma logística servida por bitola ibérica e por bitola UIC). A utilização seria imediata pelos Alvia de eixos variáveis do bandido menos mau para passageiros até Lisboa por Pinhal Novo e ponte 25 de abril. Para mercadorias seria importante construir Sines-Grândola Norte e ligação a Poceirão e Setúbal em bitola UIC em via de 3 carris (130km).
Ainda quanto a mercadorias, deve o bandido menos bom combinar com o bandido menos mau: fase 2, trazer a bitola UIC para mercadorias desde Medina del Campo até Madrid ( 190km)  e resolver o traçado para mercadorias e passageiros entre Madrid e Talavera/Navalmoral (  180km), de preferência evitando o desvio por Toledo; enquanto aquele traçado não estiver executado, levar as mercadorias em ibérica até Madrid por Badajoz-Caceres-Plasencia ou por Badajoz-Puertollano-Alcazar (não seria mau convencer o bandido menos mau a recuperar a ligação para mercadorias Madrid-Aranda de Duero-Burgos em bitola UIC, os gradientes são da ordem de 1% e de Madrid a Burgos são 280km contra 320km por Avila-Medina del Campo); na fase 3  haveria ligação em bitola UIC desde as plataformas logísticas e portos portugueses até Irun.

Parece-me que não competirá aos observadores externos como nós dizer às instituições como devem proceder, sem prejuízo evidentemente do direito dos cidadãos a exprimirem as suas opiniões e participarem na discussão pública. Mas é mau sinal quando se chega ao ponto de dizer que a ADIF, o AVEP (agrupamento europeu de interesse económico alta velocidade Espanha-Portugal), o RFC4 (corredor  atlântico de mercadorias) e o recente Comisionado del corredor atlantico, deviam esclarecer o que pretendem fazer para cumprir o regulamento comunitário mostrando um cronograma com as fases de construção segundo as datas regulamentares, 2030, 2040, 2050 e após. Foi o que o Manifesto de 2017 fez, juntando um documento técnico de apoio dos amigos Cabral da Silva e Mario Ribeiro com o cronograma e estimativa de custos para cada fase (em Portugal, mas também podemos fazer para Espanha).  Não o fazendo, podemos alinhar críticas à inoperância e sugerir pistas para ação como as fases acima, quanto mais não seja para estarmos entretidos.

O problema parece simples de enunciar, os detalhes da solução é que são, parafraseando o senhor presidente que raramente se enganava, o diabo. 
Problema: 
1 - poder expedir um comboio de mercadorias numa plataforma logística ou num porto em território português cumprindo as especificações da interoperabilidade (comprimento, velocidade, peso por eixo, gradiente, ERTMS, 25kVAC, 1435mm, simplificação dos procedimentos transfronteiriços) com destino a Mannheim ou Strasburg passando por plataformas logísticas em Espanha e França de acordo com o mapa do regulamento para o corredor atlântico; 
2 - substituir as viagens aéreas Lisboa-Porto e Porto-Lisboa por alta velocidade para passageiros com estações nos próprios aeroportos.

Constrangimentos:
Reconheço que para quem está habituado a trabalhar no contexto da rede existente, desenvolver as ações para uma nova rede interoperável (cumprindo todas as especificações incluindo o ERTMS e 1435mm) é muito mais trabalhoso do que manter os padrões habituais, mas faz parte da evolução da economia acrescentar complexidade (por exemplo, máquinas ou equipamentos com incorporação tecnológica maior) às áreas de produção precisamente para aumentar o volume de produção e a produtividade por fator de produção. A transferência dos passageiros do avião para a alta velocidade e da carga rodoviária para a ferrovia é um objetivo da regulamentação comunitária para a economia energética e redução de emissões. A facilitação do aumento das exportações e do aumento da atratividade de investimento estrangeiro é o objetivo da regulamentação comunitária para a rede ferroviária de mercadorias.

Procedimentos para a solução:
Alteração do PFN para incorporar o referido cronograma para a parte portuguesa, coordenando com Espanha  (eventualmente com o Comisionado do corredor atlântico através duma estrutura semelhante tendo como observadores a IP, a CP, a APEF, o AVEP, o RFC4 e com divulgação periódica do avanço dos trabalhos), França e DG MOVE/coordenação do corredor atlântico. Definição nos prazos comunitários de 2030, 2040 e 2050 e após as fases de implementação do corredor atlântico de passageiros e de mercadorias que se pretende atingir em todos os países do corredor. Distribuir os investimentos e os cofinanciamentos comunitários ao longo dos anos de modo  não beliscar as normas da percentagem da despesa pública relativamente ao PIB.
No caso das mercadorias, considerando os constrangimentos dos eixos variáveis em vagões de mercadorias, o desenvolvimento da bitola UIC do lado do bandido menos bom estará muito dependente da sincronização da chegada da bitola UIC à fronteira do lado do bandido menos mau, o que não impediria algum tráfego interno nos troços acima referidos na fase 0 Sines/Setúbal-Poceirão-Évora-Caia-Badajoz). 
Digamos que os objetivos comuns poderiam ser, implicando a revisão profunda do PFN, para todos os requisitos da interoperabilidade:
  • Lisboa-Porto e Lisboa-Madrid para passageiros em 2030 e Porto-Vigo  e Porto-Viseu-Madrid em 2035-2040
  • Sines-Leixões, Aveiro-Salamanca-Irun e Sines-Badajoz-Plasencia-Madrid em 2035-2040 para mercadorias


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