segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Ainda Santa Apolónia em outubro de 2025


https://www.publico.pt/2025/10/29/local/noticia/seguranca-metro-santa-apolonia-continua-adiar-conclusao-tunel-drenagem-2152417#

Gostaria que o Vale de Santo António tivesse um canal para um metro ligeiro de superfície mas seria pedir demais, idem para a ligação do Terreiro do Paço ao Parque das Nações (como é que um arquiteto de tanto renome não prevê um canal para metro ligeiro, em vez da moda do metrobus.). 

Entretanto a RCM77/2025 é preocupante porque entrega à IP a decisão sobre a localização da TTT e os traçados da LAV porto Lisboa á chegada a Lisboa ou pelo NAL.

Mas volto a Santa Apolónia. 

Consultado o Plano de Drenagem de dezembro de 2015,      https://planodrenagem.lisboa.pt/fileadmin/pgdl/_ficheiros/PlanoGeralDrenagem_2016_2030.pdf           na página 237 lá vem a questão da travessia por cima do tunel do metro. Ela está a cerca de 90 m da estação do metro. Também há referências, como não podia deixar de ser, aos perfis geológicos, sendo do conhecimento geral que quando o edificio da  estação da CP foi construido o rio chegava ao edificio. O tunel e a estação de metro foram construidos em aluvião e aterros, e a estação tem as fundações nos arenitos do miocénico. Mas enfim, temos de perdoar aquela dos terrenos imprevisíveis, perdoar e pagar o adiconal que os empreiteiros fizerem aprovar em decisão arbitral, mas que ao menos salvaguarde a solução técnica que melhor sirva oo interesse público, não o dos empreiteiros (tratamento de segurança pelo exterior). 

Junto um esboço sem garantias de precisão mas feito com base nos elementos do PGDL. Ex técnicos do metropolitano e especialistas do IST e do LNEC farão o projeto e comentários melhor do que eu, mas o que me parece é que a proteção do tunel (a estação não precisa)  deverá ser por estacas até ao miocénico e por jet grouting. 

Mas repito não é a minha especialidade, embora se for preciso intervir internamente o sistema pode ser por chapas aparafusadas como se fez na Fontes Pereira de Melo com o tunel do Marquês.

Enfim, aguardemos o projeto sendo certo que nos termos constitucionais (art 48 direito a informação e participação) deveriam ser mostrados os avanços do dito projeto. Caso contrário é secretismo e desconsideração pelos cidadãos.



Anterior comentário a artigos de Samuel Alemão de 22jul2025 e 25jul2025

Caro Samuel Alemão

Antes de mais, felicito-o pelo excelente trabalho na divulgação das questões impactantes da nossa cidade. Lamento não ter tempo (ou disposição, que os 80 não são nada propícios) para lhe enviar os devidos comentários, e digo devidos no sentido de poderem ser úteis ao seu trabalho. Mas estes dois recentes artigos despertaram-me recordações do meu trabalho no metro. O primeiro porque fala da descoberta da fragilidade dos terrenos de Santa Apolónia, que me fez recordar os tempos de acompanhamento da reparação do túnel do Terreiro do Paço depois do imperdoável desmazelo do empreiteiro na preparação dos trabalhos de ancoragem do túnel, o que originou o desastre. O segundo, por falar numa proposta razoável (mas que o consenso automobilista não aprovará) para a TTT, que a arrogancia e autosuficiencia do XXV governo, surdo a critérios de engenharia de transportes e de ordenamento do território, simplesmente ignorará (até porque os automobilistas também votam).
Pormenorizando:
1 - os terrenos de Santa Apolónia -  Leio com surpresa, nas declarações do diretor geral do plano de drenagem, que "deparou-se-nos algo imprevisível. Os solos à volta do túnel do metro não são tão bons como pensávamos". E que haverá uma interrupção de 8 meses no serviço do metro entre Terreiro do Paço e Santa Apolónia para obras de reforço do túnel.
Surpresa porque de acordo com os regulamentos municipais qualquer obra a menos de 25m do túnel do meto deve ser coordenada com o metro (regra não cumprida aliás quando  na obra do jardim da Praça de Espanha foi partida a abóbada do túnel) . Ninguém terá falado sobre a natureza dos terrenos com os técnicos do metro? O processo está também no LNEC. Ainda estão ao serviço quem participou na recuperação do túnel do Terreiro do Paço. Quem pudesse esclarecer sobre os aluviões e os aterros da zona de Santa Apolónia. Aliás, são do domínio público as gravuras do século XIX contemporâneas da inauguração da estação da CP, ao lado da estação corria o rio. Todos os terrenos ao lado da estação são aluvião e aterros. 
Surpresa também com os 8 meses de interrupção. O túnel do metro consiste de aneis de 7 aduelas encaixados sucessivamente e reforçados longitudinalmente por betão armado no interior do leito de via. Quanto ao reforço, tivemos de reforçar com chapas de aço o troço afetado pelo túnel rodoviário do Marquês na Avenida Fontes Pereira de Melo, sem interrupção da exploração diurna. O troço entre Baixa e Terreiro do Paço também foi reforçado com encamisamento com betão armad, que na verdade obriga a uma interrupção, mas optando por estacas de contenção, o tunel estaria amparado pelo edifico da estação de metrode Santa Apolónia e lateralmente pelas estacs de contenção. Provavelmente o critério será meramente económico, o que for mais barato, saia ou não mais caro no futuro.
Quanto ao túnel de drenagem, não sou especialista de hidráulica mas não me considero suficientemente esclarecido pelo prommotor, especialemnte quando a alternativa (claro, ms cara numa promeira fase) seria a melhoria da linha de água entre Sete Rios/Quinta do Pinto/Praça de Espanha  e Alcântara com alargamento do caneiro ou reposição da ribeira alargada e instalação de baciias de retenção com o objetivo de resistir a precipitações da ordem de 400 litros por dia coincidindo com marés de amplitude máxima (no caso do tunel de drenagem de Santa Apolónia, se a precipitação de 100 litros por dia se concentrar em poucas horas coincidindo com maré viva, o túnel não debitará para o Tejo e a bacia referida de 17000m3 será insuficiente (a propósito, não foi constuida a bacia de retenção de 35000m3 prevista para o jardim da Praça de Espanhae não foi divulgado nenhum estudo abrangente das bacias hidrográficas da AML, incluindo as ribeiras de Algés, Jamor, Barcarena, Póvoa/Trancão).

2 -  proposta da Zero para rejeição da opção rodoviária na TTT - em termos de engenharia de transportes a Zero tem razão. Neste momento, em que o tráfego automóvel desestabiliza a mobilidade na AML, porque o transporte público não tem infraestruturas adequadas e a urbanização tem muitas falhas, lançar mais tráfego automóvel em Lisboa vindo do Barreiro é um erro grave em termos de engenharia  de transportes. Não dignifica os autarcas a sua defesa da opção rodoviária, em vez de reivindicarem uma rede sólida ferroviária metropolitana e suburbana ligando as duas margens na TTT juntamente com o NAL.   Tentei argumentar na consulta pública do PMMUS, sublinhando o incumprimento do regulamento da CE 2024/1679 das redes TEN-T na sua relação com os nós urbanos (coisa desprezada no plano proposto pela TML, tal como o esquecimento do PROTAML que propunha uma grande linha circuar externa de Algés para Loures e Sacavém) . Mas não consegui submeter o meu parecer, provavelmente porque era o último dia e porque os critérios técnicos são considerados irrelevantes nas avaliações de impacto ambiental (refiro como técnicos critérios de engenharia de transportes). E além do mais, a arrogancia , o autoconvencimento do governo que dispensa a audição dos técnicos que não façam parte das suas assessorias apoiantes impede a discussão de alternativas. Esquecendo ainda o governo que constitucionalmente (art 165.1.z), o governo só tem competênca legislativa no ordenamento do território se o Parlamento lha conceder, isto é, o governo estar a dizer que a TTT  será Chelas-Barreiro (outro erro, são mais 10km do que por Beato-Montijo na ligação NAL-estação de Alta Velocidade de Lisboa). E onde estão o as análises de custos benefícios comparativas com alternativas para a localização da estação de AV de Lisboa? e o mesmo para comparação da chegada a Lisboa pela margem esquerda ou margem direita?
Copenhague tinha um problema no planeamento da sua área metropolitana, incluindo aterros para proteção contra subida do nível do mar (Lisboa também tem um problema parecido, a falta do fecho da Golada, que protegeria a margem norte contra a onda do sudoeste). Que fizeram os dinamarqueses? um concurso público internacional e selecionaram um gabinete de engenharia de referência . Nós por cá, deixamos o primeiro ministro proceder inconstitucionalmente ao arrepio dos regulamentos comunitários (depois admiram-se de levarem recusas de cofinanciamento) e dos instrumentos jurídicos de ordenamento do terrritório, para depois, talvez de modo provinciano ou rural como alguém dizia, encomendar aos amigos da IP ou dos seus assessores os traçados das linhas de AV da AML, das travessias do Tejo e das ligações ao NAL. E assim não vamos longe.




Relacionado:


O martírio de Santa Apolónia 

https://fcsseratostenes.blogspot.com/2025/11/o-martirio-de-santa-apolonia-escrito-em.html


Terreiro do Paço, junho de 2000

https://fcsseratostenes.blogspot.com/2025/11/terreiro-do-paco-9-de-junho-de-2000.html


Parecer sobre o PMMUS

https://fcsseratostenes.blogspot.com/2025/10/parecer-sobre-avaliacao-ambiental-do.html











 

Terreiro do Paço, 9 de junho de 2000 (escrito em 2014)

 


Terreiro do Paço, 9 de junho de 2000

Quando o solstício de verão do ano 2000 se aproximava, decorriam ainda negociações com o fornecedor do sistema de controle automático da marcha dos comboios na linha da Exposição Universal de 1998.

O sistema permitia a condução automática dos comboios, embora não dispensasse a presença do maquinista para vigilância e autorização de partida em cada estação.

Tinha sido uma opção, considerando as tecnologias disponíveis na altura, adjudicada ao mesmo fabricante francês que equipara o TGV com o sistema de proteção.

Foi um prazer apreciar o rigor com que foram executados todo o software, toda a documentação, todos os ensaios de segurança de circulação, seguindo rigorosamente o normativo internacional.

Porém, a compressão dos preços necessária para ganhar um concurso público e as consequentes simplificações no equipamento a instalar na via geraram algumas inconformidades com o caderno de encargos que levaram a discussões prolongadas.

Por outro lado, o pouco tempo disponível após a conclusão da construção do túnel para a instalação da via férrea e dos sistemas complementares de energia, telecomunicações e sinalização ferroviária (no princípio de dezembro de 1997 ainda a tuneladora não tinha chegado à estação do Oriente), impediu a realização dos ensaios do sistema automático antes da inauguração da linha, em abril de 1998, um mês antes da abertura da exposição.

Tão zangado fiquei com a tuneladora por não me ter deixado acabar o trabalho a tempo que propus aos colegas da especialidade que alugassem um batelão e a fossem depositar na fossa de Sesimbra, que é a zona mais profunda do nosso mar costeiro.

E julgo que com razão, porque a metade da linha, da Alameda até à estação da Belavista, construida pelos métodos tradicionais, ficou concluída muito antes.

Além disso, para atenuar os atrasos da construção, a tuneladora chegou a fazer 25 metros num dia (a média normal é de 12 metros), o que é um feito histórico.

A tuneladora é um comboio que, à frente, tem um disco com fresadoras que vai furando, enquanto atrás uma série de macacos radiais vai armando as aduelas pré-fabricadas, ligadas entre si por pernos curvos, sete por secção, ao longo do seu perímetro, ficando assim o túnel pronto, e uma série de macacos longitudinais vai empurrando o comboio, apoiando-se nas aduelas montadas.

É impressionante pela facilidade aparente e pela dimensão.

Porém, como tantas vezes sucede, o sucesso é vizinho do insucesso, e com a precipitação, a tuneladora desviou-se para o exterior da curva antes da estação terminal do Oriente, obrigando a um aturado trabalho de reprojeto do traçado das vias, que não ficaram assim paralelas às paredes (hasteais) do túnel.

Mas não me deram ouvidos e aquela tuneladora ainda furou o túnel desde a Ameixoeira até quase ao Campo Grande, e 8 anos depois, desde a Alameda até S.Sebastião, mas neste caso já com o veio um bocadinho empenado e


com os macacos de avanço pouco precisos e pouco afetuosos para as aduelas em que se apoiavam, uma ou outra partida.

Foi assim, voltando ao solstício de verão do ano 2000, que numa manhã de junho discutíamos com a administração as nossas razões e as razões do fabricante do sistema automático.

Nós queríamos que o sistema permitisse uma circulação mais rápida e intensa dos comboios e com menos perturbação, apesar de um sistema automático de segurança ferroviária à mínima dúvida sobre a posição ou os itinerários dos comboios, estar obrigado a interromper a circulação.

E o fabricante queria que nós dessemos o fornecimento por concluído.

O assunto chegou a ameaçar tornar-se um incidente diplomático.

Eu contei aos enviados do fabricante a história da barca Charles e George, que eles não conheciam, dizendo-lhes que podiam repetir a história, mas que nós éramos como o alferes português (a barca Charles e George, de um armador francês, foi apresada por um alferes português em 1857 ao largo de Lourenço Marques com um carregamento de escravos para a ilha da Reunião, já depois da abolição do comércio de escravos; o alferes instruiu o processo para o tribunal de Lisboa; o tribunal inglês sentiu-se menos considerado e deixou cair o caso; os advogados do armador francês conseguiram provar no tribunal que os cidadãos acorrentados no convés da barca o estavam de livre vontade, à espera de serem transportados para uma vida melhor de trabalho mais bem pago, o que é uma amarga metáfora do sistema eleitoral em que vivemos).

Até chegou a colocar-se a hipótese do nosso conflito ter sido resolvido por via diplomática, por uma invisível transferência, no sentido internacional e financeiro do termo, para a campanha eleitoral de um partido político e com um meritório empenho dos técnicos franceses residentes em Lisboa na resolução das inconformidades. Que foram declaradas ultrapassadas em novembro desse ano, entrando o sistema ao serviço.

Ao fim da manhã a reunião foi interrompida por um telefonema. Alguém da frente de trabalho do túnel do Terreiro do Paço informava que o túnel tinha abatido.

Os administradores dos pelouros das obras e das áreas técnicas saem rapidamente, deixando-nos, aos técnicos do sistema automático dos comboios, com o administrador financeiro.

Desconsolado, perguntava-nos: – e agora? Que vamos fazer? Quanto vai custar isto?

Pego numa folha de papel e na esferográfica e desenho o esquema do túnel, a curva aberta desde o pátio do arsenal da Marinha, à frente do cais das colunas e ao encontro com o terraço fronteiro ao torreão nascente, o do ministério das Finanças.

         Está a ver doutor? O túnel foi abaixo aqui; agora há que fazer uma paliçada de estacas entre o túnel e o rio, está a ver estes pontos negros? São as estacas; com a paliçada forma-se a ensecadeira; depois é esgotar a água e escavar os aluviões e consertar o túnel, por fora. Felizmente há em Portugal muita experiência de trabalho com ensecadeiras; é assim que se fazem barragens. As nossas empresas também têm grande experiência em Macau, cujo terreno é principalmente aluvionar.

         Mas você não é eletrotécnico?

         Sou, sou, mas já discutimos isto com os colegas da especialidade. Isto, quer dizer, o método de construção da estação. Não fui só eu, ignorante de engenharia civil, a discordar da utilização da tuneladora por baixo do rio. Os nossos colegas do metro de Londres tiveram imensas dificuldades para atravessar o Tamisa com a tuneladora e para construir a estação de Westminster, apesar de Isambard Brunnel ter iniciado a técnica das máquinas perfuradoras há mais de 100 anos.

Só há muito pouco tempo os holandeses dominaram a técnica em Roterdão. Por isso muitos de nós advogámos desde o princípio a utilização do método da ensecadeira, com a construção do túnel do metropolitano a céu aberto e, em simultâneo, a construção do troço de túnel rodoviário, que por o projeto inicial prever a ligação rodoviária em túnel, do Terreiro do Paço para o Cais do Sodré, é que o nosso túnel e a estação de Terreiro do Paço são tão profundos. Mas não era o que o empreiteiro queria fazer, dava-lhe mais jeito utilizar a tuneladora, e como sabe melhor do que nós, o volume de negócios do empreiteiro é muito superior ao do metropolitano.

Mesmo em terrenos favoráveis, a tuneladora faz o túnel, mas nas estações a construção é independente e a tuneladora é arrastada pelos macacos durante um mês. Aqui o empreiteiro deu-lhe para fazer o túnel primeiro e, depois partir o túnel para construir a estação do Terreiro do Paço à volta. E deu nisto. Era um risco e não é uma surpresa. Vamos ver agora qual será a extensão dos estragos e voltar à ideia da ensecadeira.

O doutor pareceu mais animado com a solução, e como nada podíamos resolver, fomos prosaicamente almoçar.

Poucos dias antes, o conselho de administração tinha assinado com a prestigiada firma de construção civil Meira e Zuzarte o contrato para a construção dos toscos da estação Terreiro do Paço.

Fora um processo de contratação tormentoso. O construtor do túnel, com a tuneladora, uma destacada firma brasileira, não tinha contratado a construção das duas estações, Terreiro do Paço e Santa Apolónia, mas apenas o túnel. E quando apresentou o orçamento para fazer a estação, o presidente da gerência afirmou para quem o queria ouvir que, a ele, ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha, que o preço pedido era exagerado e que iria fazer um concurso público.

Na realidade, os contactos do Tribunal de Contas já tinham feito constar que o contrato para a construção das linhas da baixa, do Rossio ao Cais do Sodré, e dos Restauradores até Santa Apolónia, era tão vago e que as soluções para as dificuldades técnicas encontradas tinham encarecido tanto o empreendimento, que o melhor seria fechar o contrato. Já se suspeitava que, de Bruxelas, poderiam reclamar os fundos entregues ao metropolitano, por favorecimento da construtora brasileira, ao acrescentar novos trabalhos à medida que surgiam as dificuldades esperadas no geral, mas sempre imprevistas em particular. E contudo, as próprias diretivas europeias preveem exceções em casos de grande complexidade técnica.

Digamos que o trabalho da construtora foi cerca de 3 vezes o valor contratual.

Mas vale dizer que cada solução encontrada estava à altura de uma tese. Por exemplo, o tratamento dado às fundações do Hotel Avenida Palace e, especialmente, ao reforço das fundações da estação do Rossio da CP, em que cada pilar teve direito a uma nova fundação, em tamborete, com a estação escorada. Pode o escultor antes de partir a pedra prever quanto tempo vai esculpir?

E depois, a caminho da nova estação de Baixa-Chiado, e na construção das suas duas enormes naves de catedrais subterrâneas, e à passagem sob as fundações do convento do Carmo, de que Nuno Álvares Pereira tinha dito que, se não aguentassem, que as fizessem de bronze, toda a colina entrou em instabilidade e os edifícios abriram fissuras. Durante um mês manteve-se a instabilidade, enquanto no terreno se injetava calda de cimento sob pressão.

Veio de Londres uma especialista de geotecnia envolvida nas tormentas da construção da linha do Jubileu e da estação de Westminster.

Perante os indicadores e as medições dos assentamentos disse amavelmente que não podia demorar-se, mas que a chamassem quando se desse a derrocada.

Não deu.

A ideia que os técnicos do norte têm de que os técnicos do sul deixam cair tudo...

A construtora brasileira susteve os assentamentos e, concluídos os túneis de acesso à estação e betonadas as suas abóbadas, toda a colina serenou. Não sem que o metropolitano tivesse pago indemnizações desde a pastelaria Suíça e o café Nicola no Rossio, e o Hotel Avenida Palace nos Restauradores, até à igreja do Sacramento, que aproveitou para restaurar os seus frescos do século XVIII.

Infelizmente, os inspetores do tribunal de contas, zelosos defensores da justeza de aplicação dos dinheiros públicos, e o senhor presidente da administração, não terão medido bem a dimensão da complexidade técnica de toda a obra, e que não era possível prever todas as dificuldades no contrato inicial, pese embora, como se sabe, as estimativas de custos serem sempre menorizadas para facilitar a aprovação das verbas para os investimentos.

E neste caso, as estimativas eram otimistas. Exageradamente otimistas.

Qualquer cidadão sabe que a garantia de um bem se perde quando um terceiro intervem. Parecia simples de explicar isto. A própria construtora brasileira, quando saiu da obra, apressou-se a enviar uma carta ao metropolitano, pedindo encarecidamente que providenciasse o enchimento do fundo do túnel com uma camada de betão poroso para dar peso e rigidez ao túnel, contrariando a impulsão hidráulica de baixo para cima.

Foram aproveitados uns entulhos de obra e uns materiais que davam altura para a circulação de vagonetas. Foi tudo alisado com uma camada de betão leve. Não foi betonada a camada de betão poroso rigidamente encostado às aduelas. Com isso se poupou algum dinheiro em betão.

A partir daí, toda a responsabilidade da construtora pelo que construira cessava, porque a solução técnica que pretendia executar se tornou impossível por decisão administrativa.

O presidente pediu urgência à Meira e Zuzarte, pois que tinha ganho o concurso por ter apresentado um preço baixo e um prazo curto, embora estes dois fatores sejam as mais das vezes uma forma de amarrar os dinheiros públicos a gastos adicionais mais tarde, coisa difícil de compreender pelos zelosos.

E a Meira e Zuzarte, diligentemente, já tinha aproveitado os dias de elaboração do contrato para mobilizar os seus carotadores para entrarem em obra assim que o contrato estivesse assinado.

Tinha sido esse o método escolhido para partir o túnel e construir a estação.

Todas estas combinações se resolviam em círculos fechados. Os técnicos que analisavam as questões com os empreiteiros, muito nova rica e provincianamente, viviam embevecidos com o nível elevado das verbas envolvidas. Quando alguma coisa transpirava, qualquer objeção que pusessemos era imediatamente contestada com o argumento da complexidade técnica para a qual não estávamos habilitados a discutir o que quer que fosse.

Na realidade eu não estava nada habilitado, e terminava sempre a conversa com os colegas com esta frase: “Por mim, fazia a obra com ensecadeira, como nas barragens; eu espero que saibam o que estão a fazer, porque eu, na verdade, não sei o que vocês estão a fazer”.

Os carotadores eram necessários para furar o túnel, com furos da ordem de 20 cm, através dos quais se enfiariam mangas de polietileno e varões de aço, seguindo-se a injeção de betão em calda, sob pressão, formando estacas que ancorariam o túnel aos terrenos de aluvião existentes.

Depois de ancorado o túnel, com múltiplas estacas, construir-se-iam os tímpanos (paredes das extremidades) da nova estação e armar-se-iam as estacas que constituiriam a paliçada das paredes da estação.

Depois disso se partiria o túnel compreendido na estação.

Na verdade, esta era uma solução razoável.

Mas não era, na sua execução de pormenor, a do construtor do túnel.

Ia-se mexer no túnel, furá-lo, sem que o construtor fosse responsável por isso.

Ia-se perder a garantia.

Na manhã em que discutíamos o sistema de controle automático dos comboios, a firma subempreiteira de carotadores desceu bem cedo ao túnel a instalar as suas máquinas perfuradoras.

Eram gente experiente e por isso não perderam tempo.

A pequena máquina com lagartas de tratorzinho e o seu veio de inclinação variável para perfuração iniciou rapidamente o primeiro furo, sem esperar pelos colegas da fiscalização do metropolitano, nem pelo técnico da Meira e Zuzarte.

Os carotadores, como eram gente com experiência, estavam habituados, como disse, a não fazer esperar, e tinham já outras obras à espera, que o trabalho deles é especializado e muito requerido para obras de escavação e de contenção dos terrenos e dos edifícios adjacentes à escavação, ou em obras de contenção de muros à beira de autoestradas.

O primeiro carote saltou depressa no piso irregular do enchimento do túnel. Um cilindro de 20 cm de diâmetro e 50 cm de altura, que é a espessura das aduelas.

Não tardou que o segundo carote lhe fizesse companhia.

E o terceiro, e o quarto.

Ao fundo de cada orifício via-se o lodo, ou aluvião do terreno envolvente do túnel, a humidade refletindo o brilho dos projetores de iluminação da obra.

O dia cá fora estava bonito. A superfície do rio brilhava ao sol, ali tão perto das obras no túnel.

No estaleiro fronteiro ao sítio do paço da ribeira, mesmo ao lado do rio e à sombra de árvores frondosas, encontraram-se os três técnicos da inspeção e fiscalização do metropolitano: Raul Pinheiro, o diretor geral da obra, ainda jovem, sem experiência de construção antes de ter entrado recémformado na empresa, mas vividos já os percalços da obra do viaduto do Campo Grande e da furação dos túneis dos Restauradores e do Rossio para o Cais do Sodré e para Santa Apolónia; Matos Conde, um engenheiro sénior com vasta experiência de construção civil, diretor da fiscalização; e Jaime Guiante, chefe de obra da estação do Terreiro do Paço.

Tinham combinado encontrar-se ao fim da manhã para uma visita ao local da obra com os técnicos do empreiteiro Meira e Zuzarte para acertar os pormenores do início da obra. Depois ainda poderiam aproveitar o bom tempo para almoçar na esplanada do Guarda-rio, ali à beira do cais do gás, no Cais do Sodré.

O contrato tinha sido assinado havia poucos dias, o estaleiro do empreiteiro ainda não estava montado, os três estavam confiados. Ignoravam as palavras do administrador principal da Meira e Zuzarte na assinatura do contrato, dignas, pela premonição, de uma tragédia grega – “vamos fazer tudo para que esta obra fique na história da engenharia portuguesa, e vamos fazê-lo depressa”.

Tinha sido o presidente da administração do metropolitano a pedir pressa na execução da obra. Sabe-se como os administradores do metropolitano são sensíveis à rapidez de execução, porque isso lhes dava prestígio junto dos ministérios e garantias de futuro em próximas colocações em empresas públicas, desejavelmente em empresas cada vez mais importantes.

Os três desceram pelo poço da Marinha, assim chamado por estar no pátio do arsenal do Alfeite, por onde tinham sido introduzidos os componentes da tuneladora, Jaime Guiante à frente por ser, diga-se assim, o dono da casa.

O poço desembocava diretamente no túnel. Do lado da estação Baixa-Chiado, uma comporta fixa de betão fortemente armado isolava o túnel em exploração, com os comboios da linha para o Colégio Militar a inverter o seu sentido de marcha na estação, e os comboios da linha do Cais do Sodré para o Campo Grande a servirem o outro cais da estação.

A comporta armada tinha sido exigida pela companhia seguradora e distava cerca de 300 metros, em rampa suave até à estação em serviço. Para o outro lado, o túnel até Santa Apolónia, com pouco mais de um quilómetro, estava protegido da zona da obra de carotagem por um emboque de betão simples, no limite do sítio da estação Terreiro do Paço.

Entre o poço da Marinha e o sítio da estação Terreiro do Paço o túnel prolongava-se em declive e em curva para a esquerda, cerca de 500 metros até ao troço plano onde estava prevista a construção da estação do Terreiro do Paço e onde os carotadores estavam a trabalhar.

Os três descem ainda calmos o declive. Não veem os carotadores por causa da curva. Já estão 13 carotes executados. Os carotadores largam os seus equipamentos porque vão almoçar, e é então que chegam os três.

A surpresa é grande. Raul Pinheiro interpela o engenheiro da Meira e Zuzarte :

 – Pá, o que fizeste? Tapa já isso.

Raul Pinheiro tinha tido um episódio curioso durante a construção do túnel entre o sítio da estação Terreiro do Paço e Santa Apolónia. A tuneladora tinha já construído a curva do túnel desde o poço da Marinha até ao Jardim do Tabaco. A geotecnia do terreno deixara de ser de simples aluvião, sob o rio, e era agora mais argilosa. Havia que mudar as fresas do disco de escavação com 10 metros de diâmetro. Para isso a tuneladora dispõe de uma câmara de acesso às fresas. Quando se abriu a portinhola de acesso, água e lama começaram a escorrer para o interior da tuneladora. Foi necessário, para mudar as fresas, praticar um poço de acesso exterior ao disco. Assim se compreende a pergunta de Raul Pinheiro, “que fizeste?”

O lodo saía já pelos primeiros carotes, ainda lentamente, mas mostrando já força. Montaram-se as cunhas do jogo de acessórios dos carotadores, semelhantes, em ponto grande, às cunhas usadas na marinharia para obturar os orifícios de travessia dos cascos, como vemos nos filmes de submarinos quando são atacados por bombas de profundidade. Trouxeram-se os sacos de areia que existem sempre nas obras junto de água.

Mas os buracos dos carotes já eram fontes que jorravam água e lodo. Não foi possível contê-los. O ruído que aquele fluido fazia aumentava de intensidade e de frequência e a água já subia no pavimento.

Os três fizeram como os comandantes dos navios. Foram os últimos a fugir para o poço da Marinha. Ouvem-se sons de rutura, sente-se o pavimento a soltar-se das paredes das aduelas, as aduelas a deformarem-se. A água cresce mais depressa, como onda espraiada na rampa.

Jaime Guiante, por ser corpulento e pesado, vai atrás dos outros dois. Estão quase a chegar ao poço da Marinha quando grita :

  Estou a ter uma cãibra.

Matos Conde não consegue conter a frase:

  Ficamos todos aqui.

Mas dão as mãos, ele e Raul Pinheiro, e içam Jaime Guiante para o primeiro patamar do poço da Marinha. Sobem a escada provisória e beijam o solo do pátio. Lá em baixo a água revolteia de encontro à comporta.

Providenciaram-se camiões betoneira para despejar betão pelo poço da Marinha para vedar o túnel acidentado e reforçar pelo interior do túnel o emboque do sítio da estação Terreiro do Paço, do lado de Santa Apolónia. Trazem-se também bombas transportáveis de grande capacidade de bombagem que conseguem fazer baixar o nível da água e facilitar o trabalho de vedação do túnel acidentado, tanto pelo lado do poço da Marinha como no emboque do lado de Santa Apolónia.

Já estão reunidas as direções técnicas do metropolitano e da Meira e Zuzarte com a administração do metropolitano, são chamados professores ilustres do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.

Não estão presentes técnicos do empreiteiro construtor do túnel, nem tão pouco alguns especialistas de estruturas do metropolitano que poderiam ajudar. Em Portugal prevalece a opinião que restringir o círculo de decisão melhora as decisões.

Talvez não fosse importante; os pormenores da construção do túnel eram dominados pelos técnicos do metropolitano. Mas a garantia do construtor desvanecera-se, com a agravante de existir no metropolitano aquela carta sua, depois de terminado o contrato, em que considerava essencial consolidar urgentemente com betão o fundo do túnel, em vez de tapar os detritos desagregados com uma betonilha ligeira.

Ninguém estranhou a ausência do empreiteiro do túnel.

Vedado o túnel, é decidido enchê-lo com água, para que a pressão interior do túnel compensasse a pressão exterior sobre ele (pressão de natureza hidroestática, isto é, exercendo-se igualmente em todos os pontos e em todos os sentidos, dada a elevada percentagem de água nos terrenos envolventes) e assim o não destruisse, enquanto se projetava a obra de recuperação.

Discutiu-se durante os dias seguintes o projeto de recuperação.

Discutiu-se significa discutiu-se num círculo restrito.

Mais uma vez, alguns dos melhores técnicos de estruturas e túneis do metropolitano não foram ouvidos. Uma das soluções propostas era o revestimento interior do túnel com chapas de aço soldadas umas às outras.

Por maioria de razão não foi seguida a minha sugestão do método da ensecadeira.

Mas o prestígio dos consultores tinha alguma correspondência com a realidade e como se irá ver a solução escolhida foi de bom nível.

Notar que nesta altura, com o túnel vedado e submerso, não era possível avaliar a extensão dos estragos, apesar do recurso a mergulhadores profissionais. Isso só foi possível um ano e meio depois, estabilizado o túnel, construídos os novos emboques de limitação da estação do Terreiro do Paço, dum lado e doutro, e esgotada a água de compensação.

Mas nestas coisas de engenharia, há sempre indícios que permitem construir hipóteses. E um dos indícios mais evidentes, logo a seguir ao desastre, foi o abatimento de algumas zonas do pavimento da praça do Terreiro do Paço, nomeadamente no sopé da estátua de D.José, a mais de 100 metros de distância dos carotes, e o afundamento de mais uns milímetros do torreão Poente, já de si em processo antigo de assentamento nos lodos, com fratura de cornijas e lajes de varandas a meio das arcadas.

Pôs-se então a hipótese de que a pressão hidrostática tinha forçado a entrada no túnel, pelos orifícios dos carotes, de grandes quantidades de aluviões que, deslocando-se, foram criando espaço para o arrastamento das terras sob o pavimento do Terreiro do Paço.

Ter-se-ão criado vários caminhos, de tipo arborescente, para tais arrastamentos de terras, aluviões e águas, enquanto a pressão do aterro que se destacava da superfície do rio, e que desde a passagem da tuneladora seguia a curva do túnel para compensar a força de impulsão do próprio túnel, conforme Arquimedes ensinava, conjugada com a pressão hidrostática, provocou uma deformação das aduelas na zona dos carotes com ovalização da secção do túnel em cerca de 10 cm, isto é, 1% do diâmetro da secção do túnel. Apesar de tudo, poucas aduelas se partiram, e nunca mais do que duas em cada secção.

Tudo isto se confirmou depois do esgotamento da água de compensação.

O assunto subiu à Assembleia da Republica.

A pressão da opinião pública, ou de quem escreve por ela, era grande, para ajuizar como os dinheiros dos contribuintes eram malbaratados e para encontrar culpados, que o gene do pelourinho nunca o conseguimos afastar do nosso património.

Cada partido nomeou os seus representantes, todos com ar muito compenetrado e naturalmente distantes das razões de causa e efeito do acidente.

Entretanto, a ministra do mar, energia e ambiente decidia ser ela a resolver o problema técnico.

A ministra Diana Pereira, engenheira civil, dedicara a maior parte da sua vida profissional ao ordenamento territorial, por esse país fora.

Era uma técnica apreciada, movendo-se corajosamente, ou não se chamasse Diana, num meio dominado por homens. Só praticara o projeto de estruturas nos primeiros tempos da profissão, passando de seguida à carreira de gestora. O sucesso do seu gabinete de planeamento acabou por ditar a chamada ao governo pelo partido mais destacado na luta da iniciativa privada na tomada do espaço das externalidades até então tratadas pelo setor público.

Tinha-se especializado, recém-formada, na Holanda, em geotecnia e obras especiais.

Partilhara o quarto de estudante com uma delicada holandesa do norte, da Frísia.

Nunca mais a vira.

Apenas guardava dela a recordação dos longos passeios nos canais de Amsterdam, da ternura das noites aquecidas de inverno, das tardes de domingo com os Vermeer do Reijksmuseum, das flores e dos órgãos de vapor nas feiras de sexta feira, dos risos das duas em frente das montras das noites vermelhas da Paradise Straat, dos sniper trips dos Spoorweg (passeios rápidos dos caminhos de ferro) de fim de semana ao Kroller Muller de Van Gogh e às ilhas da Frísia.

Por isso teve um choque quando os assessores lhe apresentaram, depois de pesquisa expedita, uma lista de possíveis consultores estrangeiros especialistas de geotecnia e túneis subaquáticos.

Lá estava o nome dela, à frente de um gabinete de engenharia com referências de sucesso nos trabalhos complexos dos túneis ferroviários em Rotterdam.

A engenheira Diana não hesitou, invocou a urgência e a complexidade técnica e apontou: quero este gabinete.

O deputado do seu partido, sabendo-se filmado pela televisão, levou para a reunião da comissão do Parlamento uma cunha e, seguro da sua qualidade de engenheiro, interrogou o administrador do metropolitano: Sabia que se houvesse um jogo completo destas cunhas ter-se-ia evitado o desastre?

Pobre deputado, depois do mal feito, por mais cunhas que ali estivessem, a pressão hidroestática prevaleceria sempre. E não conseguiu perceber o vínculo entre a rejeição do empreiteiro construtor do túnel, as pressas do novo empreiteiro e a descoordenação do trabalho dos carotadores.

Mas impunha-se-lhe fazer o jogo político contra a oposição, porque a administração do metropolitano tinha sido nomeada, em anterior legislatura, pelo partido que agora se encontrava na oposição.

Veio o truculento deputado do partido da oposição, também seguro do seu diploma de engenheiro, garantir que as linhas de água do vale de Lisboa, descendo no subsolo da Avenida da Liberdade e da Avenida Almirante Reis e do regueirão dos Anjos, pressionaram de tal maneira as paredes do túnel que tinham partido as aduelas, gerando-se um fenómeno de “chaminé de areias”.

Pobre deputado tão fantasista, que nem uma única vez falou em carotes.

As audições prolongaram-se por várias semanas.

Raul Pinheiro, Matos Conde e Jaime Guiante lá se foram justificando, recorrendo a termos técnicos sempre que possível, para acalmar a sede de culpados dos autores dos interrogatórios.

E de repente, a Comissão deu por findos os seus trabalhos, concluindo um relatório que propunha o acionamento do seguro do empreiteiro e recomendando um acerto de contas entre o metropolitano e o empreiteiro para o prosseguimento do contrato de construção da estação Terreiro do Paço, justificando eventual perdão das multas pelo atraso da obra com a real complexidade técnica.

A obra da estação já ia adiantada, com o projeto original, do próprio metropolitano. O sítio da estação tinha-se deslocado no sentido do poço da Marinha, afastando-se de Santa Apolónia, para “abraçar” a zona acidentada. Tinha sido construída uma paliçada de estacas secantes que atingiam o fundo firme e formavam um prisma retangular ancorado nos emboques de betão dos topos da estação. Os lados mais compridos estavam travados por escoras metálicas que ficaram até à betonagem final da estação. Um projeto lindo e estudado internacionalmente.

A alta direção da Meira e Zuzarte, para não fazer mentiroso de quem assevera que o poder político é controlado pelo poder económico, que Fernão Lopes perdoe a paráfrase, tinha diligenciado com eficácia a mediação entre os dois partidos.

A mediação era indispensável porque o conflito tinha atingido níveis elevados de confrontação. Às escondidas do público e dos órgãos de comunicação social, mas de forma psicologicamente violenta.

O partido da oposição ameaçava revelar os aspetos mais íntimos da relação da ministra com a diretora do gabinete holandês de engenharia se a investigação da comissão do Parlamento condenasse a administração do metropolitano, seus confessos comissários políticos. E isso, uma relação de amor lésbico, naquele tempo, seria muito mal recebido pela opinião pública.

O partido do governo não só ameaçava a administração do metro como o próprio governo anterior. Acusava de inquinação todo o processo de adjudicação ao empreiteiro da tuneladora, de afastamento dos valores contratuais e de incumprimento das normas de financiamento europeu na concessão de trabalhos a mais, incorrendo assim na suspeita de favorecimento ilícito do anterior empreiteiro.

A Meira e Zuzarte não estava interessada em que se expusesse a sua incapacidade de controlar o subempreiteiro carotador, e conseguiu levar a sua mediação a bom termo.

O relatório da comissão foi rápida e pacificamente aprovado.

A ministra veio a tomar posse duma cátedra de planeamento e ordenamento do território numa universidade do sul do país e não foi incomodada pela comunicação social.

A administração do metropolitano, no termo do seu mandato, foi substituída por uma mistura equilibrada de representantes dos dois partidos, para que não se dissesse que os gestores das empresas públicas eram os comissários políticos que se conhecem.

O gabinete da suave holandesa desenvolveu o seu projeto de recuperação do túnel, com a construção de um novo túnel por dentro do pré-existente, em anéis de betão armado de 10m de comprimento cada um, embricados uns nos outros como os dos lavagantes. Também instalou a monitorização dos deslocamentos, cujas medições eram enviadas pela Internet para a sede na Holanda.

A consolidação dos terrenos de aluvião envolventes seria feita mais tarde segundo um projeto do Laboratório de Engenharia Civil, através de estacas semeadas à volta do túnel e ancoradas no terreno firme meocénico, o que estabilizou também o torreão Poente.

Quando me despedi, no termo do seu mandato, do administrador financeiro que tão preocupado ficara com o acidente, já funcionava o sistema automático dos comboios da linha vermelha, do Oriente. As ordens de comando e de travagem eram fornecidas pelo sistema, que em qualquer momento processava as informações sobre o estado de ocupação da linha, sobre a posição das agulhas, sobre a localização do próprio comboio, e comparava a velocidade programada com a velocidade real, acelerando ou abrandando. O comboio conduzia-se a si próprio, com o maquinista apenas a vigiar, a dar ordem de partida nas estações e a atuar periodicamente o dispositivo comprovador de que estava vigilante.

A nova administração do metropolitano, nomeada após o episódio caricato da recusa por um engenheiro, de exposição mediática, do cargo de presidente da administração, por não ter aceite a indigitação pelo partido da oposição do administrador financeiro, recebeu do novo ministro a incumbência de acabar de resolver o problema do Terreiro do Paço.

A sua primeira decisão foi uma não decisão: comunicar oficialmente que já não se construiria o túnel rodoviário do Campo das Cebolas para o Cais do Sodré. Assim se confirmou o desperdício de se ter projetado a estação do Terreiro do Paço demasiadamente profunda, com o que isso custou a mais.

A nova administração visitou orgulhosamente e com pompa a obra da estação do Terreiro do Paço.

Já tinha havido o perdão da comissão do Parlamento, mas ainda não se tinha chegado ao acerto de contas. Inclinando a cabeça para passar debaixo das escoras horizontais, o novo presidente disse que era preciso pôr mais recursos em obra porque havia prazos a cumprir. Ao que o administrador da Meira e Zuzarte respondeu, já do outro lado da escora, muito direito no seu casaco azul de botões prateados, que a sua empresa não era uma instituição de benificência e por isso precisava de receber em adiantado para pagar aos fornecedores, subempreiteiros e empregados.

Poucos dias depois o acerto de contas contentava todos: a Meira e Zuzarte pagava uma multa de vários milhões de euros pelos prejuízos causados, mas o metropolitano pagava um prémio largamente compensador pelas soluções reativas ao acidente, pela complexidade técnica da construção, e pela rapidez de execução da estação. Tudo validado por prestigiado gabinete jurídico muito solicitado pelas empresas públicas, em constante esquecimento das regras de contratação pública por concurso público.

Tempos depois, a Meira e Zuzarte tentou negociar o pagamento de adicionais na obra de reparação do túnel da CP do Rossio a Campolide, argumentando que era impossível cumprir o caderno de encargos pelo preço contratado. A administração da CP reagiu de forma diferente, rescindiu o contrato e adjudicou a conclusão da obra a um consórcio concorrente que a executou dentro do orçamento. A Meira Zuzarte perdeu o recurso que interpôs. Por isso comentámos no metropolitano que, tal como respondeu ao rei o pequeno agricultor ameaçado de expropriação por Frederico o Grande para a construção do seu Beau sejour em Potsdam, “ainda há juízes em Berlim”. Mas não sofreu com isso, a Meira e Zuzarte, que já tinha iniciado as suas parcerias com grandes empresários angolanos.

Sete anos e meio depois do acidente do Terreiro do Paço, demolimos a comporta de proteção no poço da Marinha, lançámos os carris e os sistemas de energia elétrica, de telecomunicações e de sinalização ferroviária e ensaiámos as circulações de comboios no túnel até Santa Apolónia.

Com um ou outro percalço nos sistemas complementares e algumas incompletudes, o coração encheu-se-nos de alegria ao ver a chegada dos comboios da Azambuja em Santa Apolónia e dos barcos do Barreiro no Terreiro do Paço despejar gente que apanhava os comboios do metro e ia trabalhar.

Estávamos quase no solstício de inverno de 2007.

Na cerimónia de inauguração, muito concorrida e participada ao mais alto nível pelo governo e câmara municipal, houve discursos de pompa, circunstância e muito orgulho, mas não se falou nas questões técnicas da rede de transportes da área metropolitana de Lisboa, da insustentabilidade de a maior parte das deslocações ser feita em automóveis privados, consumindo combustíveis fósseis não renováveis.

Nem pareceria que fosse possível, que quem falou não consegue fundamentar o que diz com raciocínios matemáticos ou físicos.

E esse é que é o verdadeiro desastre dos túneis do metropolitano de Lisboa.


 


o martírio de santa Apolónia (escrito em 2014)

 

o martírio de santa Apolónia

“O que nos une é uma mesma ignorância.”

(Pedro Paixão, Rosa vermelha em quarto escuro)

 

Exmo Senhor Presidente da Câmara Municipal de Lisboa

O Senhor Presidente da Câmara participou, sorridente, na cerimónia de inauguração da estação do Terreiro do Paço e de chegada do metropolitano a Santa Apolónia.

No metro já desesperávamos, mas entregámo-nos aos trabalhos que deixamos que chamem “de acabamentos”, neste caso também conhecidos por “especialidades ferroviárias”, e que o senso comum compreende que são os mais demorados, mas que aqui não foram e assim conseguimos que o senhor presidente da câmara estivesse sorridente naquele dia 14 de dezembro de 2007 e que nós escapássemos ao castigo de inviabilizarmos tão esperada consagração, embora ainda agora continuemos nos trabalhos e ensaios finais.

Graves foram os erros cometidos em todo o processo construtivo.

Corrigimos os erros.

Pagámos, somos tanto Povo como o Povo.

Demolimos os tampões de betão que protegeram o metro enquanto o túnel era consolidado com as obras de reforço.

Fernando antela Saraiva

Gastámos na construção da estação Santa Apolónia, porque há 150 anos ali era rio e depois aterro, mais dinheiro dos empréstimos do que na estação do Terreiro do Paço, que foi vítima do acidente.

Fixámos os carris ao fundo do túnel.

Estendemos os cabos elétricos e os cabos de comunicações que aguardavam a demolição do betão protetor para prolongar a rede até Santa Apolónia.

Ativámos o posto de ventilação do pátio do Arsenal da Marinha que devia ter começado a funcionar em 1998.

Enchemos as estações novas com tudo o que nos habituámos a instalar nas outras estações.

Orgulhámo-nos de ver, finalmente, os comboios cheios de cidadãos e cidadãs que chegavam da Azambuja, de Vila Franca, do Barreiro, do Lavradio, na sua caminhada diária para o crescimento do PIB.

E vem agora o Senhor Presidente propôr o martírio de Santa Apolónia, mandando parar os comboios no Oriente, vendendo terreno e aproveitando o convento da santa para terminal de cruzeiros.

Eu digo martírio porque para nós é doloroso ver quebrarse o elo de ligação do metropolitano aos comboios da Azambuja.

Felizmente os colegas da CP já vieram dizer que os terrenos são precisos (não digo que umas franjazinhas de terreno não se pudessem converter em euros...) para alojar infraestruturas; isto de comboios é uma maçada, não são só os comboios, há sempre necessidade de mais coisas para eles funcionarem, às vezes até um núcleo museológico para os colegas do estrangeiro, na reforma, cá virem deixar mais umas divisas, e que o serviço até Santa Apolónia se justifica também com a ligação ao metro.

Não terá estado o Senhor Presidente à altura do contributo que deu para a melhoria dos transportes coletivos quandovenceu a corrida com o Ferrari, essa ficou o metro a deverlhe, e a resposta correta dos colegas da CP não é suficiente para nos tranquilizar.

Terá havido um aconselhamento de economista.

Mas o Senhor Presidente sabe que o economista sabe quanto custam as coisas mas ignora quanto valem as coisas (definição dada por um economista).

Se ele soubesse, sabia que a chegada de comboio a Santa Apolónia daqueles cidadãos e cidadãs vale mais, muito mais do que as mais valias ganhas com a venda de terrenos para cobrir o défice da REFER.

E se lhe vierem dizer que o projeto da RAVE para a linha do Oriente já tem infraestruturas que chegam para dispensar todas as de Santa Apolónia, seja cartesiano, não acredite.

E se mesmo assim o economista lhe disser que já há correspondência com o metro na estação Oriente, então digalhe calmamente que os transportes urbanos numa cidade não são linhas, são redes de linhas, para que os cidadãos e cidadãs possam distribuir-se por várias linhas e por vários nós de correspondência.

É por isso que esta missiva começa com aquela citação de Pedro Paixão.

Poderá parecer deselegante, mas o objetivo é chamar a atenção para a complexidade dos problemas dos transportes urbanos, a que corresponde uma grande ignorância das soluções, e que todos partilhamos.

Ou uma intransponível burocracia ou inépcia paralisante, que não nos deixou beneficiar de fundos comunitários para, aproveitando os meios instalados em obra, prolongar a linha até às comendadeiras, em Santos o Novo, onde seria curial fazer uma correspondência com uma linha circular pelo vale acima (ficou amputado, o término de Santa Apolónia, nem sequer chegou a ameaçar as fundações da discoteca Lux).

Fernando antela Saraiva

Deixem-nos porém, já que temos obrigação de ser um bocadinho menos ignorantes em questões de transportes, continuar a transportar os passageiros da Azambuja pela cidade dentro.

E não leve a mal pedir-lhe que acredite nos técnicos de transportes. Quando De Gaule pediu o helicóptero para ver as “embouteillages” em Paris, em 1956, deu apenas uma ordem: “Resolvam-me esta merda” . Não disse como, nem disse ao ministro dos transportes para lhe explicar como. E foi assim que nasceu o RER (suburbanos de Paris).

E muito menos leve a mal que chame a sua atenção para um problema gravíssimo, em termos de transportes, que se gerou em Alcântara, graças a governos e câmaras anteriores.

Recorda-se do disparate de um anterior Presidente de Câmara propondo a supressão do caminho de ferro entre Alcântara e o Cais do Sodré e a venda do terreno para urbanizações de luxo?

Como pode a Democracia, como podem os cidadãos defender-se destes ataques?

A natureza geológica dos terrenos em Alcântara e a proximidade do caneiro da ribeira e da sua foz recomendam que as estações futuras do metro e da CP sejam em viaduto e que os cruzamentos rodoviários se lhes subordinem.

Não vale falar em agressões ambientais quando estiveram previstas as duas torres Siza, se pensou nos blocos Jean Nouvel e os edifícios novos que lá estão têm 6 pisos.

Caso para dizer agora que terão de ser os técnicos da especialidade a descobrir como fazer um terminal de cruzeiros onde o senhor presidente quer, sem erguer um muro segregador de 6 m de altura nem violar o convento de Santa Apolónia.

Mas, por favor, que não sejam técnicos só de uma entidade, para que possamos beneficiar de um bocadinho de diversidade.

É a diversidade a mãe das grandes soluções, diria o Padre António Vieira se as técnicas de gestão já estivessem no tempo dele tão evoluídas como agora.

Não queira que aconteça o que aconteceu com a Ota e com o TGV, localização deficiente do novo aeroporto e traçados incertos, graças ao sigilo com que foram estudadas as soluções.

E que não venha assim a haver nenhum martírio, que seria histórico, de Santa Apolónia, a virgem alexandrina heroína de um martírio lendário no século III, precursora do martírio real de Hipátia de Alexandria, a matemática lapidada por fundamentalistas cristãos um século e meio depois, quando por decreto imperial se extinguiu a cultura hieroglifica.

E se convoco Apolónia, a cultura que emerge, e Hipátia, a cultura que resiste, é porque são bons exemplos de que é fácil escrever a história quando se tem o poder; e fechar ou deixar a funcionar a estação ferroviária de Santa Apolónia será sempre a melhor solução se, quem o decidir, fôr quem tiver o poder de deixar escrito que terá sido a melhor solução, deixando porém a amargura em alguns: como evitar uma má solução para os transportes coletivos em Lisboa?

Pedindo desculpa pelo tempo tomado, apresenta os melhores cumprimentos, o cidadão munícipe de Lisboa

Breve recebi um email informando que a minha pretensão tinha sido encaminhada para o departamento competente para estudo. Evidentemente que nunca mais recebi nada sobre este assunto.