sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Energis VII - O secretário de Estado João Fictício Azeitona








João Fictício Azeitona , nascido e criado em Azeitão, e talvez por isso admirador de Sebastião da Gama, tem um nome bem adaptado à sua militância em grupos ecologistas.
Dada a sua proximidade ao partido mais votado, não se estranhou a nomeação como secretário de Estado do Ambiente.
Mas João Fictício teve, enquanto secretário de estado, um comportamento independente das orientações do partido, colocando sempre em primeiro lugar o Ambiente ou, como ele dizia, as pessoas.
Já se percebeu, por esta altura, que este pequeno texto é apenas uma homenagem a João Fictício, e não tem nada que ver, nem sequer por meras coincidências, com a constituição do actual governo da Nação.
João Fictício, a quem muitos acusavam de lírico, o que não deixava de lhe causar um certo prazer, atendendo à admiração por Sebastião da Gama, tratou de fazer jus ao seu nome quando se apanhou na secretaria de estado.
E um dos dossiers, como se diz em burocrático, que tomou entre mãos e fez até avançar, foi o do levantamento e identificação das potencialidades de cultura e produção de espécies vegetais para a produção de combustíveis, ou para mistura com combustíveis fósseis, de modo a reduzir a dependência externa dos ditos, e também a famosa “pegada ecológica”, ou pegada do carbono” do país que muito queria servir.
Em pouco tempo, um grupo de jovens entusiastas que o rodeava, alguns com concepções políticas que mais tarde escandalizaram os chefes do partido, tinham desenhado um mapa do país agrícola com áreas bem marcadas em que estavam assinaladas as espécies que se poderiam cultivar com sucesso, as quantidades de grão, frutos ou bagas que se poderiam obter e as quantidades de combustível vegetal e os respectivos poderes energéticos.E depois, se o projecto ayingisse os objectivos, que não se admirassem de ver andar camiões apenas com óleo de colza, que Rudolf Diesel experimentou o seu primeiro motor com óleo de amendoim.
João Fictício iniciou então uma guerra com entidades públicas e privadas, porque em Portugal é muito difícil planificar de forma integrada seja o que for.
Os proprietários rurais não quiseram associar-se nem coordenar as suas culturas em função das necessidades de produção de combustível vegetal, as empresas industriais de resíduos urbanos e agrícolas desconfiaram de que estavam a querer ficar-lhes com o negócio, as repartições públicas temeram o fim da calma dos gabinetes, e todos acharam que havia ali movimentações de comunistas.
Enquanto essa guerra germinava, como bom azeitonense, impressionado pela quantidade enorme de azeitona que é desperdiçada quando começa a cair, todos os anos, a partir de Outubro, João Fictício promoveu a recolha, por todo o país, da azeitona caída.
Carrinhas de caixa aberta ou de caixa fechada, de grandes empresários de transportes ou individuais que foram a correr registar a sua empresa unipessoal em menos de uma hora, e que responderam aos processos de contratação pública em estrito cumprimento da legislação, percorreram todo o país.
E assim ficou provado, aos olhos de muitos, que era mesmo coisa de comunistas, porque essa ideia de apanhar a azeitona do chão já tinha vindo à tona com a Maria Vitória da ocupação da herdade da Torrebela e do filme de Thomas Harlan (ver em http://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_Bela_(filme) ).
Foram assim levantadas do chão toneladas de azeitonas, desde as azinhagas de Carnide, em Lisboa, às estradas e caminhos das serras da Arrábida e do Louro, ali ao lado de Azeitão, aos campos de Sousel e do Alentejo, às terras de Trás os Montes e do Côa.
Não se tocava nas azeitonas agarradas aos ramos. Só se apanhavam as caídas.
Toneladas e toneladas de azeitonas foram prensadas, até nos lagares que as normas comunitárias tinham excluído da produção de azeite por carência de satisfação dos requisitos da União.
Do óleo de azeitona que se obteve, não integrável na cadeia alimentar pelas razões acabadas de expor, produziu-se por transesterificação combustível biodiesel.
Depois, a partir do bagaço da azeitona, com peles, sobras de polpa e caroços, que sobraram nos filtros das centrifugadoras, obteve-se mais óleo, agora iluminante ou para queima.
E por fim ficaram os caroços, da melhor madeira.
Caroços, restos do bagaço e óleo iluminante acabaram em centrais termo-eléctricas de bio-massa, de braço dado com cascas de amêndoa , ramos triturados e sobras dos baldios.
Feitas as contas, conseguiu-se produzir naquele ano, só à conta das azeitonas, aproveitando-se duas pequenas centrais de 5 e de 20 MW já existentes, qualquer coisa como 30 GWh (Gigawatt.hora) ou dizendo doutra forma, 30 milhões de kWh de energia eléctrica.
Não foi muito, num país em que se produz cerca de 47 TWh (Terawatt.hora), ou dizendo de outra forma, 47.000 milhões de kWh.
Porém, esses 30 milhões de GWh ficámos a devê-los às azeitonas, e não a combustíveis fósseis que temos de importar, e quase nada poluíram em emissões de gases com efeito de estufa, quando comparados com as emissões dos combustíveis fósseis. Digo quase nada porque houve algumas emissões durante o processo de recolha e de fabrico dos combustíveis vegetais.
Não gostou um grande industrial com grande volume de negócios na área do aproveitamento de resíduos, talvez “et pour cause”, que lhe tivessem atravessado a herdade a apanhar azeitonas do chão.
E como publicano ofendido rasgando as vestes com pública fúria, processou o secretário de Estado por violação de propriedade privada.
Não teve João Fictício paciência para aturar os senhores jornalistas que quiseram fazer grandes títulos dos jornais, nem os chefes do partido e do governo que lhe exigiram relatórios e arrepio do caminho mudando para alvos prioritários de melhor aceitação pública.
E demitiu-se.
Foi dar aulas para a sua escola, duas ou três cadeiras do curso de engenharia ambiental; desabafa de vez em quando num blogue, relê aos fins de semana a poesia de Sebastião da Gama com a serra da Arrábida como fundo, e está a investigar o potencial das algas para a produção de biodiesel e dos respectivos resíduos para queima em centrais termo-eléctricas de bio-massa.
Este ano pelo Outono, lá estão as azeitonas no chão, morrendo ingloriamente aos pés de quem passa.
Mas atenção, é mesmo verdade, não tem esta história nada que ver com o governo actual.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Energis VI – A energia do hambúrguer e as bicicletas


Deu-se o caso que tive de investigar uns números para um powerpoint a apresentar na minha empresa (minha no sentido do outrem para quem trabalho, ou seja o que for que por este termo devamos entender, dentro ou fora da cobertura da definição já clássica de Gurvitch, de que o trabalho é toda a actividade consciente, penosa e útil).
Estava eu a magicar como comparar gastos específicos de energia de modos de transporte diferentes, e especialmente níveis de emissão de gases com efeito de estufa, assim como quem se prepara para submergir num plano estratégico de transportes para 12 anos, quando tropecei no cheeseburger.
O cheeseburger tem a grande vantagem de responder ao problema fundamental do homem, que é o de arranjar energia para alimentar a combustão dos seus tecidos (seus do homem), por exemplo às 2 ou 3 de uma madrugada em que a restante família esteja longe, em vilegiatura e a inspiração culinária tenha falhado à hora regimental.
Essa energia mede-se por 590 kilocalorias, ou, fazendo as contas ao equivalente, 680 Wh.
Por outras palavras, comendo um cheeseburguer, a nossa massa muscular permite-nos andar uns quilómetros sem emagrecer.
Como a energia que dissipamos a andar, sem entrar em apneia, para aí a 2,5 km/h, corresponde mais ou menos a uma lâmpada de 100 W, segue-se que um cheeseburguer dá para andarmos 680 Wh/100 W = 6,8 horas.
À velocidade referida, 2,5 km/h, foi combustível que deu para andarmos 17 km.
Nada mau.
E quem anda 17 km com 680 Wh anda 1 km com 40 Wh.
Até parece um problema de Fermi, guardando as respeitosas distâncias, claro.
(ver problemas de Fermi em:
http://www.cmpa.tche.br/educacional/secoes_ensino/site_sec_C/arquivos%20e%20Links/F%EDsica/textos_diversos_4.doc
http://algol.fis.uc.pt/quark/viewforum.php?f=14
http://es.wikipedia.org/wiki/Problema_de_Fermi)
E chegado a este ponto, fui comparar, que era para comparar modos de transporte que estava magicando, com o consumo específico do metropolitano, que é, considerando as energias consumidas na sua rede e nos seus edifícios, à volta de 120 Wh por passageiro.km.
Isto desta unidade passageiro.km, ou passageiro-km (não confundir com passageiro por km, ou passageiro/km) às vezes faz confusão mesmo.
120 Wh/pass.km significa que é preciso sacrificar 120 Wh de energia para transportar 1 passageiro durante 1 km.
Ou 2 passageiros durante meio km.
No fundo, quando se diz que o metro de Lisboa transporta por ano cerca de 800 milhões de passageiros.km, o que se está a dizer é que os percursos de todas as viagens realizadas por todos os passageiros durante o ano, alinhados um a seguir ao outro, somaram 800 milhões de km.
Melhor seria dizer então 800 milhões de viagens.km, mas passageiro.km é mais bonito e é esta a unidade em que se exprime o produto de uma empresa de transportes.
Também é preciso ter cuidado para não confundir passageiro.km com lugar.km.
É que aqui temos um dos grandes dramas da energia dos transportes: andar a passear lugares vazios.
A média em Portugal de passageiros por automóvel é de 1,2; na Finlandia é de 1,7.
A média de passageiros numa carruagem de metro é de 26 pessoas, quando ela tem capacidade para 130 com um mínimo de comodidade.
Estamos com problema de procura deste modo de transporte; as pessoas preferem andar de carro e deixá-lo em cima do passeio, a andar de metro.
Voltando ao cheeseburger, temos então que a energia para transportar um passageiro durante 1 km é de 40 Wh para o modo a pé e de 120 Wh para o modo metro.
Dir-se-ia que poderíamos evitar todos aqueles enormes investimentos para construir o metro se estimulássemos as deslocações a pé até ao local de trabalho.
Só que os 40 Wh são enganadores, porque para produzir o cheeseburger, até estar ao alcance da boca do consumidor, foi necessário consumir 5 vezes mais energia (fertilizantes, rações, abate e transporte da carne…), i.é, 200 Wh.
E assim se prova que a alimentação é uma forma deficitária de produzir energia (produzimos menos do que o que consumimos, ainda nos extinguimos, como dizia Malthus, se não ganhamos juízo, já que o desenvolvimento das tecnologias não dá cabo do fosso entre pobres e ricos, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Malthusianism), nem sequer conseguimos ser mais eficientes a andar a pé.
Também é verdade que é preciso mais do que 120 Wh por passageiro.km para fazer andar o metro, porque também houve consumo da energia até ela própria entrar no metro e este também despende energia na construção, na manutenção, no aquecimento, e por aí fora. Por isso é melhor contar, enquanto não se conseguir encher mais lugares nas carruagens, com cerca de 140 Wh/passageiro.km .
Mas não nos vamos ainda embora e vejamos se podemos melhorar a eficiência dos transportes com a máquina de melhor rendimento do mundo: a bicicleta.
Imaginem que, andando sem apneia, para aí a 7 km/h durante as 6,8 horas que o nosso cheeseburguer nos concede, conseguimos fazer cerca de 14 Wh/passageiro.km .
O que é óptimo, se não pensarmos que, para transportar na hora de ponta 15.000 pessoas, que é um número comodamente atingível numa linha de metro, teríamos de encher uma avenida com 8 vias normais de largura (agora é vias que se diz, não é faixas) ao longo de 7 km, para a esvaziar dos 15.000 “clientes do sistema de transporte” numa hora.
Estou a dar 4m de distancia entre 2 bicicletas consecutivas, percorridos em 2 segundos à velocidade de 7 km/h, sendo que os 2 segundos são a distancia sagrada, ou de segurança, em tempo, entre 2 veículos na estrada (mensagem especialmente destinada aos adam smithistas das auto-estradas: a 144 km/h, a distancia de segurança para o carro da frente é 80m).
Mas aqueles 14 Wh/pass.km, como provêm do cheeseburguer, também têm de ser multiplicados por 5 para obter a energia necessária à produção e comercialização do cheeseburguer.
Dá então 70 Wh/passageiro.km de bicicleta.
Mas agora temos de entrar com os custos energéticos da construção e da manutenção das vias, das próprias bicicletas, vamos até 77 Wh/pass.km.
E agora ainda falta a cereja no cimo do bolo.
É que a energia tem um custo mensurável em gases com efeito de estufa (a celebradíssima pegada de carbono, ou pegada ecológica).
E enquanto os 140 Wh/pass.km do metro, graças à distribuição das origens das fontes de energia da EDP, emitem à volta de 400 gCO2/kWh, as pobres vacas dos hambúrgueres, graças à peculiaridade do seu sistema digestivo, contribuem para que o resultado final das emissões da energia do cheeseburguer seja de 1 kgCO2/kWh.
Ora bolas, pois para os fabricantes de hambúrgueres, por mais cómoda que seja a sua visita às 3 da madrugada: 1 passageiro.km de metro emite cerca de 64 gCO2, enquanto o ciclista, por km, emite cerca de 77 gCO2.
Será que os ecologistas que nos governam terão feito bem as contas, ao lançar, na verdadeira acepção da palavra lançar, a moda das ciclovias por tudo quanto é câmara municipal, agora que serenaram as febres das fontes cibernéticas e das rotundas acalmadoras do transito?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Educação VI – uma aventura na 5 de Outubro

Senhora ministra.
Não me quero comparar a si nem dar-lhe conselhos.
E se falo assim é porque não tenho certezas devido à idade que tenho, que nisso estou de acordo com Saramago quando diz que ter dúvidas é o privilégio de quem viveu muito.
Baralham-se-me as ideias quando leio agora, na maior parte da imprensa, que a sua antecessora deixou obra muito positiva, e me lembro de ver a minha mulher a chorar com algumas das suas decisões (suas da antecessora).
Talvez, continuando o tema das dúvidas e de não acreditar no que vejo, que o que vejo aqui era a minha mulher a fazer testes diferentes uns dos outros para dificultar a cópia durante o teste e já eram duas da manhã, que aqueles escribas laudativos da sua antecessora tivessem razão e que os 40.000 professores (30%? 40%, cito de cor) que se reformaram em antecipação e com penalizações eram uns oportunistas que trabalhavam menos que qualquer professor da Estónia ou da Finlandia.
Não me quero comparar, mas se na empresa em que trabalho, uma percentagem dessas me desaparecesse de repente eu gritava ao economista chefe que fosse poupar para longe.
Mas eu sou um técnico insípido, sem sensibilidade artística que apenas reflecte na correlação entre o abaixamento do nível do ensino quando se perdem tantos profissionais (ah! É verdade, como já sou um técnico idoso já estou ultrapassado e de nada me vale a experiencia de vida perante o levante imparável das novas tecnologias, que eu aliás utilizo; por que não haveria de utilizá-las que nunca me neguei a socorrer-me de ferramentas?), a desgraça do abandono escolar que não se consegue mascarar com estatísticas (será verdade, eu que de tudo duvido, que um estudo independente detectou 8 vezes mais de abandono escolar do que as estatísticas oficiais, e eu, que já disse que duvido, até pensava que era mais que 8) e a criminalidade emergente 5 anos depois (falo da correlação porque me mantenho na dúvida, porque os jovens talvez achem que não é correlação, que é causa e efeito).
E como técnico insípido, cheio de dúvidas, habituado a separar claramente os técnicos dos gestores, porque cheio de dúvidas que um gestor que não percebe nada das técnicas de abordagem aos problemas possa ser um bom técnico e que um técnico que tropeça nas artimanhas burocrático-economistas possa ser um bom gestor, pego com a devida vénia na sugestão de Miguel Real (Um certo olhar – Antena 2 - 25 de Outubro de 2009) e que a senhora ministra, assim que puder, escreva “Uma aventura na 5 de Outubro”.
Eu sei que a senhora ministra não vai precisar, como costuma fazer quando preparam um “Uma aventura…” de conhecedores das questões da educação porque já é uma conhecedora.
Mas, sem querer arvorar-me em bom exemplo, como vivo atormentado por dúvidas, sempre que desenvolvo um trabalho técnico, peço a opinião de colegas que pensam de maneira diferente da minha, ou, pelo menos, abordam de maneira diferente os problemas. Método referendário que a comunidade científica segue e que as normas de controle de qualidade das empresas obligent.
Ou talvez seja mesmo preciso pedir o apoio de especialistas em burocracia económica, para que a senhora ministra fique de sobreaviso contra os burocratas e para que a aridez das regras orçamentais e da gestão corrente não invalide a aventura, isto é, que o abandono escolar seja derrotado.
Mas para isso não a posso ajudar, eu que nada sei de economia nem consta que tenha qualquer poder de decisão ou de influência.
Votos dos melhores êxitos.

PS - Diz-me uma professora que já meteu os papeis para a reforma que foram 70.000 no último ano. Cerca de 50% da força de trabalho. Que desgraça, do ponto de vista de gestão empresarial. Que sucesso, do ponto de vista de gestão de tesouraria...

Caim, ou o suicídio da humanidade



Lilith (1892 E.C.), em gravura de John Collier.




Já li o Caim. Ter menos de 180 páginas ajuda.
É um resumo picaresco (no sentido das aventuras do anti-heroi não obedecerem aos conceitos lógicos de tempo e lugar) dos principais episódios da Biblia.
Bem escrito e muito bem imaginado.
Para mim o mais importante é o romance de Lilith, um mito mesopotâmico que os censores hebreus não quiseram que ficasse na Bíblia porque Lilith era uma deusa babilónia, fonte dos prazeres vampirescos e da libertação feminina. Coisa francamente desagradável aos sacerdotes judaico-cristãos-islamicos da comum tradição abraânica.
Ficou-me um sabor a pouco porque me pareceu que a ideia de Saramago, de transformar Caim no representante da humanidade, não é desenvolvida e morre porque Caim comete o suicídio da humanidade ao matar todos os seres humanos da arca de Noé.
Por isso a história da humanidade acaba no fim do livro.
É contraditório com o próprio Saramago, quando diz que o homem é mais misericordioso do que deus, a ponto de pôr Caim a segurar o braço de Abraão quando ia matar o filho Isaac.
Enfim, o livro acaba deixando a hipótese , contraditória com o fim da humanidade, de que a discussão entre os dois grandes assassinos, o deus assassino das crianças de Sodoma, e Caim, que somos todos nós (é, atentados no Iraque, no Afeganistão, fratricídio Israel-Palestina, camorra, violência doméstica, assaltos…é, a espécie humana é um catálogo de assassínios…apesar da Declaração Universal dos Direitos do Homem), é eterna.
Assim como assim, pode ser que a Bíblia seja como aquela história do Jô Soares. Só contaram pra você (para os eleitos e escolhidos do senhor, como diz a Bíblia, dentro do numerus clausus do quadrado de 12 e do quadrado do quadrado de 12), mas a vida existe e continua fora do grupo dos eleitos, entre as pessoas comuns que não foram chamadas nem escolhidas, e que são a humanidade.
Porém, como diria Cesário Verde, o supremo encanto, além da liberdade que cada um tem de interpretar o final do livro como bem entender, ou de imaginar a sua continuação, é de facto Lilith.
Vejam em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lilith


donde retirei a ilustração.

domingo, 25 de outubro de 2009

Rodoviarium IX – a continuação do massacre

Pensei comentar as 4 mortes na estrada no dia 21 de Outubro de 2009, numa altura em que o número de mortes nas estradas já tinha ultrapassado neste ano o número de mortes no mesmo período. Entretanto verificaram-se 6 mortes no dia 23.
Estamos de facto numa situação grave, contrariando o anterior optimismo dos responsáveis.
Não pode continuar a ficar por fazer uma análise de cada acidente e a rápida divulgação das suas causas e circunstâncias (porque se despistou a carrinha de Penafiel com as 7 moças?)
Quando é que os decisores, agarrados às suas estatísticas, compreenderão isto?
Vendeu-se a ideia de que os automóveis agora são mais seguros, assim como as auto-estradas vieram diminuir a sinistralidade.
É perigoso alimentar estas ideias feitas.
Nalguns aspectos os automóveis são mais seguros. Noutros não.
O conforto actual ilude e pode levar o condutor. Sub-liminarmente, a julgar que a condução é um jogo de computador e a subestimar a velocidade real.
Os sistemas electrónicos de ajuda à travagem, à estabilidade e à correcção de trajectória podem, nalgumas circunstâncias, conduzir directamente ao acidente (é o eterno problema dos sensores que alimentam directamente os automatismos sem intervenção humana).
As auto-estradas criaram a ideia feita de que é seguro viajar a altas velocidades.
Bastou chover mais e os acidentes surgiram como cogumelos à chuva.
Atenção a que não deve ter havido aumento de tráfego, porque as estatísticas de vendas de combustível até acusam um ligeiríssimo decréscimo (0,1%).
Logo, para além de ter de se actuar sobre os condutores divulgando as técnicas de condução defensiva e económica e o conhecimento do código, haverá que implementar a referida análise de cada acidente.
Claro que não há técnicos que cheguem nem dinheiro no orçamento para isso, e possivelmente teríamos uma corrida ao tráfico de influências para gabinetes de consultores prestarem esse serviços ao ministério da administração interna para absorver o pouco dinheiro que fosse votado.
Também não seria mau estender a instalação de equipamentos de multa automática por excesso de velocidade e insistir em campanhas de esclarecimento sobre o código da estrada (não chegou a implementar-se um sistema de pontos?).
Poderia ainda ser útil recuperar a extinta Brigada de transito da GNR, mas não deve haver humildade dos decisores que chegue a tanto.
Entretanto, um grupo de técnicos já há uns anos que anda empenhado no OSEC – Observatório de segurança das estradas e cidades. E chama a atenção para o problema do “aqua planning” (hidro planagem). Muitas das estradas e auto-estradas padecem de dificuldades de drenagem (chegam a formar-se linhas de água com mais de 100 m , o que é grave, muito grave).
O acidente pode ocorrer mesmo em velocidades baixas se a camada de água for significativa (maior que meio milímetro) e houver uma velocidade excessiva ou variação excessiva da velocidade da periferia das rodas relativamente à superfície da camada de água (não é preciso ir muito depressa, basta travar, ou mudar de velocidade ou de direcção de forma mais brusca para se perder a aderência).
No caso de travagem sobre camada de água, assume especial risco o caso dos carros de potencia com tracção atrás. Os seus vendedores deviam fornecer gratuitamente cursos de condução em condições atmosféricas adversas. Quando um carro de tracção atrás abranda sobre uma camada de água, a inércia faz “afocinhar” o carro e levantar a traseira, diminuindo o contacto das rodas motrizes com o solo e contribuindo para a perda de aderência.
Se o ministério quer acabar com as mortes na estrada ainda tem muito que fazer. Mas não vejo humildade para se informar.
É pena, ficarmos dependentes apenas das melhorias de segurança introduzidas pelos fabricantes de automóveis, e de eventual consciencialização do código da estrada pelos utilizadores da estrada.

sábado, 24 de outubro de 2009

Economicómio XXIV - As canções de Richard Strauss e o fosso

Gosto de assistir a concertos na Gulbenkian.
Mais gostaria que mais pessoas gostassem.
Mas não gosto de contrariar ninguém nem obrigar as pessoas a gostar seja do que for.
E deixo-me levar por umas quantas reflexões enquanto o soprano canta as canções que Richard (não confundir com os das valsas, se fazem favor) Strauss escreveu na intenção da mulher.
Strauss gostava de ouvir a mulher cantar, e eu não me admiro que também gosto de ouvir a minha. É uma forma de executar os procedimentos de acasalamento como outra qualquer.
Entretanto, a propósito deste concerto, tomo conhecimento de que Strauss esteve em Portugal por várias vezes, nos primeiros anos do século XX, umas vezes para dar concertos e outras para passar uns dias em Sintra a compor.
Seria interessante saber que composições de Strauss nasceram em Sintra.
Mas isto a propósito deste fenómeno: na sociedade portuguesa do inicio do século XX coexistia um vasto grupo de cidadãos em que predominava o analfabetismo e a pobreza, com um pequeno grupo de cidadãos requintados e de nível cultural elevado. Estes recebiam os expoentes da arte da época e com eles conviviam.
Como é sabido, só pode haver cultura se a capacidade produtiva duma sociedade for capaz de eliminar a preocupação pela satisfação das necessidades básicas dos beneficiários. Dado que a produção não chegava para todos, só alguns podiam beneficiar da cultura. Isto é, havia um fosso entre a maioria dos portugueses e a minoria dos que beneficiavam da cultura.
Este fosso foi tentado colmatar com o esforço da I República de alfabetização.
Porém a capacidade produtiva continuou insuficiente e os detentores do poder económico não viram necessidade de estender a todos os benefícios da cultura.
Na actualidade a massificação dos programas televisivos de entretenimento tenta iludir a existência do fosso com a disseminação dos concursos, telenovelas e futebol.
Mas a verdade é que só uma minoria se deixa encantar com as canções de Strauss (não confundir com os das valsas).
É uma pena.
Uma pena e um fosso, claro.
Quer-me parecer que só através do cumprimento do art.27 da Declaração Universal dos Direitos do Homem pelos governos seria possível reduzir o fosso. Mas isso contraria os princípios sagrados da religião do mercado, vulgo adam smithismo, por mais que alguns ministros da cultura (um ministério para a cultura? e se se lembrassem de um ministério para a liberdade?) achem que a cultura também vende, e que Fernando Pessoa vale mais que os contentores de Alcântara.
Por outo lado, se a cultura é um sinal exterior de superioridade, que interesse poderá haver em democratizar a cultura, em desviar dinheiro doutros sinais exteriores de riqueza para essa democratização?
Será esta consideração tão simples que preside à elaboração dos programas da nossa televisão (2.400 milhões de euros em 9 anos de indemnizações compensatórias para a RTP…)?

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Rodoviarium VIII – Mais mortes, menos multas

Este é o título de um dos jornais de hoje.
Não é preciso vir uma estatística dizer que morreram mais cidadãos nas estradas de Portugal nos primeiros nove meses deste ano do que nos meses homólogos do ano passado.
Porque as estatísticas são um meio para tentar estabelecer correlações entre factos, não são o fim para justificar a excelência das medidas de um ministério (ou de uma direcção de empresa).
O que é preciso e não há meio de os respectivos ministros darem os meios necessários aos órgãos e aos técnicos existentes (que os há com competência para isso) é analisar cada acidente até encontrar as causas reais e as circunstancias em que ocorreu de modo a tomar medidas para evitar que se repitam.
Todos ficamos muito comovidos quando os acidentes ocorrem mas depois vem o secretismo tão característico dos portugueses que têm uma pequena ou grande quinta para mandar e que dizem logo que o inquérito está a decorrer e nada se pode dizer.
Podia, podia dizer-se; nos países anglo-saxónicos pode dizer-se.
Vejam o caso da morte do cidadão em Corroios pelo metro sul do Tejo. Foi em Julho. Nada se sabe. Houve uma colisão recente com um automóvel. Aguardamos as conclusões que nunca chegarão (ao menos o comandante da polícia foi muito claro: a sinalização no local do acidente é ambígua). Eu confirmo: no estado em que está o metro sul do Tejo, as condições de segurança rodoviária são indesejáveis, o que coloca todas as entidades envolvidas em incumprimento das directivas comunitárias. Quem não conheça Almada terá de circular de automóvel com muito cuidado (gerando as iras dos residentes que já conhecem o traçado e que vêm mais apressados) para entender bem o traçado do comboio que cruza por diversas vezes a rodovia vindo sabe-se lá donde. Na avenida principal, parei antes de uma passadeira porque dois peões já tinham posto o pé na passadeira (é o que diz o código da estrada, não é? abrandar antes de uma passadeira para o caso de algum peão já ter iniciado a travessia e então o código manda parar). E passaram. Como eram novos e iam atentos, pararam eles por sua vez para deixar passar um comboio, no eixo da avenida, que surgiu sem eu saber (possivelmente teria eu forçado a minha passagem na passadeira, se soubesse que vinha aí um comboio) e com uma velocidade tal que seria impossível travar antes da passadeira.
Ora isto, que possivelmente os decisores nunca viram em situação real, é pura e simplesmente intolerável , pior que indesejável.
E continua a circular sem medidas mitigadoras, o metro sul do Tejo (obviamente que a passadeira de peões deveria estar protegida por semáforos)?
Penso que no caso do metro sul do Tejo já entrámos no domínio da responsabilidade criminal.
E possivelmente, quando se pode colocar a hipótese de uma correlação entre o aumento do número de mortes na estrada e a reestruturação das forças policiais (para os mais esquecidos: a extinção da Brigada de Transito da GNR!!!)que conduziu a uma menor fiscalização do transito, também.
Embora não devesse ser preciso a estatística indicar aumento de mortes, para o ministério (terá ficado embaraçado?) accionar as medidas de análise de acidentes em termos eficazes.
Vamos ver como isto evolui.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Economicómio XXIV - Reflexões rápidas sobre o cérebro humano

O cérebro humano é um factor de produção nas empresas e na vida económica.
Não sou a pessoa mais indicada para o demonstrar, mas em todos os seminários ou apresentações de gurus da economia e da gestão a que tenho assistido lá vem a asserção de que o conhecimento é um factor decisivo para o sucesso das empresas.
Conhecimento e informação são o produto do cérebro humano, que é assim o factor de produção determinante.
O cérebro humano pertence ao indivíduo que o detém.
Logo, a posse deste meio de produção determina a classe dominante na cadeia de produção, sendo certo que o detentor desse meio de produção é o próprio indivíduo.
Logo, ou a lógica é uma batata, ou já atingimos o estágio marxista da posse dos meios de produção pelos próprios trabalhadores assalariados.
Como já referi anteriormente, o raciocínio anterior não é meu, e até tenho pena, mas sim dos autores do livrinho de que já fiz propaganda, “Funky business, capitalismo para sempre”, que serão tudo menos marxistas.
Vem isto a propósito, enquanto exemplo da maravilhosa dialéctica que nos atormenta a paixão dos nossos cérebros por lógica “tudo ou nada”, de duas manifestações curiosas do cérebro humano.
Uma, a de um escritor com uma rara sensibilidade poética e uma vasta cultura literária, que reagiu mal aos resultados eleitorais e invocou o conceito de estupidez para a multidão dos votantes (utilizei aqui o termo multidão para mais uma vez fazer propaganda do livrinho de James Surowiecki , a Sabedoria das Multidões).
O fenómeno das eleições é muito interessante enquanto manifestação de massas, comportando-se o indivíduo aparentemente como sujeito de movimentos indecisos ou erráticos.
Apenas aparentemente e talvez reproduzindo o movimento colectivo dos grandes grupos de animais, para quem as regras desses movimentos são condição de sobrevivência (resistência a predadores, por exemplo, garantindo os caminhos de fuga para todos os individuos do grupo graças à manutenção das posições relativas entre si apesar das constantes mudanças de direcção).
A previsão dos movimentos dos eleitores é assim mais fácil para uma boa empresa de sondagens do que para os próprios indivíduos que irão votar, mas que poderão não antever os resultados.
Nesta perspectiva, os resultados eleitorais não poderão ser classificados como “estupidez”, como de forma inapropriada o dito escritor escreveu.
Assim se poderá compreender como os eleitores, perante a desregrada política económica e financeira dos neo-liberais (respeitando religiosamente a máxima adam smithista: ”laissez faire, laissez passer”) em vez de punir nas eleições os partidos de inspiração liberal, ao contrário os premiaram.
Talvez porque os movimentos de grupo vão seguindo tendências que vão resultando de micro movimentos de imitação (como as aves no grupo migratório ou os peixes nos cardumes, protegendo-se dos predadores) e que não podem bruscamente cindir-se em dois grupos menores em direcções diferentes.
Nesta perspectiva poderia até pensar-se em “estupidez” dos votantes se pulverizassem as tendências.
As novas tendências formar-se-ão assim lentamente, talvez se possam detectar movimentos de mudança (traduzidos por uma derivada ou variação do valor absoluto relativamente a um valor anterior ) e talvez para as próximas eleições mudemos em valor absoluto.
E aqui entro no segundo exemplo de manifestação curiosa do cérebro humano.
Que é a da estratégia da nossa televisão pública. Que compete valentemente com a televisão privada nas audiências de programas de baixo nivel cultural (já imaginaram o que seria se, em vez daqueles senhores que apresentam concursos aparecessem depois do telejornal as personagens do Crepusculo dos Deuses a cantar Wagner? Que a RTP até gravou toda a Tetralogia…).
Para manter os concursos e as novelas, a RTP absorveu indemnizações compensatórias da ordem de 2.400 milhões de euros entre 2000 e 2009 (em 2009 a novidade foi um aumento de capital público de 292 milhões de euros).
Qualquer coisa como 24 km de linhas de metropolitano, chave na mão. Não é um fenómeno cerebral interessante, o que possibilita isto?
Como sabem, a grande desculpa para o sorvedouro da RTP é que precisa de fazer o serviço público.
Não, não faz, vejam o que diz o organizador do festival de cinema documentário e de curtas de Lisboa: "Não há serviço público na RTP".
Assim como é um fenómeno cerebral interessante o passivo de 15.000 milhões de euros do Instituto de Estradas de Portugal (ah, sim, existe a desculpa das Scuts, porque a dívida do IEP é só de 1.500 milhões de euros; mas também é verdade que foi vendido que a administração do IEP era muito “competente”).
Não é mesmo uma manifestação dialéctica do nosso cérebro bem português, podermos discutir números destes, da mesma ordem de grandeza do Lehman Bros?
E assim vamos.
Bem, com certeza.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Religo I – Saramago

Antes que os meus amigos se vejam envolvidos na discussão sobre as declarações de Saramago (a Bíblia é um manual de maus costumes e um catálogo de crueldade), quero dizer-vos que o homem tem razão.
Graças à idade, já perdeu a pachorra, como ele próprio diz, para aturar o que as religiões nos querem impingir, e despeja o saco enquanto é tempo.
Todo o apoio. No tempo do bisavô do meu avô queimavam-se pessoas à beira do Tejo por não seguirem os dogmas.
Quanto à Bíblia, lembram-se do episódio em que um pai desvairado pega numa faca para cortar o pescoço ao filho? E da tomada da cidade de Jericó por Josué com o massacre que se lhe seguiu para expulsar as vítimas da terra em que nasceram? (Ui, que isto tem implicações geo-estratégicas).
É tanto mais verdade o que Saramago diz que as palavras de Jesus Cristo no Novo Evangelho são claras: Dantes o coração dos homens era duro e por isso o Antigo Testamento era assim, mas a partir de agora o coração dos homens não pode ser duro…
Pois é, bem dizem que temos de dar o desconto ao tempo em que os textos foram escritos e que não podemos ter uma interpretação literal da Bíblia .
Claro que não, estamos de acordo. Com o que não estamos de acordo é pegar no texto , aliás de alto valor literário e imaginativo, e impô-lo como manual fundamentalista de vida.
Aguardemos os comentários das virgens púdicas ofendidas e dos publicanos farisaicos.
Tem razão, o homem.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Nando e Beto, ou das vantagens em deixarmos as regras eleitorais como estão

Nando ficou muito contente consigo próprio quando foi eleito presidente da sociedade Sabedoria das Multidões - Produtora Lírica de Ilusões.
Os accionistas votaram inequivocamente nele, apesar de a imprensa sensacionalista ter contado umas histórias duvidosas da sua vida privada.
Nando desempenhou muito bem o seu papel de vítima perseguida e exposta nas bocas grandes do mundo e, como ele próprio dizia, com muito talento, convenceu os accionistas.
Porém, os mesmos accionistas, fazendo jus ao nome da sociedade na parte que diz “Sabedoria das Multidões”, e respeitando religiosamente as regras eleitorais em vigor na sociedade, arranjaram maneira de eleger para o Conselho de Fiscalização um número de delegados não afectos a Nando superior ao número de delegados seguidores incondicionais de Nando.
E isso era o que toldava a felicidade de Nando.
Isso e a diminuição dos resultados das vendas das ilusões produzidas pela sociedade; mas desta matéria se ocupava o tesoureiro, técnico contabilista reputadissimo.
Beto também ficou eufórico quando chegou a vez dele e os accionistas da sociedade Os Desunidos da Beira-Rio, uma empresa de lazer e de contentores ligada à exploração marítima e fluvial, pertencente ao grupo-holding da Sabedoria das Multidões - Produtora Lírica de Ilusões, o elegeram presidente da “Desunidos”.
E no calor da vitória, Beto proclamou que quem não pensava como ele tinha perdido.
Ter-se-á Beto precipitado ao fazer tal afirmação, já de si perigosa porque radica nas ideias mazdaistas do Bem e do Mal do século VII antes de Cristo.
Porque os accionistas da “Desunidos” fizeram como os accionistas da “Produtora Lírica”, e elegeram para o Conselho de Fiscalização mais delegados não afectos a Beto, do que delegados seguidores incondicionais de Beto.
Beto empalideceu quando lhe foram dizer que não iria poder fazer aprovar as grandes opções estratégicas da “Desunidos” sem introduzir correcções que os delegados não afectos, representando a vontade dos accionistas que os elegeram, acharem por bem propor.
É natural que haja sempre correcções a propor num grande projecto, uma vez que muitos pares de olhos vêm melhor do que poucos pares de olhos, e nenhum par de olhos vê melhor do que um conjunto alargado de pares de olhos.
É uma lei da psico-sociologia, que se há-de fazer; embora Beto, mal aconselhado, considere infalíveis as suas equipas técnicas; mas só quando concorda com elas.
Beto recompôs-se, recuperou as cores e a calma e retomou com Nando uma velha e perigosa ideia: reformular as regras eleitorais.
Na realidade, por um feliz acaso (serendipity?), as regras eleitorais das empresas do grupo “Sabedoria das Multidões” estão muito bem feitas e permitem aos accionistas minoritários fazer ouvir a sua voz nas assembleias do Conselho de Fiscalização, como factor de contra-poder das estratégias maioritárias.
Nem todas as empresas são assim, havendo assembleias eleitorais em que um accionista poderoso, por ter a maioria das acções, consegue o poder absoluto, sem oposição e sem representação dos accionistas minoritários, na presidência executiva e no Conselho de Fiscalização.
A Humanidade já passou por essa fase no século XVIII, no tempo da delegação divina do poder na monarquia absoluta e o próprio sistema uninominal das eleições presidenciais dos estados unidos da América do Norte é uma sobrevivência desses tempos.
Mas as técnicas de gestão e as leis da matemática entretanto desenvolvidas permitiram regras eleitorais como as que vigoram no grupo “Sabedoria das Multidões”.
Nando e Beto vociferam que assim não há condições para governar as empresas (na realidade, para as governarem só como eles querem, não) e tentam convencer os accionistas a autorizar a mudança das regras.
Mas os accionistas são sábios e não irão nisso.
Assim o espero.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Educação V – o “ranking”

O DN mandou um fotógrafo à escola melhor classificada no “ranking”.
As alunas do colégio Mira Rio deixam-se fotografar nos seus uniformes, e declaram: “Somos a melhor escola porque os nossos professores nos ensinam a sermos as melhores em tudo”.
Temos aqui mulheres competitivas para o futuro, que não aceitarão segundos lugares.
Já dizia a castelhana segunda filha do Medina Sidónia: antes rainha em Lisboa por pouco tempo do que duquesa em Madrid toda a vida.
Coitado do marido, D.João IV, tão dado à música, ter de aturar uma megera destas toda a vida…
Pois daí o DN saltou para a escola pública D.Maria que o ano passado tinha ficado muito bem classificada e este não.
E a directora (ou presidente do conselho executivo, ainda não sei) explicou: sabe, saíram 42 dos 100 professores, a maioria por reforma antecipada porque não estiveram para aturar os disparates da ministra. É natural que os resultados tenham piorado.
Este exemplo não demontra, mas mostra o que se passou neste país com a ministra da Educação de quem o Presidente da Republica disse para a deixarem trabalhar: os professores responsáveis pelos bons resultados de uma escola esgotaram a sua paciência e a escola ficou privada de bons profissionais. Os resultados estão à vista, se bem que as estatísticas possam ser falaciosas (ainda há bem pouco tempo um estudo independente revelou que os números de abandono escolar revelados pela ministra eram um oitavo da realidade estudada – pobre de um subordinado meu que me enganasse dessa maneira, que me informasse que o indicador era um oitavo da realidade).
Eu há anos que já tinha divulgado este fenómeno, porque a minha mulher, que não é propriamente uma Luisa de Guzman, e a irmã, que também não o é, fizeram o mesmo que aqueles 42% (devo esclarecer que há uma penalização, mas a penalização vale menos do que a sensação de impotência de quem se mantém na vida activa perante os disparates da ministra).
Mas ninguém liga, claro.
É estranho, num país em que o ministro do ensino superior tem resolvido problemas e tem o apoio dos professores… haver uma incongruência assim.
Aplicando um critério qualquer de gestão de empresas a saída de 42 bons profissionais, substituídos parcialmente por professores sem experiencia (possivelmente manobrando melhor o Magalhães), provocaria medidas interventivas, quanto mais não fosse para evitar que daqui a 5 anos a criminalidade devida ao abandono escolar suba e que daqui a 10 anos o nível intelectual dos portugueses médios soçobre (porque o nível daquelas meninas de condomínio do Mira Rio certamente que estará acima da média).
Mas não, a orientação de voto dos portugueses e a política de Educação do seu governo não coincide com o que eu penso, ao analisar a realidade.
Pronto, não há coincidência, mas devia falar-se mais nisto, devia fazer-se inquéritos para fazer o seguimento do percurso escolar dos meninos e meninas, tentar estabelecer correlações entre o ranking das escolas por onde andaram e o seu sucesso na universidade .
Provavelmente concluindo que os universitários de sucesso também vêm de escolas mal classificadas no ranking, o que significaria que estamos a perder energias para fazer o ranking.
Mas tudo isto parece não interessar, não ter interesse mediático.
Deixemos essas coisas para as teses de mestrado.
E deixemos que por todo o lado se façam estatísticas muito bem feitas a justificar os sucessos das decisões dos decisores. Assim como assim, as reforma antecipada dos 42% libertou as escolas (e analogamente, as empresas) de vozes incómodas para os decisores. E as meninas do Mira Rio saberão assumir o poder, porque não deixarão que ninguém lhes passe à frente.
Que tempos… que pena que eu tenho que as pessoas não leiam Elinor Ostrom…
Ah!, é verdade, por que chamei pobre a quem me apresentasse um indicador afastado 7/8 da realidade: nada de especial, apenas ficava escrito e divulgado que o senhor tinha má vontade para trabalhar e que fazia disparates. Apenas isso.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Gestionarium IX – Elinor Ostrom prémio Nobel da Economia

E esta: hein?
Como dizia Fernando Pessa.
Passou o Tatcherismo e o Reaganismo, possíveis graças à abundancia do petróleo nas torres do Mar do Norte e nos poços sauditas e, agora que eles deixaram o pico para trás, já longe a”boutade” do economista que dizia de Adam Smith “está lá tudo”, já passado o aniversário da falência do Lehman Bros, o Nobel da Economia vai para uma simpática senhora de 76 anos que antes disso tudo já tinha visto o filme:
Não é a regulação das entidades do governo, nem as mentes brilhantes das empresas privadas que sabem gerir, que sabem fazer a “governance” como diz o barbarismo, dos recursos comunitários.
São as próprias comunidades (talvez as autarquias organizadas em células dinamizadoras).
E lembro-me da gestão comunitária de Trás os Montes, que séculos de liberalismo não conseguiram destruir.
E dos baldios de Aquilino e de quando os lobos uivam…
O mundo da economia é de facto fascinante.
E hoje, que Bagão Felix, muito triste e muito evangelicamente, diz no Oje, que a pior das desigualdades “é entre os que têm voz em excesso e os que não têm voz alguma”, talvez possamos concluir que o primeiro passo poderia ser reduzir o número de votos dos principais accionistas nas assembleias de accionistas, aumentar o número de votos dos accionistas mais pequenos, tender para o ideal cooperativo: “uma voz, um voto”.
Elinor Ostrom, de que eu ignorava a existência. Será um caso de amor à primeira vista?
Aguardemos mais informações.

Economicómio XXIII – A Serendipity da rua 60, perto da 5ª avenida



Será verdade?
Que a Serendipity da rua 60, perto da 5ª avenida de New York e da Random House, vende gelados a 1.000 dólares com um fiozinho de ouro comestível imerso no dito gelado?
Se é verdade, é um caso para estudar, para os nossos economistas fazerem as correlações entre a crise e o intangível da confiança.
Para evitar interpretações chocantes, convém esclarecer que crise não quer dizer pobreza (embora a haja, os tais 20% que são o escândalo do desrespeito pela declaração universal dos direitos humanos que caracteriza os decisores deste planeta), crise quer dizer que os produtos se acumulam nas prateleiras por a procura ser inferior à oferta (já estou como a Wikipédia: economistas, corrijam-me, por favor)
Casos como este contribuirão para estimular a confiança e o máximo aproveitamento das capacidades produtivas (lá vamos nós outra vez a crescer, a crescer sempre, descontroladamente, mas isso fica para depois, para a retoma).
Ou poderemos interpretar simplesmente como um caso de provincianismo novo-rico.
Pessoal endinheirado vai fazer turismo à Grande Maçã e enche depois os serões com os amigos a dizer que comeu um gelado no Serendipity por 1.000 dólares, um horror de caro, que a onça do ouro está pela ruas da amargura de caro desde que o Lehman Bros pirou, 1055,9 dólares a onça (31,1 grama).
Permitam-me chamar a isto “pirosice”.
Donde, a “pirosice” é um intangível que contribui para a retoma.
Sejamos pois pirosos, leiamos as revistas de viagens e sigamos os percursos turísticos com os melhores e mais pirosos hotéis, spas de massagens, alojamentos rurais, restaurantes e bares.
Mas adaptemos a teoria da serendipity ao nosso pequeno mundo, e façamos turismo cá dentro.
Ou os meus amigos economistas acharão que não?

Notas da Wikipédia: serendipity, ou serendipicidade, é uma palavra aparecida no século XVIII derivada de Sry Lanka e significa “feliz acaso”. Por exemplo, os efeitos do Viagra foram descobertos por serendipicidade.
Alguns investidores acharam que ficaria bem como nome dum restaurante/pastelaria/bar/esplanada na rua 60, Upper East side (zona mais fina de Manhattan, claro) e é um êxito. Todas as revistas de avião trazem a fotografia da esplanada e ir a New York e não passar pela Serendipity é um desperdício, embora a mim me pareça um desperdício os nossos decisores não gastarem um bocadinho do seu precioso tempo a analisar as causas e circunstancias por que o urbanismo de New York funciona e o de Lisboa não. Guardadas as devidas distâncias, claro, porque também é um desperdício ir à baixa de Lisboa e não tomar qualquer coisa na esplanada da Suiça , Pic-Nic, ou das escadinhas da Calçada Nova de S.Francisco (ah! Já agora, ou do Martinho da Arcada, que é a melhor prova de que os decisores da nossa câmara respeitam religiosamente o parecer do arquitecto Pancho Guedes, de que os políticos não percebem nada de cidades)

domingo, 11 de outubro de 2009

Gestionarium VIII - As virgens púdicas do Ministério da Justiça

Segundo o DN de hoje, sucederam os seguintes factos:
1 – dois moços durante 6 meses andaram a “espiolhar” a rede dos servidores de uma empresa com sede na ilha de Hianan, na China, a Ghostnet;
2 – na referida rede encontraram ficheiros com informação relativa ao Ministério da Justiça, EDP, PT…, incluindo listas de passwords e emails de funcionários dessas entidades;
3 – os moços enviaram a informação para a Procuradoria Geral da Republica (o que me parece essencial) e para a Presidência da Republica (o que me parece dispensável)
4 – os moços mostraram alguns dos elementos ao DN;
5 - o Ministério da Justiça chamou levianos aos moços e diz que os vai processar ao abrigo da lei de protecção informática (será que vai também processar a Ghostnet?)

Falo nisto apenas para falar de conceitos de gestão.
Nós, portugueses, gostamos muito de cortinas e persianas fechadas nas janelas.
Nas empresas gostamos do segredinho das hierarquias.
É uma das principais razões das dificuldades de progresso nas empresas, por que inibe a circulação da informação.
As virgens pudicas do MJ ofenderam-se até mais não poderem e descarregaram a sua ira nos dois moços.
Até é possível que a lei permita a sua condenação, porque as leis normalmente são feitas por quem não tem experiencia de informática e frequentemente “traduz” mal (tradutore traditore) aquilo que lhe tentam explicar para fazer a lei (além de que é impossível prever todas as situações numa lei).
O signatário é um técnico desactualizado (não havia microprocessadores quando acabou o seu curso, nem sequer circuitos integrados COSMOS, mas destes ainda aprendeu alguma coisa durante a vida profissional) mas lembra-se de explicar na sua empresa, nos anos de brasa de 75, citando a sua passagem pela arma de Transmissões, que o modo telefónico não é um meio seguro de comunicação do ponto de vista da segurança das informações (apesar do construtor da primeira central telefónica automática, Strowger, ter pretendido ver-se livre dos mexericos que as operadoras telefónicas punham em circulação). E que se se quiser transmitir informação confidencial por linhas telefónicas terá de se encriptar a mensagem.
Também se retira desta história que o cofre forte e o armazenamento de informação em papiro (tecnologia do século XXV, antes de Cristo...) devem manter-se, apesar das conquistas informáticas que tanto impressionam os novos-ricos e os provincianos.

Enfim, temos de nos habituar à ideia de que os nossos segredos podem ser conhecidos por terceiros.
O que vale é que há terceiros civilizados que não alimentam os mexericos.
E quanto aos não civilizados, se tivermos razão, façamos como as virgens pudicas do MJ, processemos.

Mas que devemos apoiar o debate aberto e generalizado nas empresas como meio de progresso da empresa, sem segredinhos de hierarquias, sim, devemos.
E para isso, até a informática nos ajuda.
Então aproveitemos essa informática.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Outra coisa extraordinária – uma viagem de Alcântara à Expo





Aconteceu outra coisa extraordinária, que devo contar.

O fecho da marina do Parque das Nações

Em Novembro de 2001 a Marina do Parque das Nações fechou devido a falência da concessionária e por degradação por falta de manutenção.
Fiquei muito triste porque tinha assinado com a concessionária, em 1998, um contrato para amarração do meu pequeno veleiro (6,05 metros) por 15 anos.
Por força da lei portuguesa, que extingue os contratos que uma concessionária (a concessionária era a marina do Parque das Nações) celebrou com os seus clientes quando lhe é retirada a concessão (a concedente era a Sociedade do Parque das Nações), admiti que tinha perdido o dinheiro e o direito à amarração, e levei o meu barco para a Marina de Cascais.
Sucedeu, porém, contrariando as minhas expectativas, que a Sociedade do Parque das Nações, dado que a similitude das designações poderia configurar intenção enganosa se se quisesse aplicar rigorosamente a lei (cessação dos direitos dos clientes da concessionária por falência desta) e atendendo a que os legisladores têm leis mais importantes a corrigir ou a elaborar do que esta, resolveu:
1 – reformular a estrutura accionista de uma nova marina do Parque das Nações, resolvendo as questões que os bancos credores tinham levantado;
2 – encomendar um projecto de recuperação da marina, com a colaboração do LNEC, seguido de concurso e obra.
3 – pagar o aluguer das amarrações, em docas da Administração do Porto de Lisboa, enquanto a nova marina não estivesse concluída.
Como sou céptico (e espero continuar a sê-lo, até porque, quando me engano nestas coisas, fico muito contente) achei que os pontos 1 e 2 iriam dar em nada ou coisa nenhuma, e o ponto 3 seria efémero.

A reabertura da marina do Parque das Nações

Mas enganei-me.
Primeiro, a marina de Cascais organizou em 2007 um campeonato de vela mundial e precisou dos postos de amarração alugados. Como se mantinha a condição 3, levei o barco para a doca de Santo Amaro, onde a APL fez o favor de pagar o aluguer até Setembro de 2009, quando a marina do Parque das Nações, concluídas as obras contra as minhas expectativas, e ainda bem, reabriu.

O novo contrato

A nova sociedade da marina propôs-me um novo contrato garantindo-me a amarração, na marina reconstruída, por um período de tempo igual ao que faltava cumprir em 2001, descontando o tempo em que pagou o aluguer à APL (isto é, 12 – 2 = 10 anos).
É um contrato justo, mas uma pessoa fica surpreendida quando as coisas correm de forma justa.
E além disso, os olhos verdes da Relação Públicas que me deu o contrato a assinar só serão talvez ultrapassados pelos olhos azuis da deusa grega Íris, que era a responsável pela gestão das cores do arco-iris, de que se servia para levar e trazer as mensagens de Zeus à terra (não confundir com os olhos castanho-escuro de Vénus).
Como posso queixar-me?
Ao longo de todo o processo houve administradores da sociedade do Parque das Nações, secretários de Estado do Turismo, associações de comerciantes da Expo e de utilizadores da marina, que podiam ter paralisado eficazmente, à boa maneira portuguesa, a resolução do problema; mas não, foram-no resolvendo, lentamente, mas com final feliz.
Como posso queixar-me?

Uma viagem de Alcântara para a Expo

Deste modo, resta-me a descrição da viagem que fiz com o meu barco, para poder dizer um bocadinho de mal de alguma coisa.
Se puderem seguir pelas fotografias, melhor será, mas vou ter de vos pedir para irem até http://cid-95ca2795d8cd20fd.skydrive.live.com/browse.aspx/Viagem%20Alcantara-Expo%203OUT09?uc=61&isFromRichUpload=1
para as ver (Ctrl + clique, sff), porque o blogue ficava muito carregado.

1 – Alcântara
Podem ver os contentores do terminal do nosso descontentamento (foto 721).
O que deveria ser um espaço de lazer de acordo com um plano de reordenamento de toda a frente ribeirinha, dos dois lados do Tejo, irá manter-se como terminal de contentores, com eles empilhados até 5, quando na apresentação do plano nos tinham dito que não ultrapassariam 4 em altura.
Sinal de que o negócio floresce e que é um bom instrumento para o PIB (para alavancar, que é o barbarismo dos economistas).
Todos os produtos chineses importados pela região autónoma de Madrid entram por aqui; todos os produtos espanhóis exportados pela região autónoma de Madrid para Angola saem por aqui.
Mas há muito se sabe que a solução para o porto de Lisboa é a instalação do terminal de contentores no fecho da Golada. De caminho, resolvia-se o caso das areias fugitivas da Caparica.
Aqui em Alcântara deveria desenvolver-se o lazer, que também contribui para o PIB. Vejam um barco de cruzeiros fluviais na 722 e o Funchal na 724, na Gare marítima de Alcântara, que querem desactivar.
Mas cuidado, que não quereria que fizessem a vontade ao senhor economista Augusto Mateus, de fazer linhas de transporte fluvial em vez de linhas de metro, que são mais caras (raciocinar em bases económicas restritas é no que dá…massacrar o Tejo com mais linhas fluviais).
E para agravar as coisas, há aquele plano autista do nó de Alcântara XXI.
Eu digo autista porque a preocupação central não é a gestão integrada dos transportes e do urbanismo da cidade e da sua área metropolitana.
Alguém atribuiu à CP/REFER a condução do projecto.
Esta área é de influência da CP/REFER, que farão o projecto sem uma perspectiva integradora, como se o espírito de Tordesilhas ou da cortina de ferro estivesse bem vivo. Ouviram o senhor presidente da câmara de Sintra dizer que a CP não deixava o Metro expandir-se até Queluz? Já viram bem o que isso quer dizer? Que há donos do que é da comunidade…com a cobertura das estruturas políticas…

E por falar em reordenamento da frente ribeirinha, já repararam no desprezo a que está votada a frente ribeirinha da margem sul, de Cacilhas à Trafaria? Mas esse não é o tema deste blogue.

2 – Fotografia do humilde escriba (006)



Este humilde escriba mostra-se aqui para chamar a atenção para a elegância da ponte 25 de Abril, lá ao fundo, e para o uso do colete de segurança. Ele pertence a uma minoria que defende o seu uso, e já sabemos que as maiorias não gostam de fazer a vontade às minorias.
Mas as minorias também são teimosas, e insistem que deve ser usado o colete de segurança, mesmo que a maioria não ache necessário.
Como se pode ver na 730, a zona até é perigosa, de corredores de cacilheiros. O colete é obrigatório, apesar dos crentes do individualismo ultra-liberal acharem que isso poderia ficar ao arbítrio de cada um (eu até concordava, se esse cada um vivesse no deserto).

3 – Santos o Velho (726 e 731)

Falo destas fotos melancolicamente.
Na 726 (desfocada, como tantas outras, que a navegação não deve ser descuidada), do lado esquerdo, há-de daqui por uns tempos avultar a ampliação do terminal de contentores, lado Nascente.
Do lado direito vê-se um edifício de um arquitecto mediático da nossa praça, perfeitamente desenquadrado, o edifício, como é timbre do arquitecto, porque ele acha-se mais do que a envolvente.
Como ficará desenquadrada, do seu lado Nascente, uma famosa torre de outro arquitecto mediático, este inglês.
Ver a ligação imediatamente a seguir na 731.
Do lado esquerdo vejam a fachada do Convento de Jesus, por trás da Poiais de S.Bento, ao pé do Passos Manuel, e reparem na mancha verde à direita, Santa Catarina miradouro.
Se falo nisto é para comentar como estão desenquadrados aqueles batoquinhos mais modernos, assim como ficarão desenquadrados (embora provavelmente venham a ser publicados em ilustres revistas de arquitectura) os batoquinhos que poderão vir a ser desenvolvidos por outro arquitecto mediático, este italiano, se se lhe adjudicar a destruição do troço da linha suburbana entre Alcantara e o Cais do Sodré (deuses castigadores e vingativos, que mal vos fez o povo de Lisboa para que os decisores exibam tanta ignorância em questões de transportes?).
Esta era a zona sob a qual uma linha de metropolitano, com correspondência com a a estação de Cais do Sodré, deveria ligar a Cacilhas.
Mas não se pensa nisso; a ideia não tem potencial mediático, embora alguns técnicos portugueses já tenham aprendido com técnicos japoneses, e já sabem resolver por si os problemas que se põem na construção de túneis sub-aquáticos em regiões sísmicas.
São coisas em que entra muito a composição de areia e de argila/aluviões dos terrenos.
Uma pena não aplicar este “know-how”.
Uma grande cidade dividida por um rio como o Tejo precisa de pontes e túneis para ser um motor económico.
Mas os conceitos de grande cidade e de motor económico estão tão afastados da discussão pública…

4 - Cais do Sodré (734 e 741)

Mais uma fotografia desfocada (a 734), mas serve para vos mostrar aquele atentado pela Rua do Alecrim acima, uma fachada típica das urbanizações-dormitório, ali ao lado dos pombalinos da Victor Cordon.
É como se puséssemos à nossa porta o estendal.
Vejam também os edifícios do Observatório europeu da droga e toxicodependência e da Agencia europeia de segurança marítima de dois mediáticos arquitectos da nossa praça, por esta ordem.
(A propósito, e se dessem uma vista de olhos pelo relatório do observatório da droga de 2008 em: http://www.emcdda.europa.eu/attachements.cfm/att_64227_PT_EMCDDA_AR08_pt.pdf ?)
Deuses, deuses, estas coisas, as escolhas dos arquitectos, não deveriam fazer-se por concurso público? Terão sido? E se foram porque foi tão triste o resultado?
Vejam na desfocada 735 o edifício da segurança marítima .
O ilustre arquitecto teve uma visão, a de um “ferry-boat” a chegar ao porto.
E verteu a ideia para o papel; achou-a adequada ao contexto aquático. Estão a ver as comportas da popa de fecho dos acessos dos veículos?
E os “decks”?
Vêem como não se ajusta (“mismatch”, como dizem os anglo-saxónicos) aos pobres pombalinos, já de si a decrepitarem cravejados de antenas GSM (vá que para o interior há uns pombalinos em recuperação)?
Quem fez aqueles desenhos não pode gostar de Lisboa, não a sente.
Reparem que se vê na 741, por ter sido tirada de mais longe e já por alturas do Terreiro do Paço, espreitando sobranceira, à direita, a cúpula da Basílica da Estrela, tão longe para quem quiser ir de transporte colectivo a partir do Cais do Sodré…
À esquerda lá está a estação fluvial.
Tão cubista… que terá dado aos nossos arquitectos convidados de renome para serem tão cubistas…?

5 – Terreiro do Paço (736-738-739)

Numa fotografia mal tirada, temos um conjunto impressionante deste lado da praça:
No primeiro plano o contraste entre a pedra lavada do torreão Nascente e o amarelo dos corpos dos edifícios.
Já foram azuis… talvez a escolha da tonalidade fosse um bom tema para referendo, na televisão, se possível.
Com a proximidade da Sé e do Castelo e, mais ao longe, a mole de S.Vicente de Fora, que faz aquela “coisa” ali à direita (estação fluvial do sul e sueste, intervenção catastrófica do arquitecto do regime no princípio dos anos trinta), tão perto do monumento?
E porque existe uma fila de trânsito automóvel tão perto dos torreões?
Será verdade que houve uma entidade defensora dos monumentos nacionais que se opôs à conquista de terrenos ao rio para dar dignidade ao monumento?
Não confundam o que quero dizer: as intervenções para reforço do túnel do metropolitano, das fundações do torreão Poente, para remodelação das redes de saneamento, para reconstrução dos cais das colunas… tudo isso foram intervenções preciosas e tiveram mérito.
Mas do projecto inicial fazia parte um túnel rodoviário, para construção em simultâneo com o do metropolitano.
E quando se corta uma parte ao projecto é porque o objectivo ficou por atingir.
Não embandeiremos tanto em arco.
É verdade que houve o acidente da incúria e das pressas na execução da subempreitada para carotagem e ancoragem do primitivo túnel do metropolitano (era o que estava no projecto, para se poder construir a estação do Terreiro do Paço, consequência do método construtivo escolhido, por tuneladora).
Mas havia uma razão para o túnel rodoviário entre as partes oriental e ocidental da cidade: o respeito pela dignidade dos monumentos da praça.
Não quiseram.
Rasgaram as vestes quando se soube que a estação do Terreiro do Paço, do Metropolitano, tinha custado 300 milhões de euros (metade do valor das vendas de automóveis ligeiros em Portugal no primeiro semestre de 2009); o tal economista até sugeriu mais ligações fluviais em vez de linhas de metro, e resolveu-se à portuguesa: convidou-se um arquitecto de renome para fazer uns arranjos cosméticos na praça .
É um problema interessantíssimo, cuja resolução, necessariamente dispendiosa, deixamos às próximas gerações.
À primeira vista (não acreditem, embora possam, que é à primeira vista), parece haver poucas soluções tecnicamente correctas, do ponto de vista de planeamento de transportes:
- ou um túnel sob Alfama, Rua da Palma, Avenida e Bairro Alto (engraçado, estou a recordar-me da proposta de Antero do Quental, tão vencido da vida: um viaduto metálico, à Eiffel, entre o Campo de Santana e o Príncipe Real…para resolver o mesmo problema topológico de ligação Nascente-Poente);
- ou a conquista de terreno ao rio (contornando as questões de não enfraquecer a contenção dos terrenos envolventes do túnel do metropolitano, nem de impedir a comunicação freática entre a zona da Baixa e o rio) , afastando a circulação rodoviária dos torreões, e construindo o novo túnel rodoviário com o método construtivo em que a engenharia portuguesa tem muita experiência: com ensecadeiras, como deveria ter sido feito com o túnel do metropolitano, em lugar da tuneladora utilizada.
(Notas:
1 - a tecnologia hoje disponível, graças à engenharia holandesa, para a construção com tuneladora em terrenos de aluvião, não o estava em 1996, como o metro de Londres comprovou com as dificuldades que encontrou na travessia do Tamisa; sabiam que uma especialista de geotecnia inglesa que visitou a obra da tuneladora na Baixa pediu que a avisassem imediatamente assim que o acidente ocorresse? Bom, a senhora não previu o acidente do Terreiro do Paço, apenas pôs a hipótese de ocorrer um acidente mais para cima, na zona do Chiado, em consequência da natureza de aterro da colina do Chiado, como aliás Nuno Álvares Pereira já sabia da construção do convento do Carmo;
2 – evidentemente que as ensecadeiras não são o único método; apenas quis dizer que há menos experiência em Portugal com o método de caixões pré-fabricados e afundados muito usado em Paris e Hong Kong)

E chegado a este ponto do percurso, tive de beber dois goles de água, para compensar o fel dos pensamentos.
Quem navegue, nunca se esqueça da água doce.

6 – Do Terreiro do Paço a Santa Apolónia


6.1 – Estação Sul e sueste, Doca da Marinha e Campo das Cebolas (742)


Bom, a vista da encosta do castelo já me agrada mais, embora os prédios, coitados, estejam tão sofridos. Ao menos não há cubos (sem menosprezo pela forma preferida de Olhão).
Insisto na ideia: a estação do sul e sueste está a mais, ali. Dir-me-ão que se tornou também um edifício classificado , definidor da arquitectura modernista portuguesa dos anos 30.
Então só haverá uma solução: referenciar todas as pedras e deslocar o edifício umas centenas de metros para montante.
Cairá na Doca da Marinha, mas podemos avançar a frente ribeirinha e ganhar 100 m ao rio, desde o Cais do Sodré até à Expo.
Avançando a frente ribeirinha:
- diminuiamos o assoreamento no rio porque aumentávamos a velocidade da água
- ganhávamos profundidade junto da frente ribeirinha e assim diminuíamos as consequências de um maremoto (lembram-se? Em Belem não houve maremoto em 1755 porque a praia afundava rapidamente; a torre de Belem era uma ilha; no Terreiro do Paço as águas eram pouco fundas)
- arranjávamos espaço para a rodovia, eventualmente em túnel, afastando-a dos torreões do Terreiro do Paço (antes da estação do sul e sueste, os “vapores” do Barreiro, que faziam a ligação à linha férrea do Sul, acostavam a um pontão fronteiro ao torreão Poente; em frente de cada um dos torreões havia, de origem, áreas salientes para a atracação de embarcações – ver as gravuras das fotos 1 e 2, possivelmente relativas ao desembarque da rainha D.Maria I, em 1777 – como pois vêm os zeladores agora dizer que não se pode avançar a frente ribeirinha?)
- criávamos atenuadores de intempérie melhorando o ambiente na grande praça
- viabilizávamos o transporte colectivo em sítio próprio ao longo da margem, até á Expo
- criávamos espaço para as pessoas (dêem um saltinho a Barcelona e façam um exercício de indução…)

Será assim tão utópico?
Porque nunca se pronunciaram os ilustres, que são nomeados para os órgãos mediáticos que tratam destas coisas, sobre a simples hipótese de avançar a frente ribeirinha?
É um plano megalómano?
Não, se for diluído no tempo.
Não é assim que fazemos com as coisas de que gostamos verdadeiramente? Fazemos orçamentos pluri-anuais.
Acho que é esse o cerne do problema: os decisores não sentem esta cidade, não gostam deveras dela, ou como disse Pancho Guedes, os políticos não percebem nada de cidades.

6.2 – S.Estevão, S.Vicente de Fora e Santa Engrácia

Somos um povo de seguidores de santos.
Por alguma razão éramos tão devotos a Endovélio, no tempo dos romanos.
Vejam na 743 a mole de S.Vicente de Fora, iniciativa do grande decisor centralisador de Castela; à esquerda a fachada da igreja de S.Estevão.
Na 745 exibe-se o edifício da Alfandega, junto do qual espero que não vá gastar-se dinheiro em mais uma estação de metro (quanto mais curta a distancia entre estações, maior a factura de energia, não acham?) e, no centro, o miradouro de Santa Luzia e as Portas do Sol, de onde hão-de ver-se, imponentes, os pilares da ponte da terceira travessia do Tejo.
Recosto-me melhor na popa do meu barco, acalmado pela paisagem, apesar das eternas obras.
Verifico que a vela grande não está bem tendida, mas não vale a pena agora mexer. Também por simplicidade vou sem genoa e, claro, sem spinakker (vela de balão), como aqueles dois mais junto da margem, que integram a regata que já me ultrapassou porque o spinakker aproveita todo o vento de popa e eu não sou dado a velocidades.
Está-se muito bem no meio do rio.
O vento é fraco mas a maré a encher ajuda à viagem.
Quem andar no rio, não se esqueça da tabela de marés.
Mais a montante, na 746, surge Santa Engrácia barroca do século XVII, outra vez em obras; mas que as obras de Santa Engrácia acabaram em 1966, acabaram, que eu fui a correr ver o zimbório novo por dentro (sobre o monumento ver em http://www.ippar.pt/monumentos/se_staengracia.html ; sobre a lenda cristã de santa Engrácia, mártir das perseguições de Diocleciano, não resisto a sugerir a leitura da história pia que encontrei num blogue da secção de Santa Engrácia de um partido político confessional, vejam no fim do blogue, pf; seria uma delícia se não fosse um estímulo à crendice: http://santaengracia-cds.blogspot.com/ ).
E à direita, de azul celestial (será celestial? Ou será ultramarino? Que o turquesa não reflecte assim...), Santa Apolónia.

6.3 - Santa Apolónia

Por Daguerre, que desfocada está a fotografia 747; vê-se melhor na 754 um belo navio de cruzeiros.
Querem que os cruzeiros atraquem aqui?
Nada a opor.
Mas não desactivem o serviço de comboios suburbanos de Santa Apolónia.
Não se deixem iludir com o exemplo da gare d’Orsay.
Paris tinha outras gares, e uma linha de comboios suburbanos que penetra na cidade é uma mais valia muito forte.
Eu sei que os economistas têm tendência para ignorar o valor das coisas; olham mais para o preço e os balanços económicos das coisas, mas aqui não, não desactivem Santa Apolónia.
E, já agora, embora seja pedir muito, não desactivem a gare de cruzeiros de Alcantara (os contentores para a Golada, vá lá).
Vejam agora a panorâmica da encosta da Graça.
Voltaram os batoques e os batoquinhos.
Aqueles da 750 foram muito publicitados na altura da construção. Têm umas vistas muito bonitas dos seus terraços. A rua até se chama da bela vista à Graça. É natural, de lá não se vêem eles próprios.
Acham que é possível sustentar a qualidade artística daqueles edifícios?
Frank Lloyd Wright sugeriria dinamite.
Como não é legal (terão sido cumpridos todos os requisitos legais na aprovação da sua construção?), sugiro que os pintem de branco.


7 – As comendadeiras

Estou quase no eixo da Av.Mouzinho de Albuquerque e em frente do viaduto mono-pilar de tabuleiro atirantado, que na fotografia 751 oculta parcialmente o grande convento das Comendadeiras, perto do largo de Santos o Novo.
O convento das Comendadeiras é um dos edifícios mais imponentes de Lisboa. E muito pouco conhecido. É também uma dívida ao período castelhano do século XVII (espreitem em http://revelarlx.cm-lisboa.pt/gca/?id=232 ).
Pena não se ver, por sobre o palácio Coimbra, no arranque do viaduto, à esquerda da fotografia 751, sede da REFER e onde a RAVE faz os seus actos públicos, o museu da água na rua do Alviela, ainda bem que rodeado de vegetação (ver em http://museudaagua.epal.pt/museudaagua/).
Parcialmente encoberto pelo Palácio Coimbra está o Palácio Pancas Palha (zona fina, esta, no século XVII e XVIII) que por pouco não foi demolido para alargamento da rua e que a nossa câmara municipal pensou vender para hotel de charme (que será feito da ideia que pretendia converter em hotel de charme todo o quarteirão da pastelaria Suiça, no Rossio?).
Está a Câmara na mesma situação dos cidadãos: graças a uma legislação infeliz dos arrendamentos, não é sustentável a posse do palácio pela câmara (nem sempre os preços baixos servem os interesses dos que menos podem pagar; é um paradoxo da economia mas é um facto, o que, através dum sinuoso caminho de associação de ideias, possa dizer-se de outra maneira: não me dês o peixe, ensina-me a pescar com uma cana) .
Ora, como está recuperado(!), talvez alugar, não?
Ups, ainda na fotografia 751, também à esquerda, mais contentores, e na 756 muitos contentores.
Se temos espaço aqui para contentores, e mais teríamos se avançássemos a frente ribeirinha, não dará para dispensar Alcântara?
Ah, em Alcântara o calado pode ser maior…pois… navios de calado maior podem ir para Sines, enquanto o terminal da Golada não estiver funcional.
No centro da fotografia, um descampado.
São cerca de 10 hectares, à disposição dos construtores civis, quase no centro da cidade.
Admiram-se de eu dizer que a urbanização da cidade está distorcida, e que com uma urbanização assim é impossível projectar uma rede de transportes ferroviários urbanos coerente?
O projecto de uma grande urbanização encontra-se encalhado na nossa câmara municipal, certamente por bons motivos (o da suspensão do processo, claro, que a confiança no grande projecto roça a assíntota das abcissas).
Seria tão interessante que por momentos deixássemos de parte a teoria do mercado a funcionar, e que nesta grande área se planificasse a sério o ordenamento do território…podíamos experimentar como na Expo, ou um concurso público aberto a jovens técnicos…
Os 10 hectares estão desocupados e há área suficiente para construir edifícios de elevada densidade para realojar os moradores dos bairros limítrofes sem interesse arquitectónico, que depois seriam substituídos por novas construções de maior densidade.
Claro que não estou a pensar em urbanizações de luxo.
Estou a pensar que em Lisboa perdemos a dinâmica dos bairros de Alvalade e dos Olivais...
Se falo em maior densidade é por razões de eficiência energética.
A produção individual de gases de efeito de estufa, incluindo os devidos à queima do gás de cozinha e ao consumo de electricidade, diminui drasticamente à medida que aumenta a densidade populacional .
Estes 10 hectares aqui são um desafio estratégico para a nossa câmara municipal.
Mas é preciso gostar da cidade e senti-la.
E a planificação desta zona não deveria esquecer a problemática dos transportes (urbanismo e transportes são indissociáveis).
O início da Av.Mouzinho de Albuquerque tem, por enquanto, se não for submergido pelas leis do mercado, a vocação para um nó de transportes.
Pensem no prolongamento da linha de metro de Santa Apolónia até aqui, de onde poderia partir uma linha de metro ligeiro de superfície, recorrendo a viadutos para os cruzamentos desnivelados e naturalmente enterrada na zona da Praça Paiva Couceiro, de forma coordenada com o previsto túnel rodoviário, com seguimento pela Morais Soares e correspondência com o metropolitano; com parques de estacionamento para “park and ride” com correspondência com as linhas suburbanas para Santa Apolónia e da terceira travessia do Tejo (por onde há-de passar o prolongamento da nova ponte sobre o Tejo também existem grandes áreas de terrenos a que se deveria aplicar a mesma estratégia, e aí há espaço para linhas de metro ligeiro à superfície, correspondência com a estação das Olaias do metro, etc, etc ); com o tal avanço da frente ribeirinha para ganhar espaço…
Utopias?
Inversão do fenómeno de expulsão dos habitantes do centro da cidade para as cidades periféricas?
Para que servem os planos directores?
E… para que servem as autoridades metropolitanas? Será que têm valências técnicas para resolver os problemas técnicos de urbanização e de transportes?
Suspiram os nossos decisores pela eficácia das autoridades metropolitanas invocando o modelo de Madrid.
Mas, por Cibeles, Madrid é uma região autónoma, e a área metropolitana de Lisboa é uma pulverização de pequenos municípios (município de Lisboa: 800.000 habitantes em 1980; 520.000 habitantes em 2009; como poderemos ressuscitar o espírito de Vitruvio, de Manuel da Maia e de Eugénio dos Santos para inverter isto?).
Pareceria que a estratégia para a área metropolitana deveria ser a de integração e criação do grande município de Lisboa. Em Londres não deu mau resultado…Por cá, os pequenos caciques dos pequenos municípios não gostariam de se submeter à disciplina do interesse colectivo, mas poderíamos tentar.., Pensem que no século XIX o município de Belém era independente do de Lisboa. As coisas evoluem, devíamos integrar, ao contrário de desagregar, como se fez com Loures/Odivelas.
Essa seria a estratégia…

8 – A bóia

Pena ter ficado desfocada a 755, com as comendadeiras e mais contentores em fundo, muitos; embora aqui só empilhem até 3.
É uma bóia verde de entrada no porto, encimada por um triângulo, sinal para ser deixada a estibordo.
Como o calado de meu barco é muito pequeno, posso deixá-la a bombordo. Mais cumpridores são os barcos da regata, mas também porque perto da margem sente-se menos o efeito da maré.
Eu, que só levo a vela grande, aproveito a força da enchente. Vêem como a bóia se inclina com a maré a encher?
Serão pelo menos 2 nós, isto é, 3,7 km/h (não esquecer nunca a tabela de marés).

Com o vento fraco que está, não tenho mais que outros 2 nós.
A minha vela é um desporto contemplativo.
Mas ocorrem-me pensamentos derrotistas enquanto contemplo a paisagem.
Penso nos números da desertificação da cidade e imagino que nós somos como uma cerveja mal tirada, e os nossos decisores são como a espuma que cresce inútil e tem de ser retirada, até chegarmos ao são da cerveja… mas como poderá a nossa pobre democracia tirar bem a cerveja?
Talvez aprender na escola a tirá-la; uma escola mais interventiva e obrigatória (“follow-up” de todas as criancinhas), sem grande preocupação com as estatísticas, que os professores sabem o que fazem; e com os filhos dos imigrantes também, cerveja blended, claro, no Brasil resultou...
As coisas que uma pessoa pensa enquanto o vento fraquinho vai empurrando o barco rio acima…

9 – A Madre de Deus e o pilar do Poço do Bispo

Tão desfocada ficou a 757 que mal se nota a torre e o corpo da Madre de Deus, Museu do Azulejo. Mas vêem-se os “arranha-céus” da Afonso III. Assim como assim, antes pequeninos arranha-céus do que batoquinhos.
Ver tambem a 759, com as encostas verdejantes do vale de Chelas.
Mais contentores. Aqui empilham a 4.
Precisam mesmo de Alcantara?
Que tal avançar aqui a frente ribeirinha?
Estou em frente do convento do Grilo (761), mais uma dívida ao século XVII (façam o favor de ver uma brevíssima nota em http://www.lifecooler.com/edicoes/lifecooler/desenvRegArtigo.asp?reg=374775 ).
Muito perto daqui, no cais dos contentores do cais do Poço do Bispo, que simplesmente resultou do avanço da frente ribeirinha sem perguntar nada a nenhum de nós e assim demonstra que é, o avanço da frente ribeirinha, uma boa solução técnica, ficará o primeiro pilar da nova ponte sobre o Tejo, a fazer sombra ao bairro da Madre de Deus ao nascer do sol e ao convento do Beato ao por do sol.
Os decisores não quiseram deslocá-la mais para montante, para que atravessasse o Tejo segundo os princípios de Vitruvio: pelo caminho mais curto, na perpendicular ao fluxo das águas.
Ganhava-se mais um espaço de manobra para os porta-contentores…
Não quiseram.
Preferiram satisfazer a pretensão de servir as oficinas da REFER no Barreiro.
E não mexer no aeroporto do Montijo.
Ai, o espaço de rio que a nova ponte vai ocupar na amarração sul… para ser possível o túnel do Barreiro para o TGV, o declive de 1,2% vai impor o tabuleiro da ponte a pequena altura das águas durante cerca de 3 km, isto é, quase até ao meio do rio.
Vai prejudicar a navegação, por trazer riscos acrescidos e roubar espaço de manobra, de pequenos pescadores, de embarcações de recreio, da ligação fluvial Lisboa-Montijo, de alguns porta-contentores.
Vai também aumentar o assoreamento e os riscos de inundação ribeirinha. Mas não há problema. Primeiro aprova-se o projecto e depois faz-se o estudo de impacto ambiental.
Assim vamos, especialmente sem ouvir o parecer técnico do Instituto Hidrográfico (facto já confirmado por este; não fui eu que inventei; nem se sabe sequer qual vai ser a altura livre da nova ponte: 70 como a 25 de Abril, 51 como a Vasco da Gama? palpita-me que vai acontecer o mesmo que com a ponte do Carregado, que não deixou passar os varinos).
Nós portugueses, somos de facto como a espuma da cerveja. Os grandes projectos são desenvolvidos sem debate alargado, para depois nos serem servidas as soluções de facto consumado.
O caminho mais curto para a nova ponte (lá está, temos pouca experiência de túneis sub-aquáticos, mas eu não vou insistir nesta solução, usada por exemplo na ligação Copenhague-Malmoe) “aterrava” na base aérea do Montijo, e o percurso da Gare do Oriente para Madrid (e para o aeroporto de Alcochete) seria mais curto 5 km do que pelo Barreiro.
Valha a verdade que para servir, em linha suburbana, o Barreiro, seria necessária uma ponte de 2 km entre a península do Montijo e o Barreiro, com 2 pilares adjacentes à ilha do rato, talvez, ou então experimentava-se a tecnologia do túnel sub-aquático….
E também as curvas de encontro das linhas da ponte para a Gare do Oriente exigiriam um tratamento mais cuidado na margem norte (túneis para permitir um raio maior, por exemplo). Que não seria necessário se a localização da estação central não fosse aquela excêntrica da Gare do Oriente, encavalitada na estação do metropolitano como um escorpião (tanto espaço no Vale de Chelas, junto da estação de Olaias do metro para fazer uma estação central… embora com o inconveniente de requerer túnel para sair pelo norte da cidade, a caminho do Porto).

10 – O mar da palha

Deixo para trás os silos da Nacional (763), acoplados ao convento do Beato.
Já não há contentores.
Estou no mar da palha.
Lá ao fundo, o Parque das Nações e os pilares da ponte Vasco da Gama, com os seus tirantes (765).
O edifício com as riscas em leque e um caracol no topo, e os dois edifícios com uma vela estilizada no topo são pontos conspícuos (774-775).
Do outro lado do mar da palha a vegetação da base aérea do Montijo (768).
Passo a doca do Poço do Bispo (770-771). Será que a cidade vai resistir ao canto de sereia do arquitecto mediático italiano, que delineou uma urbanização de luxo e de vidro para o seu topo norte, debruçada sobre o rio como a Veneza de Marvila?

11 – Finalmente, a marina da Expo

Estou no paralelo da marina. A nova torre e a ponte Vasco da Gama exibem-se (780).
Vejo as duas comportas de saída e de entrada na marina, que foi a solução encontrada pelo LNEC para combater o assoreamento (781).
Depois de passar pelo cais de recepção estou dentro da marina (785-788).
8 anos depois.
Marinheiros prestáveis, infra-estruturas agradáveis.
Será possível manter esta qualidade, bem digna dos olhos verdes da Relações Públicas?
Barco amarrado (791-792).
Olá, vizinha pata (793).
Que sozinho que ficaste, Socrates I, homenagem ao pensador grego, que também gostava de contemplar o azul do céu e do mar (794-796).
Vamos ter de aguardar os novos parceiros.
Faço votos.

12 - Desertifique a Baixa e ganhe um prémio

Atravesso o Parque das Nações.
Há um aspecto muito positivo, as pessoas parecem felizes.
Mas a contrapartida é que temos aqui o triunfo da urbanização lisboeta, para onde gravita tudo quanto é serviço do Ministério da Justiça (pobre Tribunal da Boa Hora), até os serviços centrais (?) da PSP, desertificando a pobre Baixa, vítimas do síndroma do vórtice atractivo do pavilhão de Portugal da pala.
Muito provinciana e novo ricamente, como é timbre duma zona de que nos orgulhamos, lá está o cartaz do empreiteiro, a vender os seus escritórios no edifício recém construído:
“Valorize a sua empresa, mude para aqui”, que é como quem diz, desertifique e desvalorize o centro da cidade, invista aqui e ganhe o prémio do novo riquismo.
E melancolicamente fui apanhar o metro à estação já menos fantasma de Cabo Ruivo, agora com 2 dos 4 condomínios que foram projectados para a sua área de influencia já operativos.
Correspondência em Alameda, saída em Cais do Sodré onde por mais um pouco poderíamos ter uma correspondência integrada com o quase metro de superfície que vai para Algés (para termos uma rede de metro ligeiro de superfície era preciso construir passagens desniveladas, mas os decisores não querem).
Apeio-me em Alcântara, sigo com os olhos a jovem condutora do eléctrico articulado, no meio do trânsito, quando deveria estar em sítio próprio e segregado, despeço-me da doca, apanho o carro que lá tinha deixado e regresso a casa.
Fim da viagem; dói-me um pouco a região lombar, mas acho que é natural, com a minha idade.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Arquitectorium 4 - O "coiso" conspícuo




Arquitectorium 4 – o “coiso” conspícuo
Esta é mais uma provocação aos meus amigos arquitectos, que muito me alegrariam se comentassem.

Para quem entrava a barra de Lisboa ou simplesmente volteava junto da baía de Cascais, o edifício do grande hotel Estoril –Sol era um ponto conspícuo de muita confiança.
Conspícuo é palavra latina que foi conservada pelos marinheiros para designarem pontos visíveis em terra que possam ser referenciados para traçar rotas seguras.
Nasce assim uma amizade natural entre os marinheiros e os pontos conspícuos a que se vão habituando.
E bruscamente, como um tecido cingindo já sem poder um corpo em expansão, o grande hotel Estoril-Sol implodiu e desfez-se em poeira.
O corpo em expansão era uma ideia que em Portugal vingou com a força dos empreiteiros e dos grandes grupos de construção civil.
Temos um edifício antigo, invoca-se a velha teoria de que é mais caro reconstruir do que demolir e construir de novo (infelizmente verdadeira em muitos casos, mas seriam menos os casos se o “mercado” se orientasse ou fosse orientado, que ele, coitado, muitas vezes não consegue orientar-se sozinho, para a optimização dos custos das empreitadas de reabilitação e reconstrução de edifícios antigos), aplica-se cruelmente a teoria, deita-se abaixo o edifício a que muitos já se afeiçoaram, e constrói-se, às vezes ao lado, um edifício novo, por vezes novo-rico e provinciano.
Aconteceu com os estádios de 2004. Perderam-se valências como pistas de atletismo e de ciclismo. Não se estimaram devidamente os custos da manutenção de construções metálicas expostas à intempérie.
Acorre um arquitecto ansioso por ver o seu nome numa capa de revista com a fotografia colorida do seu edifício como fundo.
Ou, se o edifício ainda não se ergueu, com uma daquelas horríveis maquetas computorizadas em perspectiva 3D.
Se eu digo horríveis é porque o desenho em perspectiva do computador me engana ou esconde coisas que vejo melhor em plantas, alçados e cortes -mas eu cultivo algum espírito de contradição – e porque a estética se me aparenta derivar mais do programa do computador do que da mente do arquitecto.
Que ao menos a força dos interesses imobiliários remunere bem o esforço do arquitecto, porque a agressão foi grande, e que o arquitecto se poupe a justificar ou desculpar o seu trabalho (por favor, não utilize o argumento de que a volumetria foi reduzida para menor impacto e que se abriu o corpo do edifício à vista do interior do parque Palmela; existimos como espécie predadora e impactante, todos sabemos que agredimos; só interessa saber quanto custa essa agressão, se não a pudermos reduzir).
Balanço da agressão:
1 – O grande hotel Estoril-Sol era um exemplar de arquitectura bem definido como arquitectura do seu tempo e como tal deveria ter sido classificado; não deve destruir-se um património com menos de 50 anos porque isso destrói a memória de um povo; imaginem o efeito da destruição do património arquitectónico da Baixa-Chiado se tivesse sido seguida a sugestão de um mediático arquitecto da praça de Lisboa;
provavelmente teria surgido no Chiado uma versão aportuguesada da Potsdamer Platz, com a exibição individualizada de “n” edifícios, cada qual mais ansioso por chamar a atenção, cada qual com a sua estética e o seu arquitecto, ou uma extensão da mostra das capacidades criativas dos arquitectos representados no Parque das Nações;
se falo na Potsdamer Platz é porque o contraste (pela negativa para a Potsdamer, claro) com a porta de Brandenburg e com a Unter den Linen é demasiado chocante, pelo menos para a minha sensibilidade de velho do Restelo, como dirão os meus amigos arquitectos;
e a destruição do Monumental? Ninguém defendia o valor estético daquele desenho, mas era a arquitectura do Estado Novo nos anos 50; deveria ter sido classificado; e o primor da construção de betão armado…
2 – que tinha 22 andares e agredia visualmente; pois, o novo edifício tem 17 andares, dois corpos e um buraco no meio para se ver o parque Palmela por trás, ou para os condomínios que lá vão construir-se, beneficiando do espaço escondido ocupado anteriormente, possam ver o oceano por baixo da trave superior do edifício;
Fértil em recursos, como Homero dizia de Ulisses, ou não estivéssemos na cidade de Ulisses, o arquitecto manteve a volumetria, espraiando em largura o edificio e implantando dois abcessos com os 5 andares de diferença em protuberância franca e ousada, deixando 2 cubos com esses 5 andares de lado (15 m?) suspensos em consola a 12 andares de altura;
Colocou uma protuberância virada para o oceano, para Sul, e outra virada para Poente ; e assim criou um coiso, como se fosse duas panteras a revestir de vidraria negra, com as cabeças de lado, uma anca projectando-se para o mar, as patas largas solidamente assentes na terra, isto é, um “coiso” conspícuo, bem visível do mar, saído de um programa de computador integrador de mini-cubos de diagonais flexíveis que se articulam e encaixam uns nos outros, expandindo-se até à simulação da pantera-coiso;
Imagino a satisfação profissional dos engenheiros de estruturas que resolveram ao arquitecto o problema das protuberâncias, com vigas de suporte e de travamento e chapas metálicas sem recurso ao betão, a calcular com esmero os momentos da consola em carga normal, em sobrecarga, em solicitação sísmica, e a definir os procedimentos de manutenção anti-corrosivos devido à proximidade do mar (não me vão dizer que o edifício foi projectado para 100 anos, pois não? 100 anos passam num instante, a ponte de Entre os Rios caiu com 112 anos, ou já estão a pensar que este edifício vai ter o destino do Estoril-Sol e vai morrer adolescente?);
3 – o projecto financeiro prevê que os condomínios, que espreitarão por debaixo da pantera-coiso, e que possivelmente integrarão parte do seu corpo, para além do novo hotel, rentabilizarão o investimento; será bom sinal que assim seja, e indiciará que a região de Cascais tem um PIB dos mais elevados da Europa; não atiro pedras por isso, até porque ao lado, no paredão do Estoril, vejo as pessoas felizes; apenas me indigno por terem demolido o Estoril-Sol.
Apenas me indigno por não estarmos de acordo, no nosso país, sobre uma política de recuperação do património arquitectónico, conforme tentei comentar nos Arquitectoriuns anteriores (22MAI, 8JUN, 17JUN09).
Assim como assim, os técnicos também servem para conservar o que é antigo, e por esse país fora ainda há muito espaço para construir de novo onde não prejudique o património, mas isso é difícil limitando-nos a esperar que o “mercado funcione”, não acham?