quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Ouvido na praia


A maré cheia obriga à proximidade entre os chapéus. A senhora e um casal conversavam em voz alta sobre os incêndios e eu tive de ouvir. O homem gostava de falar alto, contrastando com a esposa. Ambos falaram como se estivessem escrevendo em caixas de comentários na Internet. Que os incendiários deviam ser perseguidos implacavelmente e que os proprietários dos terrenos por limpar deviam ser multados.
Eu não gosto de falar sobre o que não conheço. Mas neste assunto de incêndios e de limpeza de mato penso que tenho um pouco mais de experiencia do que os comentadores das caixas de comentários. Já andei a combater fogos em ravinas, com ramos de arbustos, enquanto outros vizinhos atrás regavam o mato não ardido e um carro de bombeiros aguardava para intervir apenas se casas estivessem ameaçadas. E paguei mais uma vez 100 euros, este ano, pela limpeza do terreno que tenho na península de Setúbal e de que não retiro rendimento nenhum (bom, não será bem assim, o meu terreno produz canas que o meu vizinho utiliza para erguer tomateiros e feijoeiros de cujos frutos retira depois alguns para me oferecer).
Como não sou de feitio conversador (só desabafo aqui no blogue), não contei isto aos meus vizinhos de chapéu de praia. Mas não precisei, porque a primeira senhora esclareceu rapidamente o casal com o seu próprio exemplo. Que tem um terreno de 5 hectares em Setúbal. Uma parcela de meio hectare ardeu há 30 anos. Reflorestou (tentou) com sementes de pinheiro atlântico que se revelaram inutilizadas em 50%. Quando os poucos pinheiros sobreviventes começavam a crescer sobreveio novo incêndio. Nova semeadura após recusa da direção geral das florestas de apoio técnico e financeiro. As sementes revelaram-se novamente inutilizadas em 50%. E ao fim de 30 anos, novo incêndio. Sobraram alguns pinheiros que foram vendidos a um madeireiro por 150 euros.
Entretanto, ao longo dos 30 anos, a senhora foi pagando de 2 em 2 anos a limpeza do mato do seu terreno de 5 hectares. A pergunta é muito simples.
Querem responsabilizar os proprietários que não mandam limpar o mato pelos incêndios? Sendo que os custos da limpeza são superiores à receita da venda dos pinheiros? A senhora dizia: expropriem-me, era um favor que me faziam (mas então seria o Estado dos contribuintes que pagaria mais pela limpeza do que receberia pelo produto florestal).
E concluia: o meu marido e eu já plantámos eucaliptos naquele terreno. Eu sei que é um risco maior de incêndio que a lei 96/2013 veio proporcionar com ligeireza própria de quem está nos gabinetes e se sente iluminado por intervenção divina, mas não posso estar a perder continuamente dinheiro. Não é isso que dizem os senhores do governo, que não podemos viver acima dos nossos rendimentos?
Este pequeno relato fica aqui no blogue apenas para registar a incompetência e a ignorância dos decisores da politica florestal deste país. Não me refiro apenas ao atual governo. É um mal que vem de longe, para grande satisfação do nemátodo, da velutina nigrotorax e do escaravelho bicudo, cuja problemática já foi tratada no blogue, sem que os sucessivos governos promovam o desejável debate público nem valorizem o estudo e as propostas dos técnicos competentes que existem nos serviços (ou já terão sido reformados com a fúria cega de redução dos quadros do funcionalismo publico?)
Pena os senhores da troika também serem uns ilustres ignorantes nas matérias florestais e não compreenderem que é uma das áreas de aplicação frutuosa dos fundos QREN.
Pena também os não menos ilustres sábios que dão apoio ao senhor ministro Maduro dos fundos QREN parecerem andar longe destas problemáticas.
Assim é difícil, sem debate aberto por quem esteja dentro destes assuntos.
E para que não se diga que este blogue não apresenta propostas alternativas, como seria bom se os ditos sábios concluíssem que uma solução premente é a instalação pelo país fora de centrais de biomassa e de meios mecânicos de recolha do mato (uma pequena alteração legislativa permitiria a recolha dos resíduos em terrenos particulares sem custos nem receitas para estes e permitiria ainda a organização cooperativa dos particulares os casos em que os particulares pagassem a recolha e participassem das receitas ou benefícios das centrais ; o estudo dos meios de recolha em zonas acidentadas já foi desenvolvido por universidades portuguesas, nomeadamente a de Aveiro; os custos de funcionamento das centrais de biomassa serão compensados em grande parte pela economia de importação de combustíveis fosseis e pela taxa de carbono a aplicar pelos consumidores de combustiveis fosseis).
É impressionante, num país de desempregados e de PIB decrescente (em termos anuais) tão poucos sábios e tão poucos políticos impedirem tantos de beneficiarem dos recursos naturais disponíveis.
PS em 29 de agosto de 2013 - Depois de ter escrito o "post" anterior, a que atribui um tom ligeiro por o centrar na experiencia dos rendimentos nulos dos proprietários, tomei conhecimento da morte de mais uma bombeira. São assim 5 os bombeiros mortos, existindo ainda feridos graves (queimaduras ou inalações). Trata-se de uma situação anormal que leva a apresentar condolencias aos familiares e aos bombeiros, mas que me parece justificar a denuncia de uma estratéga errada adotada pelo ministérios da defesa. O senhor ministro é incontestavelmente uma pessoa séria, mas parece-me que acredita ingenuamente nalguns que o rodeiam. Repito que penso poder falar porque já andei a combater fogos e o senhor ministro não. Penso ainda que pratico critérios mais eficazes para aferir da competencia técnica de quem trata de assuntos técnicos. Por isso digo que a estratégia adotada no principio de 2013, possivelmente com graves culpas do primeiro ministro e do ministro das finanças (que igualmente nunca andaram a combater fogos a sério)na definição da contenção orçamental é incorreta por se basear na intervenção apeada dos bombeiros e em meios aéreos ligeiros (a intervenção atempadamente contratada de Canadairs não poderia ter sido comparticipada pela União Europeia? é que incendios em zonas montanhosas com ventos fortes e variáveis combatem-se com estes aviões, não apenas com os helicopteros e aviões ligeiros contratados, E MUITO MENOS A PÉ.) O senhor ministro nunca deveria ter dito que os meios eram suficientes. Agora que 5 bombeiros morreram em menos de um mês, numa estatistica terrivel com indicadores em termos de mortalidade por hectare ardido piores do que no pior ano de 2003, parece que se impõe uma mudança de estratégia, não só em formação (não se deve mandar avançar contra um fogo sem garantir um caminho de fuga e sem que parte do pessoal esteja a molhar as zonas não ardidas e a controlar permanentemente os caminhos de fuga) como em prevenção (contratação de desempregados para vigilancia) e em organização do território com aceiros e exploração de biomassa. Neste capitulo, não nos podendo opor à "eucaliptalização ", deve ela ser contida e acordada em termos de planeamento com as grandes produtoras Portucel e Altri. Sem esperarmos que iniciativa privada resolva as coisas por intervenção de uma mão invisivel benfazeja (na origem do mito a mão invisibvel era tudo menos benfazeja, veja-se Shakespeare)
CORRIJO: REFERIA-ME AO SENHOR MINISTRO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, E NÃO AO MINISTRO DA DEFESA, O QUAL NUNCA PODERÁ SER CLASSIFICADO COMO INGÉNUO
PS em 1 de setembro - segundo o DN de 31 de agosto, em 30 de agosto, 6 aviões Canadair, 3 franceses e 3 espanhois, lançaram em 26 missões 130 toneladas de água (5 toneladas ou m3 por lançamento) sobre o incendio na serra do Caramulo, que foi em seguida dado por extinto. Dado que cada lançamento corresponde a 5 toneladas ou m3, não pode utilizar-se este método sobre casas que se pretenda salvar e existe o risco para o pessoa apeado. Os aviões estacionaram na base de Monte Real sem problemas de interpretação da Constituiçao sobre se é preciso ou não declarar o estado de sítio para as forças armadas intervirem no território nacional. Chegaram entretanto dois Canadair da Croácia para outros incendios. Infelizmente tambem existe o risco de, a aprtir do momento em que os dias fiquem nublados e a humidade aumente, que se esqueça a necessidade de um novo e eficaz planeamento de estratégia e meios para o próximo ano, para alem da prevenção, naturalmente (atualização de cadastro, vigilancia, cortes de aceiros).
PS em 9 de setembro - são atualmente 8 os bombeiros mortos em consequencia dos incendios de agosto.
junto o endereço de um video explicando o trabalhao dos Canadair da força aérea espanhola ; os helicopteros portugueses, embora uteis, são insuficientes e mandar avançar bombeiros para incendios em encostas é, salvo melhor opinião, devido ao efeito ascensional das correntes de ar quente, tão criminoso como a estratégia dos generais mandarem avançar a infantaria exposta à artilharia inimiga.
http://player.vimeo.com/video/48642618

sábado, 17 de agosto de 2013

O museu do carro elétrico do Porto

Tomo conhecimento pelo JN do protesto dos trabalhadores do STCP pelo fecho, há mais de 6 meses, do museu do carro elétrico do Porto, em Massarelos.
Nos tempos que correm já não se tem confiança no que dizem os decisores, pelo que pouco crédito dou à afirmação de que o projeto de remodelação do edifício não foi abandonado.
Até que se possa acreditar que o projeto é para avançar (com fundos do QREN, se não forem sobranceiramente desviados pelos governantes para outros fins), concordo com os trabalhadores do STCP; o fecho do museu é um crime público por omissão, próprio de um país atrasado que não dedica à cultura verbas proporcionalmente às disponíveis, apesar do museu gerar receitas e ter programas interessantíssimos de apoio social a jovens de meios problemáticos (reconstrução de carroçarias de elétricos, por exemplo).

http://pt.wikipedia.org/wiki/Museu_do_Carro_El%C3%A9ctrico

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

O Dr Ox, ou o verão fútil

Júlio Verne devia ser mais bem estudado. Com uma boa formação técnica, conseguiu uma obra literária vasta e de interesse.
Um (ou vários?) dos seus livros trata a figura do Dr Ox, que tinha descoberto um método de tornar eufóricas as pessoa e levá-las a fazer disparates.
Tratava-se de aumentar sub-repticiamente o teor de oxigénio na atmosfera, enquanto a euforia e a irresponsabilidade tomavam conta das pessoas.
Não tenho provas nem indícios de que um ou vários doutores Ox andem pelo país, pela Europa, pelo norte de África, pelos USA, por aí fora, sem que nos apercebamos de que se lembraram de um método não detetavel equivalente ao aumento do teor de oxigénio.
Não há evidencias, de facto, mas muito do que se vê ou ouve é como se fosse mesmo verdade.
Por exemplo, num programa de televisão a propósito dos custos com as auto-estradas, um empresário da banca de sucesso criticou asperamente (e com razão, quanto a mim) as privatizações da EDP e da REN. Contudo, o próprio tinha sido beneficiado, para o seu banco, por uma privatização ingénua e infeliz, com uma venda pelo Estado de 40 milhões de euros depois de uma injeção de capitais públicos de 600 milhões de euros e antes de uma “transferência” de 100 milhões do Estado para o banco depois de privatizado (parece que coisas de dividendos, não percebi bem).
Isto sem falar que o tal banco era um “bad-bank” (notável criação de engenhosos economistas financeiros - apenas um esclarecimento: de acordo com a teoria, os "bad-bank" não se vendem, mas os nossos práticos acharam por bem vender) também ingénua e infelizmente separado da parte lucrativa da sociedade geral de que era propriedade, a qual continua a distribuir dividendos aos seus anteriores acionistas.
Mas é facto que não foi possível detetar no estúdio de telvisão nenhuma alteração do tipo da do Dr Ox de Júlio Verne.
Alem de que fiquei grato ao comentador por ter explicado que o investimento inicial nas auto-estradas teve justificação, tendo-se atingido porem o limiar de saturação das melhorias dos custos de transação para os clientes das auto-estradas (ou rapidamente se ter atingido o ponto dos rendimentos decrescentes).
Males de uma pequena e dependente economia como a nossa.

Noutro programa de televisão, a propósito da promiscuidade entre o setor financeiro e o poder politico, um senhor de gravata explicava que o novo ministro dos negócios estrangeiros sempre teve uma conduta irreprensível, quer no caso da compra e venda de ações da tal sociedade do banco que é alvo de injeções de capitais públicos (aliás, tal como o atual presidente da Republica portuguesa que também comprou e vendeu ações com lucro assinalável e dificil de alcançar por quem não fosse das relações do presidente do banco).
Infelizmente para o senhor engravatado, o moderador do programa lembrou que o senhor ministro tinha tido um comportamento pouco ético (não ilegal) em questão tornada pública há quase 20 anos.
Que não, que o senhor ministro sempre fora irrepreensível.
Foi quando o moderador informou que tinha sido ele, o moderador, a fazer a investigação em 1995 e que tinha apurado comportamento pouco épico entre gabinetes de advogados. Coitado do senhor engravatado, que cara de frustração que fez.
Mas ainda aqui nada de anormal na atmosfera do estúdio.

Num artigo de jornal, faz-se uma descoberta extraordinária: que o negócio dos “call centrers” tem sido ótimo para as contas portuguesas porque Portugal agora é um país desenvolvido com mão de obra qualificada e barata.
Afinal Manuel Pinho tinha razão quando disse na China que a mão de obra era barata e concretizou-se a anedota do revolucionário esquerdista que a seguir ao 25 de abril de 1974 se gabou na Suécia de que em Portugal tinham acabado os ricos, ao que o sueco respondeu que na Suécia tinham acabado os pobres.
E eu que pensava que o objetivo da economia era nivelear por cima, pelos paises desenvolvidos, mas isso terá sido antes da escola de Chicago ter descoberto a mina de ouro de ir cortando nos rendimentos do trabalho.
Parece que a grande vantagem é a rede de fibra ótica em Portugal que facilita a instalação dos servidores necessários (e pensar que que se critica tanto o investimento noutras áreas, quando os investimentos são mesmo assim, quer de iniciativa pública quer de iniciativa privada, uns dão outros não, vá-se lá saber porquê).
E que não são só os call centers, são o outsourcing.
As empresas pagam a recibo verde e só têm de dar formação, por exemplo, com o catálogo de intervenções na rede informática de uma empresa de prospeção de petróleo.
Penso por momentos que uma das causas ou circunstancias do acidente da plataforma petrolífera no golfo do México foi ela estar em e-drilling, a partir do centro de operações do Texas, com poucos técnicos qualificados a bordo. Mas isto são pensamentos de um técnico da escola clássica, ciosos do “know how” detido pela própria empresa nas frentes de trabalho (com maiores custos de pessoal, claro, mas menos probabilidade de acidententes).
Não consta que pela redação do jornal tivesse passado o Dr Ox.

Ou ainda noutro programa de televisão, o lamento de um antigo secretário de Estado por terem sido extintos o gabinete de estudos e a escola superior de administração pública (afinal a tarefa de minimizar o Estado não é só do atual governo, esta extinção já foi há mais de 10 anos).
Tem uma certa lógica, estrangular não só a parte estrutural da administração pública, mas também o seu cérebro.
O organismo que devia ser a comunidade organizada para defender e exercer os seus direitos fica assim em estado comatoso, à espera que a iniciativa privada tome conta de tudo o que dê lucro sem oposição ou com o apoio de técnicos medíocres (raramente é falada no nosso país a época dos barões ladrões, quando os principais grupos económicos dominaram sem regras a economia dos USA; também duvido que os nossos governantes e seus apoiantes se preocupem com o seu estudo, apesar dos barões terem violado a regra da responsabilidade social de Adam Smith).
Mais uma vez aqui não constou que o Dr Ox tivesse frequentado os ministérios que tão zelosamente extinguiram a capacidade intelectual da administração pública.

Não admira assim que neste verão fútil se assista ao espetáculo triste de alguns governantes virem dizer que graças ao caminho escolhido finalmente o PIB cresceu no 2ºtrimestre de 2013 relativamente ao 1º trimestre. Felizmente que ainda há algum pudor, e que nem todos os governantes o fizeram, sabendo que do 2ºtrimestre de 2012 para o 2º trimestre de 2013 o PIB caiu quase 2% e que graças às ligeiras subidas do PIB da Alemanha e da França as nossas exportações crescem (com destaque para a exportação do gasóleo só possível graças aos investimentos nas refinarias decididos e contratados muito antes do atual governo).

É uma pena as pessoas não terem a noção de que a estatística não permite conclusões deterministas e que os pontos de evolução ocupam manchas de incerteza, mas que fornece dados para decisão que, neste caso, devem ser, para alem das exportações, as de insistir no investimento e na substituição de importações.

Claro que tem de se ir aos fundos do QREN/Horizonte 2020, mas será que os 15 sábios vão mesmo escolher ou avaliar as escolhas da iniciativa privada? e terão a noção de conjunto necessária ou apenas académica? e as valências de engenharia, resumem-se a dois dos sábios? pode-se retomar o crescimento sem a contribução dos engenheiros? ou prevalece a doutrina de um dos economistas sábios que acha que os engenheiros só sabem gastar dinheiro? que serviços "já estão a trabalhar na apresentação de propostas"? ou o Dr Ox também faz parte do comité? não pode mesmo implementar-se uma discussão pública com propostas para submissão às candidaturas QREN? 

E quanto à substituição das importações, não pode mesmo haver um tratamento fiscal preferencial para as empresas produtoras de bens transacionáveis que reduzam a importação e um tratamento penalizador para as que insistem em importar quando há bens nacionais disponiveis?

domingo, 11 de agosto de 2013

Na morte de Urbano Tavares Rodrigues

Na morte de Urbano Tavares Rodrigues, reproduzo o poema que Manuel Alegre lhe dedicou:

No dia 9 de agosto de 2013 houve uma vaga de calor.
De certo modo ele morreu dentro de um seu romance
Não foi noticia de abertura.
Os telejornais mostraram mulheres gordas em Carcavelos
e um sujeito pequenino
(parece que ministro)
a falar de "cultura política nova"
Mais tarde este dia será lembrado
como a data em que morreu Urbano Tavares Rodrigues

e reproduzo novamente o pequeno texto que retirei de uma crónica antiga de Urbano Tavares Rodrigues no Diario de Lisboa (pedindo desculpa, por o recorte do jornal já não estar em boas condições, por não poder garantir a fidelidade das ultimas frases), mostrando o seu humanismo ("se os mais atingidos quase não ousam queixar-se") e o papel que os intelectuais podem desempenhar na sociedade em seu benefício:

Tenho um complexo de culpa, sim, eu sei.
Desde quando? porquê?
fui censurado em pequeno e até castigado,
reprimido pela mãe, como quase todos os catraios,
e tive remorsos da minha origem burguesa,
de comer e beber bem, mais tarde vestir-me "com decencia",
e até às vezes com excentricidade cara,
num país de nus, tinhosos, sebentos, deformados pela santa e cega lei.
Não suporto mais e os nervos já não aguentam.
Nunca roubei, só minto em legítima defesa.
Terei sido infiel sensualmente, mas não nos meus afetos
Porquê então este meu volumoso e incómodo complexo de culpa?
A consciencia sempre me pesou, por tudo, por nada;
devo pertencer ao género dos previamente culpados por natureza.
Daí tambem o meu desprezo pelos oportunistas e pelos moralistas das falsas composturas,
das mortes ordenadas, dos milhares de existencias que diariamente espezinham, esfarelam.
Se essas formas de ascensão deixassem marcas.
Mas não deixam.
Nem eles têm, no geral, complexos de culpa.
Paciencia! Se os mais atingidos quase não ousam queixar-se!
Se falamos quase sem eco!
É certo que na hora certa, todos nós, intelectuais, estaremos no local certo.
E espero então libertar-me, um pouco que seja, deste complexo de culpa!

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Reportagem na praia





















Reportagem televisiva do primeiro dia de férias do senhor primeiro ministro. Pai de família irrepreensível, mão dada com a esposa, abraços ao senhor que lhe dá alento e diz que tem sido durissimo e a quem o senhor primeiro ministro diz "Todos temos de trabalhar para resolver isso" (qual a relação deste programa de ação com o combate ao desemprego? e na esfera da ideologia económica que o senhor primeiro ministro apreendeu na sua faculdade como se concebe a integração desse tal trabalho? como podem os cidadãos organizar esse trabalho?). A entrevista decorre junto de um pedregulho de mármore, com as arestas esfaceladas e apenas parcialmente trabalhado para ter um toque estético. O pedregulho assinala a inauguração em 2007 da requalificação da praia de que o senhor primeiro ministro tanto gosta. A requalificação teve origem num investimento que beneficiou de fundos europeus, de candidatura submetida pelo governo de Guterres, sendo ministro do ambiente José Sócrates. Que bom seria se a requalificação da praia pudesse beneficiar todos, os que pagam impostos e os que não conseguem rendimentos para os pagar. Que não fosse apenas a classe média com os seus carritos a poder chegar à praia ou a alugar um apartamento ou uma casa por uma semana ou duas. Afinal, "viver acima das possibilidades" também passou por aqui, por beneficiar um sítio de lazer de que o senhor primeiro ministro, tão crítico dos empreendimentos de infraestruturas, tão pródigo em parar obras em curso com fundos europeus e desejoso de os transferir para empresas de "formação" (para que servem as escolas?) tanto gosta. Há-de compreender, o senhor primeiro ministro, que se ele gosta da praia outros gostarão e muitos não podem lá ir, ou quando muito irão num fim de semana de agosto (o senhor primeiro ministro ainda estranhou, preocupado, que "costuma estar mais gente aqui", mas isso foi numa sexta feira à tarde; na noite de sexta feira tambem o movimento de carros foi menor, que a gasolina está cara e os transportes coletivos não têm procura suficiente; mas no domingo o sítio encheu-se de pessoas chegadas de carro, tranquilizando talvez a consciencia do senhor primeiro ministro). Ao fundo, uma construção de madeira que integrou a requalificação, um dos restaurantes de projeto algo pretensioso para substituir os antigos abrigos de praia, cercado agora por uma paliçada abrigando uma discoteca noturna, de volume sonoro contido para não prejudicar o repouso do senhor primeiro ministro. A perspetiva da câmara dá a ilusão que é uma mansão no campo, com a vegetação das dunas a enfeitá-la, mas o terreno que separa o entrevistado do restaurante é apenas um descampado de mato cortado. Onde o meu cão gosta de passear em liberdade, à noite, quando só os frequentadores das discotecas por lá passam, fechados os entretenimentos das crianças. E também gosta muito, o meu cão, de, ao pé do pedregulho comemorativo, alçar a pata e exprimir o que muitos de nós sentimos pela petulancia, o pretensiosismo, a impreparação, a inépcia, a incoerencia entre as promessas eleitorais e a prática, a incapacidade de entender as questões técnicas, a promiscuidade entre o poder financeiro e o poder político e o auto-convencimento excessivo dos decisores que nos condicionam.


A desconsideração canina no mnarco comemorativo dos grandes homens

domingo, 4 de agosto de 2013

Y2T

Recordando, sem nenhum motivo especial para isso, apenas recordando: Y2T é uma sigla que significava “year two thousand” (ano 2000). Mais precisamente significou a grande preocupação e o conjunto de medidas tomadas para prevenir os riscos do colapso da informática e dos sistemas computorizados na transição do ano 1999 para o ano 2000. No início do verão de 1999 encontrei no meu computador uma informação do colega da informática com um pedido de participação numa reunião para debate das medidas a tomar para prevenir os riscos. Algures nos USA um guru informático tinha desencadeado no seio da NASA e das agencias de segurança norte americanas um alerta e um programa de prevenção. Todas as grandes empresas o seguiram na preocupação que se propagou por todo o planeta. Que as bios dos computadores não reconheceriam a nova data 00 por não estar na sequencia crescente e que tudo poderia parar, desde os sistemas controladores do tráfego aéreo, aos GPS e aos PC domésticos. O objetivo da reunião promovida pelo meu colega informático foi o de identificar todos os sistemas e todos os serviços que poderiam ser afetados, bem como pedir aos respetivos colaboradores informações para elaborar uma “fita de tempo” desde a preparação das medidas mitigadoras até ao instante mágico da passagem de 1999 para 2000 e aos momentos seguintes. O meu colega não deve ter gostado, e eu digo que não deve ter gostado porque é uma pessoa bem educada e não deu mostras disso. Eu fui dizendo que iria comunicar a todos os fornecedores a necessidade de apresentarem um plano de intervenção para aplicação de medidas preventivas e mitigadoras, mas que não tinha nenhuma expetativa de que os computadores, que para fazerem um coisa ou para deixarem de a fazer têm de ser programados para isso, e que se se engasgam por duvidas numa linha ou numa subrotina voltam a funcionar após um reset,(nem que tenha de se alterar a data-hora), criassem algum problema na transição. Não foi só o colega informático que não aceitou os meus argumentos. Ter-se-is criado um clima de dependência dos computadores assente no desconhecimento do seu funcionamento que suscitou o receio geral. E depois do receio ter-se-á passado para o nível de quase pânico. Como não sabemos como funciona o sistema controlador aéreo, o mais certo é os aviões ficarem impossíveis de controlar, e então teriam de ficar todos no chão, mas isso iria entupir as pistas dos aeroportos. Ou então, o fornecimento de energia elétrica, que depende dos computadores para as ordens de comando e despacho, iria falhar. Logo, fizeram-se ensaios de operacionalidade do velhinho gerador diesel que tinha deixado de funcionar desde que a EDP tinha garantido vários pontos de alimentação da rede interna do metro (falhando um ponto de acesso, por manobras da própria rede interna seria possível alimentar toda a rede de comboios). Alugaram-se geradores para eventual alimentação alternativa das áreas de gestão. O próprio presidente da administração tornou-se um entusiasta Y2T e convocou-nos a todos para um gabinete de crise durante a transição. Eu fui ainda dizendo que os receios se apoiavam na velha querela de quando muda o século, se de 1999 para 2000 se de 2000 para 2001, e que os pobres computadores se manteriam alheios à disputa por não terem sido programados para isso. Bem explicou o professor Hermano Saraiva, na televisão, que uma década começa em 1 e vai até 10, começando a nova década em 11. Mas a teoria da bios do guru da NASA ganhou cada vez mais consistência. Foram assim alterados os programas de passagem do ano e lá nos concentrámos junto da sala de comando de operações do metropolitano, com a corte da administração reunida na sala de crise , como previsto no protocolo do guru e na fita de tempo do meu colega informático. À medida que o movimento de rotação da Terra ia aproximando de nós, desde o Pacifico, a passagem da meia noite , e que nenhum avião, dos poucos que se afoitaram, tinha caído, nem a alimentação de energia tinha falhado, a ansiedade foi-se dissipando. Quando chegou a nossa vez os comboios continuaram a andar (é por isso que eu discuto com os meus amigos delegados sindicais quando fazem greve – é um ponto de honra do metropolitano os comboios não pararem quando outros serviços param; quando há necessidade de se fazer uma greve, e infelizmente há muitas vezes, deveriam privilegiar a greve de zelo, informando os passageiros de que poderá haver algum atraso para que sejam relembradas, através da instalação sonora, as regras de segurança nas deslocações de metro, a exemplo do que se faz de cada vez que se entra num avião e se é brindado com uma demonstração de segurança), a iluminação não tremeu, os computadores não entraram em “crash”. Meio desanimado, mas ao mesmo tempo aliviado, o presidente deu ordem de regresso a casa ainda antes das 2 da manhã. Evidentemente que ninguém criticou o meu colega informático. Tinha feito o que lhe competia aplicando o principio da precaução. Um ano depois, na manhã do dia 2 de Janeiro de 2001, o meu jovem colega dos sistemas de sinalização ferroviária telefonou-me. -“Sabe? estivemos parados no parque de material e oficinas da meia noite às duas da manhã da madrugada de dia 1. Atrasámos a recolha das composições. Os maquinistas zangaram-se connosco por irem para casa mais tarde, logo na noite da passagem do ano. Mas o tempo de paragem foi o de descobrir que o gravador/registador das manobras, que até é um equipamento auxiliar, tinha encravado porque a data estava alterada. A data-hora estava em 1999 em vez de estar em 2000 quando chegou a meia noite. E foi assim que, um ano depois do momento de crise, se verificou que afinal havia motivos para algum receio e que num sistema ferroviário deve sempre aplicar-se o princípio da precaução.

Uma noite de fim de semana no Algarve

O administrador dos hospitais principais do Algarve, de Faro e de Portimão, disse que o quadro de médicos no hospital de Faro estará 60% das necessidades e que faltam 38 enfermeiros. Sexta feira à noite, pouco antes das 23 horas, levei às urgencias do hospital de Faro uma pessoa de família com o que tudo indiciava ser um ataque de colibacilo. A espera pela triagem foi de 20 minutos, e o atendimento médico esperou mais 50 minutos. Foi necessário esperar ainda 60 minutos pelos resultados da análise , confirmação do diagnóstico, receita do antibiótico e recomendação de que não se esqueça em Lisboa da ecografia pélvica para completar o protocolo. Estava pouca gente a recorrer às urgencias (separadas da pediátrica), alguns estrangeiros, poucos turistas nacionais, algumas pessoas da serra algarvia (que iam chegando de ambulancia após o "delay" correspondente ao fecho dos centros de saúde diurnos, e, pela familiaridade do tratamento dos funcionários, alguns habitantes da cidade, com os acidentes domésticos habituais. Parece que as taxas moderadoras, apesar das isenções, fazem algum efeito, e que os turistas nacionais preferirão os hospitais privados. Nada tenho com o seu direito ao negócio, mas já tenho contra o facto, de, quando recorri a um deles, em Lisboa, muito apreciado e com ótima cotação entre as pessoas, ter esperado pela triagem o mesmo tempo que em Faro foi necessário para dar a receita, imediatamente aviada na farmácia anexa ao hospital (sim, privada por concessão). Depois de ter sondado os profissionais que me atenderam nessa altura e que se queixaram da má remuneração, dei razão à senhora CFO desse hospital, quando disse que a saúde é o segundo melhor negócio do mundo , depois das armas (porque não medem o alcance das palavras?). Enfim, quando se diz tão mal do SNS e dos hospitais públicos, quando se teme que os senhres governantes o debilitem para beneficiar o setor privado, melhor seria ter algum respeito por quem lá trabalha e consegue, com sucessivos cortes, manter um serviço de qualidade(não estou a criticar o ministro da saúde, Paulo Macedo, que também tem respeito por quem trabalha). No regresso a casa, a confirmação. O tráfego automóvel diminuiu muito. Isso ajuda a combater a sinistralidade, até porque grande parte dos acidentes eram devidos à mobilidade jovem e noturna. Mas não devia ser por isso que sinistralidade deia diminuir. Mais uma vez, quer o assunto seja saúde nacional ou segurança rodoviária, não pomos, como dizia o professor Carvalho Rodrigues, a ciencia na equação. Vamos atrás das emoções, como disse António Dâmaso.