domingo, 3 de agosto de 2014

Num grupo de trabalho como os outros, driverless

O texto seguinte faz parte de umas memórias do metropolitano. A idade tem destas coisas. Atenuam-se alguns mecanismos de inibição, perde-se alguma modéstia, para compensar o pouco que os jovens gostam de ligar ao que os velhos dizem (e contudo, as leis da mecânica clássica, uma vez complementadas com as correções relativistas, continuam a ser válidas, bem como os critérios de segurança ferroviária, independentemente da idade de quem fala). Por isso não estranhem se um dia eu vos comunicar que estas memórias estão publicadas em livro. Corro o risco de incomodar muita gente, mas parece que ainda há liberdade de expressão, e de manifestar indignação pelos maus tratos que deram e dão às empresas publicas como o metro, quer através de nomeações para cargos dirigentes por razões partidárias, quer forçando a privatização ou concessão. Nunca em meu nome ou de quem honestamente exerce a sua vida profissional nas empresas publicas.







O presidente da administração, Franklin Duques, entusiasmado com as suas funções numa empresa de transportes equipada com tecnologia de ponta e em estudo permanente de novas aplicações, bem diferente dos gabinetes financeiros onde recorrentemente perdia as apostas na evolução das cotações das “commodity”, dos derivados futuros e das taxas de juro, desafiado pela grande empresa alemã que havia 5 anos instalava e ensaiava no metropolitano de uma cidade da Baviera a condução automática integral, sem maquinista (o sistema driverless), convenceu-se de que reduziria significativamente as despesas de pessoal se encomendasse o  mesmo sistema para Lisboa.
Dizia-o em entrevistas a jornalistas mais ou menos sensacionalistas, que iria ensaiar carruagens de novo tipo, totalmente automatizadas, num horizonte de poucos meses.
Para fundamentar tecnicamente o seu desejo nomeou um grupo de trabalho de que fiz parte.
Preocupado com a maneira leviana como o presidente da administração e Óscar Albarran, diretor principal, técnico de engenharia e seu correlegionário, que o aconselhava sem escutar o parecer dos colegas mais velhos, queriam chegar ao relatório final sem perder tempo com análises técnicas, formalizei junto do presidente da administração a minha posição sobre os sistemas automáticos de controle da circulação de comboios ATP (Automatic Train Protection).
Que a preocupação deverá ser a de libertar o maquinista da responsabilidade última pela segurança das circulações, precisamente porque o cérebro humano tem falhas, mas que o automatismo integral tem também riscos, por exemplo, na deteção de situações anómalas, em que o cérebro humano é mais eficaz. Complementarmente, a qualidade da prestação do serviço de transporte exige, num sistema integralmente automatizado, brigadas itinerantes vigiando a exploração de estação em estação. Por isso, tal como os nossos colegas de Paris e de Hong Kong nos diziam, a economia nos quadros de pessoal nunca deverá ser superior a 17%.
O controle automático de velocidade pode ser obtido por comparação da velocidade medida com a curva de velocidade autorizada num troço, ou pela manutenção à frente do comboio de uma distancia de segurança até a um ponto de paragem autorizado. Os dados da ocupação da linha à frente do comboio são transmitidos em mensagens codificadas através dos próprios carris ou por via rádio. O sistema controla ainda outras funções de segurança, como  o lado correto de abertura deportas, por exemplo.
Duques e Albarran estiveram presentes, sem nada dizer ao grupo de trabalho, na colocação em serviço do metro integralmente automático na cidade bávara. A grande empresa alemã não tinha esperanças de vender o sistema na Alemanha, mas pensava convencer gestores de países periféricos a encomendá-lo.
Porém, os meses passaram depressa e Albarran passou a aconselhar  a desativação simples do sistema ATP que funcionava na linha vermelha a pretexto de ter uma manutenção cara e de provocar travagens indevidas,  o que remeteria a segurança das circulações para os maquinistas.
Todos os sistemas precisam de manutenção, e os seus custos podem ser calculados com o valor dos seus benefícios ou dos prejuízos pela sua falta.
Quanto às travagens indevidas, é uma caraterística de qualquer sistema de segurança, à mínima incoerência ou ausência dos dados recolhidos pelo sistema, ele coloca-se num estado de segurança máxima, neste caso parando a circulação. Os valores verificados  eram normais, quando comparados com sistemas análogos noutros metropolitanos.
Duques não precisou de decretar a desativação do ATP. Nem de contestar a minha defesa de que em casos de complexidade técnica elevada e de segurança crítica, a lei europeia da concorrência dispensa o cumprimento dos procedimentos de concurso aberto.
Aproximava-se a data de abertura da expansão a São Sebastião. Bastou deixar passar o tempo até ser impossível cumprir a instalação no novo troço dos equipamentos de ATP. De forma expedita organizou-se um concurso para instalação de um sistema simples de sinalização ferroviária, apenas os automatismos dos sinais luminosos, com um controle pontual de ultrapassagem do sinal proibitivo,  e com o sistema de transmissão das informações para a central de comando das operações.
Os colegas do instituto homologador, antes de autorizarem o início da circulação no novo troço questionaram formalmente o metro sobre a desativação de um sistema de segurança como o ATP, regredindo para um sistema de controle apenas pontual nos sinais vermelhos e dependente da atenção permanente do maquinista. Duques alterou a minuta de resposta que eu lhe preparei com os factos, garantindo que o metro estudava incessantemente novas formas e equipamentos para melhoria constante das condições de circulação, sendo prioritária a segurança dos passageiros.
Foi na realidade uma regressão, felizmente sem consequências catastróficas graças ao profissionalismo e à qualificação técnica dos maquinistas.


Este foi apenas um episódio ilustrativo da perversidade do método de nomeação dos gestores das empresas públicas,  administradores  e diretores principais,  por critérios de ligações partidárias.

2 comentários:

  1. Caro Amigo

    Julgo conveniente ainda acrescentar o seguinte:

    1- o referido GT, nomeado pelo CA e que incluía o Albarran, concluiu por larga maioria pela conveniência em manter o sistema ATP/ATO na linha Vermelha, estendendo-o ás expansões a São Sebastião e a Aeroporto.
    O CA, possivelmente mal aconselhado, entendeu não seguir as recomendações do GT, desprezando assim os elevados investimentos já efectuados na linha Vermelha (AM/OR) e no material circulante.

    2- A fiabilidade do sistema ATP/ATO na altura, e após os melhoramentos progressivamente introduzidos pelo fabricante, era perfeitamente aceitável.

    3- A extensão do sistema ATP/ATO (que incluía a inversão automática controlada nos términos) teria evitado o grave acidente ocorrido na passada 5ª feira dia 31 de Julho, no término da estação Aeroporto.

    Abraços

    Cerdeira Baptista

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    1. Pois foi, pois foi e pois é. Ao que se poupou no investimento no ATP nas expansões e na sua manutenção há que descontar a perda da automotora. Isto para não dizer, que é um argumento que os financeiros compreendem, que com ATP o tempo de condução do maquinista pode ser maior do que em condução manual.

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