Depois da leitura dos ziguezagues
enviei ao seu autor este email:
Caro Henrique Monteiro
Da leitura do seu artigo fiquei com a
ideia de que o escreveu com uma serena nostalgia da sua juventude mais remota.
E talvez por isso tenha deixado algumas ideias que possam ser mal
interpretadas. Por exemplo, na minha ainda mais remota juventude, porque sou
mais idoso, partilhei as suas esperanças e os seus objetivos, mas passados
estes anos todos, sinto que o Henrique Monteiro se afastou desses ideais,
enquanto eu continuo agarrado aos ditos ideais, ultrapassadíssimos pelos novos
tempos … ou estarei a interpretar mal. Por exemplo também, quando escreve o
adeus à “irreversibilidade das nacionalizações” logo a seguir afirma que o país
perdeu o rumo. Deduz-se que mais ou menos pela mesma altura. Não digo que seja
uma relação de causa e efeito, será apenas uma hipótese, e o método
científico diz que as hipóteses devem
ser analisadas, ou testadas, melhor dizendo, coisa que os nossos comentadores
mais brilhantes não gostam de fazer, preferem chamar ignorante, ou falho de informação,
a quem as põe. Ou ainda melhor dizendo, nacionalizar ou privatizar não tem nada
de programa prévio, numas circunstancias é melhor nacionalizar, noutras é
melhor privatizar, depende, e os critérios a utilizar escapam muitas vezes não
“às pessoas simples”, mas aos brilhantes comentadores, e quando digo brilhantes
é porque os vejo a pronunciar-se sobre tudo, chocando-me mais, por formação
própria, ou deformação, quando falam de energia, de transportes, sem
habilitações para isso. Mas não me interprete mal, não me refiro a si. Talvez
por ligação minha a uma associação profissional de engenharia, ou como diz o
diretor do Público, a uma “guilda medieval”, refiro-me, repito, a quem não tem
conhecimentos para se pronunciar sobre assuntos de engenharia e flutuando a
espuma das notícias, aproveita para convencer os leitores para conquistar
“adeptos”. É verdade que é um problema de difícil solução, um ministro formado
em direito, ou em economia, ter de
decidir o traçado de uma linha de metro, de uma linha de alta
velocidade, ou a localização de uma plataforma logística, a segurança da
circulação rodoviária ou a localização de um evento em função da afluência, ou
em que condições se deve construir uma barragem com bombagem, ou uma rede de
centrais de dessalinização, ou de produção de hidrogénio, ou de localização de
centrais eólicas e fotovoltaicas, ou de exportação do excesso das intermitentes
renováveis nas horas de menos consumo (citei vários temas que tive oportunidade
de enviar nas consultas públicas sobre o Plano Ferroviário Nacional, sobre o
PNI2030, sobre o PRR, sempre com soberana indiferença dos destinatários, pelos
vistos merecida de acordo com os padrões vigentes).
É impossível perceber de tudo e decidir
bem. Especialmente quando a tendência
que predominou foi a dos ideais de
mercado terem levado à ocupação progressiva por grandes fornecedores, invocando
os benefícios da concorrência, das funções de decisão estratégica dos
incumbentes. Como diz o diretor do Público, quando o mercado deixa crescer demais
as mais valias dos fornecedores do leilão marginal pelo preço mais alto, então “o
Estado pode fazer uma ingerência”. Finalmente, a senhora presidente da CE
reconheceu que o “mercado” da eletricidade
tem de ter reformas estruturais. Lá está, leilões concorrenciais e ainda
por cima hora a hora, adjudicando pelo preço mais alto (?!), sem possibilidade
de, contrariando os próprios termos do
Tratado de Funcionamento da EU, os Estados membros poderem gerir uma produção
elétrica própria, poderá funcionar bem em certas circunstâncias, noutras não,
não é um caso de concorrência, devia ser um caso de cooperação. Assim, a rotura
das cadeias de abastecimento ainda antes da pandemia, os ciclos de Kondraief, a
pandemia e a barbárie da guerra convenceram a senhora a propor reformas, sem
ser preciso vir uma criança dizer que o rei vai nu, que o problema não é a
ingerência do Estado, é o cronycapitalismo e o amiguismo dos seus servidores.
Dirá que
para evitar desvios existem os reguladores. Talvez fosse um excelente
tema para uma reportagem , a análise da eficiência dos reguladores, ou para uma tese de mestrado. Quando dificilmente o
regulador terá poder para impor a sua discordância ou, pior, quando
dificilmente poderá ser independente, pela simples existência das portas
giratórias, ou, pior ainda, quando o regulador está privado de exercer um
negócio, como pode compreender os seus mecanismos internos? Qualquer manual de
sistemas de qualidade empresarial explica que que quem fiscaliza não pode estra
na mesma cadeia hierárquica. Mas divago, porque há engenheiros que dizem ámen
às decisões sem conteúdo técnico válido dos ministros? Porque os assessoram
acriticamente? Porque mudam de opinião conforme o poder politico do momento? Já
respondeu, porque o país ficou sem rumo e as cabeças dos ministros também se
desorientaram.
Não é surpreendente, um país fica sem
rumo quando as engenharias são desprezadas ou os seus executantes esqueceram o
que aprenderam. Eu lembro-me, colegas meus que compravam os projetos de anos
anteriores (importante fonte de rendimento para o contínuo que guardava os relatórios
para venda), que se baldavam às aulas teóricas em que os professores falavam do
papel da engenharia na solução dos problemas da humanidade (de que o maior, já
nos anos 60 se sabia e isso era dito nas aulas teóricas de frequência não obrigatória,
era a energia), que estavam mais interessados no canudo para obter as suas mais
valias do que no conhecimento. Como podem os ministros jurídicos e economistas
distinguir?
Solução?
Difícil, em Portugal. Já passou na ponte
Vasco da Gama no sentido da entrada em Lisboa durante as obras de manutenção
dos tirantes? Repare que à aproximação do tabuleiro há um aviso para 100 km/h,
mais à frente para 80 km/h e finalmente 60 km/h. O normal é passar calmamente a
velocidades superiores. Como adolescentes sem disciplina, os condutores acham
que estão a limitar a sua liberdade quando podem conduzir a velocidades
superiores. Já reparou como os incondicionais das duas rodas, das trotinetas às
scooters, acham muito bem ultrapassar os automóveis pela direita e a menos de
1,5m como diz o código da estrada? Que foi alterado por iniciativa dum
secretário de Estado que proibiu a policia de multar quem andasse sem capacete
de segurança e suprimiu o respetivo artigo do código (?!). São talvez as
“pessoas simples”, como diz, que votam como votam e que acham que se pode
continuar a discutir tudo e mais alguma coisa sem discutir a essência das
coisas, sem analisar os cálculos (basta os decisores dizerem, “estudos que
foram feitos provam …”, ou magíster dixit ).
Como muito bem escreveu, geram-se “adeptos”
para cada grupo de propostas nos temas que referi e nada avança, ninguém se
lembra dois meses depois, ou avança de acordo com ministros iluminados e seus
assessores. São adeptos na verdadeira aceção futebolística, não poderemos extirpar
esta cultura? Sem sangue, claro, falei metaforicamente. Já reparou na notícia
recente que a CE quer ligar Portugal e Espanha em bitola europeia à rede
ferroviária europeia até 2030? São regulamentos comunitários, de cumprimento
obrigatório pelos Estados membros, mas alegremente o senhor ministro das
infraestruturas, seus assessores e seus executivos (enternecedora a notícia de
que a IP e a CP são praticamente autónomas, livrando o senhor ministro dos
disparates) já vieram dizer que há exceções (sim, a Irlanda, é uma ilha) e que
é preciso fazer análises de custos benefícios favoráveis (faça aí uma ACB para
provar o que eu quero, senão não lhe pago a consultoria), quando o que a proposta
de regulamento o que diz é que se quiser fazer uma linha em bitola ibérica tem
de fazer uma ACB que a favoreça, quando já há ACBs que justificam a bitola UIC
(e não me venham com a cantiga da ACB desfavorável para Aveiro-Mangualde porque
ninguém quer uma linha dupla UIC de Aveiro para Mangualde, o que se quer é o
que vem nos regulamentos, uma linha dupla em bitola UIC e ERTMS de Aveiro para Salamanca, integrada
no corredor atlântico que compete a Portugal executar até 2030 e sem passar
pela Pampilhosa ou pela Guarda. Impressionante o senhor ministro das
infraestruturas e a senhora ministra da coesão (a coesão da EU não deveria
prevalecer sobre a coesão do Minho?) insistirem que a prioridade é
Lisboa-Porto-Vigo em bitola ibérica, quando a proposta de regulamento manda dar
prioridade em bitola UIC e ERTMS a Lisboa/Sines-Madrid-Vitoria-Irun até 2030. Por
favor, não diga que não há dinheiro, com o financiamento pela EU até 70% num
país em que se gastam 5.000 milhões de euros em 6 meses em jogo on line, para
não falar na compra de automóveis e na exportação de capitais para contas off
shore. Não querem simplesmente cumprir os regulamentos, sentem-se acima e a
comunicação social omite. Como omite por exemplo uma questão muito simples.
Está previsto um evento com mais de um milhão de participantes na foz do
Trancão (sobre o depósito de Beirolas e na faixa ribeirinha adjacente ao IC2. A
lei da segurança em espetáculos (portaria 135/2020) diz, e bem, que devem ser
deixados caminhos de evacuação de largura total igual a 0,6 m x nº de participantes
/300 , o que para o caso de 1 milhão dá cerca de 2.000 m, numa área limitada
pelo rio, pelo IC2 e caminho de ferro, por arruamentos a sul e uma estação de
tratamento de águas. Por outro lado a ponte passadiço sobre o Trancão tem 5 m
de largura. A mesma lei diz que pode escoar em segurança 2400 pessoas (em 160
segundos). Tive oportunidade de enviar e de comunicar pessoalmente a algumas
das entidades responsáveis pelo evento estas preocupações pela segurança dos
participantes. Responderam-me que tudo estava
a ser estudado (que mais poderiam responder sem atraiçoar o politiquês?),
mas não explicaram como analisaram nem como calcularam os valores de segurança.
Os esmagamentos em multidões não são consequência de pânico, este é uma
consequência, sendo a origem movimentos aleatórios da multidão geradores de
fenómenos de ressonância, com força exagerada exercida sobre as primeiras vítimas
(são questões do foro da matemática estatística, da física e da medicina). Mas
claro que as pessoas ajuizadas dirão que lá estão as cassandras e no limite,
que Nossa Senhora estará vigilante, nada que ver com os acidentes de Duisburg, passadiço
de Kashi, Mount Meron, Houston, estádio de Yaunde, vedação de Melila.
Entretanto a comunicação social entoa loas, finalmente a população vai poder
usufruir da beira rio graças à expulsão do terminal de contentores da Bobadela.
Qualquer técnico poderia informar os decisores que não era preciso liquidar a
totalidade do terminal da Bobadela, RCM 45/2021, que movimenta mais de 4.000
comboios e 200.000 TEUs por ano e que é uma peça essencial na logística marítimo-rodo-ferroviária,
e seria impossível arranjar melhor exemplo dum festival de cigarras, neste caso
comemorativo com muita unção da metamorfose regressiva dos participantes, em
detrimento dum local de trabalho rentável das formigas. Mas a comunicação social
já considera ultrapassadas as fábulas de Esopo a La Fontaine.
E os aeroportos? Senhor, porque permitis?
Não vou cair na tentação de lhe expor as
vantagens e inconvenientes técnicos das várias localizações (também não fiz a
comparação, segundo critérios técnicos, económicos e ambientais para todas as
localizações, não tenho tanto tempo disponível, mas ainda analisei algumas),
apenas refiro a deselegância de muitos opinadores. Desde os 60 km do campo de
tiro de Alcochete a Lisboa (34 km pelo IC3 até ao km 0 da saída norte de
Lisboa/Moscavide), à comparação do CTA completo (12.000 milhões !!) com a
primeira fase do Montijo (1,1 milhões !!) incluindo os custos da terceira
travessia nos custos do aeroporto (a TTT é necessária enquanto peça dos
transportes da AML e da ligação Lisboa-Madrid, haja aeroporto ou não),
ocultação de custos na versão de que se é “adepto” e empolamento na que se
abomina, repristinação da Ota porque na margem sul é uma “ideia saloia”, pistas
em áreas de proteção especial, endeusamento da solução Montijo quando o
presidente da ANA, já lá vão uns anos, se descaiu a dizer que não esperaria
mais de 8 movimentos/hora, vamos vendo o
filme, sem sabermos se os comentadores leram o contrato de concessão de dezembro
de 2012 (a concessionária obrigava-se a arranjar ao concedente um plano de
financiamento, para liquidação parcial pelas taxas aeroportuárias, tendo até ficado
definido no contrato um esquema de participação nas receitas brutas (não
lucros, receitas, desde 1% a partir de 2023 até 10% de 2053 a 2062 inclusive) enquanto
a comunicação social se diverte com as peripécias das novas localizações, vai
mais ou menos aplaudindo a aquisição do TopSky e as obras interiores da Vinci
na Portela, esquecendo uma coisa tão simples, mas difícil de explicar: o
objetivo de 48 movimentos por hora na Portela, compatível com os almejados 40
milhões de passageiros por ano é possível com o referido TopSky e com a construção
de um taxiway (não prevista no contrato de concessão nem na adenda que não foi
incorporada no contrato) no lado norte e nascente da pista 21 com saída
evidentemente do Figo Maduro e respetiva base aérea. A segurança do aeroporto melhoraria
e o nível de ruido diminuiria (deixava de haver cruzamentos da pista principal),
e permitiria manter o aeroporto na Portela até 2030, elaborando-se o projeto de
novo aeroporto imediatamente e monitorizando a evolução da procura. A Vinci
sabe e já tem o projeto do prolongamento do taxiway (custos não incluidos nos
1,1 milhões), mas ninguém fala nisso, provavelmente por ser uma boa solução que
ninguém contestaria, mas devia falar.
E o gasoduto? Claro que podemos ajudar,
mas falta o troço de Celorico da Beira a Vale de Frades (Trás os Montes, a
caminho de Zamora) e de Barcelona a Carcassone (lá terá a CE de explicar ao
senhor Macron que a coesão da EU se sobrepõe à coesão da Aquitânia). Em todo o
caso, há limitações em Sines, mas podemos ajudar.
E o hidrogénio? Senhores, como é fácil
acreditar em fadas. Estão por resolver os problemas do transporte em gasoduto.
E se a ideia é aproveitar o excesso de produção das intermitentes renováveis
quando não há consumo (outra proposta, cabos submarinos de muito alta tensão
contínua entre o Minho e a França para exportarmos esse excesso ocasional,
olimpicamente ignorada) então é mais eficiente exportarmos a energia pra o país
de destino onde eletrolisadores espalhados pelo país produzirão hidrogénio
mesmo ao lado dos locais de consumo (tração, aquecimento com pilhas de
combustível, por exemplo). Mas ai como já há tantos grupos económicos e lobies
a fazer força pela produção maciça de hidrogénio para exportação por via
marítima (pode fazer-se, desde que se construam os respetivos barcos que depois
se sujeitarão ao congestionamento dos portos europeus) ou por gasoduto (como
referido, estão por resolver questões técnicas).
Nem vale a pena insistir nos disparates
do fecho da refinaria de Matosinhos e das duas centrais de carvão (claro,
claro, os ambientalistas aplaudiram, desde que não lhes falte a gasolina ou os
kWh elétricos da central espanhola de carvão para os seus carrinhos, isto é
NIMBY, not in my backyard), nem no triste caso do governo, PR e TdC se terem marimbado
para a lei da AR 2/2020 (uma lei, não uma recomendação) que mandava o metro
suspender a construção da linha circular.
Como pois, arranjar solução, para a perda
de rumo do país e para o rumo certo da assessoria dos decisores?
Solução só possível se posta em prática a
CRP (art.48.1 - Todos os cidadãos têm o
direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do
país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos) , o que não parece ser grande preocupação dos próprios
deputados (talvez por disciplina partidária, a disciplina às vezes tem uma faceta
negativa), e para o que a sociedade civil teria de se organizar, e eu confesso
que não consigo, embora tente ajudar.
Que fazer?
Talvez a comunicação social
insistir, abrir fóruns de debate com participação não de convidados mas de
inscrição livre. É conhecido o método, na Islândia foi praticado a seguir à bancarrota de 2008 …
dividem-se os participantes em grupos limitados, cada qual com um coordenador
que ficam obrigados a reportar as conclusões num plenário final. As conclusões
seguem para as comissões da AR que lá terão de convidar técnicos para as
assessorar (conselho económico e social, CSOP, associações profissionais,
empresariais e comerciais, imprensa técnica especializada … ). A própria CE já
faz isso nas suas consultas públicas, tão discretas e pouco participadas… e
hipóteses de ação estão em livros como a Sabedoria das Multidões, de James
Surowiecky, ou Governar o mundo, de Mark Mazower, ou A revolução sem lideres (é
isso, discordo quando diz, “temos ideias e pessoas mas falta liderança”, porque
basta as pessoas, desde que se coordenem e organizem, líderes iluminados são um
perigo), de Carne Ross, ou as serenas e nostálgicas divagações de Noam Chomsky
para Mudar o mundo.
Talvez as minhas divagações
tenham ultrapassado o limite das pessoas ajuizadas, mas devo agradecer-lhe
ter-me levado a escrever. Toda e qualquer ideia referida não tem direitos de
autor nem barreiras ao seu uso.
Com os melhores cumprimentos