A leitura foi interrompida por um toque prolongado de buzina de automóvel. Estava numa esplanada do meu bairro, tinha acabado de ler um interessante artigo de Wolfgang Munchau, comparando a política austeritária da Alemanha à da Roménia de Ceausescu, pagar a dívida acima de tudo. Bom, guardando as devidas distancias, já que na Alemanha de hoje há excedentes, embora por regras da UE eles devessem ser mais aplicados em investimento do que em extinção brusca de dívida. E insistia, a buzina, impedindo-me de digerir bem o artigo.
Curiosamente, na página seguinte do jornal vinha uma pequena reportagem sobre o aumento da taxa de acidentes rodoviários em Espanha. Em correlação com o aumento de vendas de carrinhas de mercadorias e do crescimento da economia associado às empresas com elevados índices de circulação de carrinhas.Isto é, há uma dupla pressão que leva ao aumento do número de acidentes com carrinhas comerciais: o desenvolvimento do setor comercial que utiliza este meio de transporte e a produtividade e intensidade de utilização deste meio de transporte (relacionada com a rapidez e a forma de condução do meio de transporte).
Vou imaginando que se imporia uma campanha publicitária recomendando mais prudencia na condução e menos velocidade, mas o barulho da insistente buzina não me deixa concentrar.
Há um automóvel que não pode sair do seu lugar de estacionamento porque uma pequena carrinha comercial está estacionada em segunda fila. O automobilista preso continua a buzinar.
Por acaso tinha reparado que a carrinha pertencia a um jovem casal que tinha estado a tomar também o pequeno almoço na esplanada. Mas desapareceram, onde estarão?
A prática do estacionamento em segunda fila tornou-se recorrente. A polícia até tem uma campanha para a desmobilizar. Mas as pessoas acham que, deixando os 4 piscas a funcionar, estão a ser urbanas.
Não foi este o caso. O pobre automobilista desistiu, deixou-se a conversar com um vizinho, aguardando a chegada do prevaricador.
E quando este chega, chama-lhe a atenção. O outro imediatamente gritou, "o que foi? não pode esperar? as pessoas têm de esperar". Alguém lhe diz, não trate mal o homem. Porém, o automobilista prejudicado terá dito qualquer coisa enquanto finalmente arrancava, que levou o prevaricador a dizer "e eu? não estou a ser maltratado?"
A cena foi muito rápida e num instante o sossego reinstalou-se.
Deixando-me com esta reflexão, é claramente um caso psicótico, alguém que se sente maltratado com origem em dificuldades vividas na infancia. Mais uma vez reflito que a sociedade não pode dar inteira liberdade aos seus membros. Uma pessoa assim tem de ser tratada. Facilmente arranja conflitos e facilmente, por se sentir prejudicado e inferiorizado, utiliza meios para se superiorizar ao interlocutor e para autojustificar o seu comportamento antissocial. Penso que é Woody Allen que num dos seus filmes trata um caso semelhante, analisando um conflito em torno de um lugar de estacionamento. E David Lynch num outro filme, em que o condutor de um carro obriga o que o segue a uma distancia demasiado curta a parar, dando um soco ao condutor explicando-lhe que o código da estrada obriga a manter uma distancia de segurança para o carro precedente.
Reflito também que a estrutura do emprego e a do desemprego desempenhará aqui também um papel. A condução perigosa, demasiado próxima do outro, ou a velocidade excessiva, entendida como a que impede a paragem no espaço livre e visivel à frente (e se alguem ocupa esse espaço e ele deixa de ser livre?), ou não abrandar à aproximação de uma passadeira de peões, ou achar a coisa mais natural deste mundo ter a porta aberta do lado esquerdo e parado em segunda fila, ou mudar sistematicamente de via em função do andamento de cada uma delas ou para poder ultrapassar, serão talvez a convergencia de uma deficiente formação escolar nas regras da convivencia e fruição de espaços comuns e de um predomínio das áreas cerebrais onde florescem os sagrados princípios da economia liberal da livre concorrencia e competição para seleção dos mais capazes. Como fazer prevalecer o respeito pelas regras do código da estrada se apelamos às criancinhas para serem competitivas e triunfarem relativamente às outras? ficarem bem nos "rankings"? Como tratar os psicóticos no meio da comunidade sem violar os seus direitos? O código da estrada é assim uma metáfora das leis da economia, em que o triunfo de uns significa uma crescente taxa de sinistralidade em termos estatísticos, os lucros e os dividendos de uns a pioria do índice de Gini e a fermentação da contestação social.
Continuo a ler o meu jornal. Surpreendentemente, o sossego mantem-se. O lugar de estacionamento que originou esta história acaba de ser ocupado. Uma carrinha comercial acaba de estacionar em segunda fila, logo atrás...
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