segunda-feira, 15 de abril de 2019

Do Atlantida de Viana do Castelo ao Spitsbergen das ilhas Kirkenes


Caro comentador que tanto se regozijou no seu jornal com os sucessos dos estaleiros de Viana do Castelo  como empresa privada              

Gostaria de comentar a sua pequena nota no DN sobre as trincheiras e os ENVC de dia 13 de abril.
Sobre as trincheiras, manifesto-lhe todo o meu apoio. Citando Ricardo Pais Mamede nas suas conversas com Ricardo Arroja, eu tenho a minha utopia e tu tens a tua, mas podemos entender-nos sobre as coisas. Também eu, estando numa trincheira e o senhor noutra, não pretendo guerrear nem fazer sortidas destrutivas no campo das outras trincheiras. Quando muito esclarecer alguma coisa com very lights.
Como técnico, faço o possível por não meter as coisas na minha fórmula para me livrar dos enganos. O método científico diz que temos de testar as nossas hipóteses e submete-las a referendo dos pares.
Por isso a minha hipótese é que prefiro que nas empresas estratégicas elas sejam públicas. Que os seus membros sejam servidores públicos e o sintam como tal, no sentido que os ingleses lhe deram. Mas testando a hipótese, verifico que os ditos membros são simplesmente incompetentes, deixam a empresa afundar-se. Então não vale a pena. É verdade que noutros casos a concorrência do mercado, em vez de aperfeiçoar a gestão, prejudica o interesse público com o cambão, por exemplo, ou simplesmente degradando a qualidade dos produtos porque o produto mais barato é o mais comprado, e a sua qualidade é inferior (já que falamos em estaleiros navais, o teste da hipótese mostrou que os petroleiros mais baratos sul-coreanos, que levaram ao fecho dos estaleiros da Galiza e da Margueira, afinal eram inseguros, o monocasco apodrecia rapidamente e o Prestige deu no que deu. Lá teve de vir o IMO impor ao mercado liberal a escravatura de fazer petroleiros de casco duplo. Só que os estaleiros da Galiza e da Margueira já tinham fechado (é curioso observar que os ENVC enquanto empresa pública davam prejuízo na construção, mas na reparação não, tal como a Lisnave/Setenave dá lucro na reparação). 
Ou por outras palavras, não é o facto de uma empresa ser pública ou privada que define o que é melhor. Nuns casos a privatização é uma boa solução, noutros casos é a nacionalização que será preferível, depende, mas é preciso quem decide ser honesto e perceber do negócio, coisa difícil. No meu caso, por exemplo, que nunca por nunca tive jeito para negócios, nunca trabalhei numa empresa de mercado livre. Sempre tentei ser um civil servant, e simplesmente não concordo com o argumento de que o Estado não tem vocação para gerir. Tem, tem, digo eu, e desafio os colegas das empresas privadas a demonstrar que o que fiz na empresa pública estava errado. Como técnicos temos critérios para avaliação comparativa. Utilizar aquele argumento, acerca de quem não tem, como eu, vocação para empresas privadas, é o mesmo que chamar-me incompetente. Então demonstrem-no, mas com cálculos e argumentos técnicos, que é o que eu não vejo na maior parte das discussões sobre o tema, independentemente das trincheiras em que possa estar. E não me venham com as imposições de Bruxelas. O Tratado de funcionamento dá aos estados-membros o direito de ter empresas estratégicas, desde que náo concorram deslealmente com as privadas. É um mito urbano dizer que a UE proíbe empresas nacionalizadas.
Mas cingindo-me aos ENVC, que é o principal motivo desta missiva. No contexto atual, não defendo nenhuma reversão para os estaleiros. Concordo que mantenha o estatuto privado.
Mas sinto que devo chamar a atenção para as palavras do presidente da Empordef, que tinha detetado indícios de alta corrupção no passado (caminho preparado para a privatização) e no presente recente. E muito gostaria que o senhor tivesse presente todos os episódios que levaram à privatização. Desde a incompetência e insuficiência de administradores nomeados pelo Estado, a retenção propositada dos pedidos de autorização de compra de peças e material para os patrulheiros que inviabilizaram a rentabilização do seu fabrico (depois queixavam-se da falta de competitividade – interessante observar que na privatização foi todo o know how ganho com a experiencia onerosa dos 2 primeiros patrulheiros), idem para a construção dos asfalteiros venezuelanos que acabou por se extinguir (a propósito, quando é que os senhores burocratas se dignam resolver o problema do pobre petroleiro venezuelano apresado no Tejo?), a recusa do governo em autorizar a conclusão do programa dos 8 patrulheiros e em invocar as exceções do tratado de funcionamento para justificar a injeção de dinheiro para a construção dos patrulheiros inviabilizando assim a diluição dos custos de projeto pelos 8 patrulheiros inicialmente encomendados (se Portugal está na UE, então os patrulheiros são material de defesa da UE e podem receber dinheiro do Estado), o desaproveitamento das contrapartidas dos submarinos e, finalmente, a recusa não fundamentada e o sacrifício do Atlantida.
Por razões de curiosidade técnica, segui o assunto do Atlantida, vendido por 8 milhões de euros num concurso público em que o vencedor apresentou uma proposta de 13 milhões e depois desistiu. Eu gostava de saber porque desistiu, mas nunca tive informações fidedignas. Quem comprou por 8 milhões gastou depois 4 ou 5 milhões e vendeu-o por 17 milhões. O valor do navio à data da venda era de 45 milhões.
Hoje o Atlantida é o Spitsbergen, e "apanhei-o" há pouco:  (http://www.localizatodo.com/html5/Ships/258157000   - a foto ainda é a do Atlantida) perto das ilhas Kirkenes, lá pelo norte da Noruega, a 8,5 nós , bem abaixo dos 17 nós pelos quais o governo regional dos Açores o recusou. Agora tem uma estrutura quebra gelos, toda a parte de transporte de viaturas foi transformada em camarotes, mudaram-lhe os motores principais e montaram duas pequenas piscinas no convés superior. Claro, pode sempre dizer-se que foi a sagacidade do privado que permitiu a venda por 17 milhões. Só que também se pode dizer que a lei da contratação pública não permite leilões abertos como um privado pode fazer (parece que também não permite convocar estrelas do music hall para abrilhantar cerimónias de lançamento à água – afinal a lei discrimina é as empresas públicas).
                                   Este foi em tempos o Atlantida, agora é o Spitsbergen

Quero eu dizer com esta história que se mantenha a privatização, mas que se conheça com pormenores toda a incompetência, negligencia, facciosismo e má fé que  levaram à privatização.
Se tiver paciencia, leia a carta a Cesar e uns comentários sobre o Atlantida:
Se continuar com animo, veja as referencias ao trabalho dos noruegueses na transformação do Atlantida:
Sobre as declarações do presidente da Empordef:
E finalmente, sobre a questão das contrapartidas dos submarinos que nunca foram autorizadas aos ENVC:

Com os melhores cumprimentos e votos de sucessos

PS em 23 de maio de 2020 - Junto uma noticia recente, sobre os pormenores da venda do Atlantida:
https://www.jornaldenegocios.pt/empresas/detalhe/mario-ferreira-investigado-pela-pj-e-pelo-fisco?ref=DET_Engageya_JNegocios

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